Zé do Caixão é, indiscutivelmente, um ícone do horror brasileiro. Mas ele não é o único personagem dessa história de arrepiar. A década de 1960 foi de Mojica, mas a de 1970 foi do Cinema Marginal e da Boca do Lixo (ou Pornochanchada Paulistana), um ecossistema de produção de filmes de baixo custo, alta rotatividade e forte apelo comercial.

Enquanto o Cinema Novo priorizava o projeto estético e político dominante, a Boca do Lixo se especializou nos "subgêneros produzidos em escala," como o policial, faroeste e horror. Mojica, o artista que deu vida a Zé do Caixão, era um dos principais nomes da produção, mas ele não estava sozinho. 

Diretores como Marcelo Motta, Ivan Cardoso e Raffaele Rossi se aventuraram no horror, mostrando que o terror era uma força coletiva na época. Os elementos se misturavam com outro apelo popular: a nudez.

“A pornografia significa que você vai inserir elementos de erotismo e nudez dentro de uma narrativa. Essa narrativa pode ser história policial, pode ser drama, pode ser comédia, pode ser terror, pode ser faroeste… tem alguns ótimos filmes nesse período: tem o Fauzi Mansur, o Juan Bajon, o David Cardoso, a gente tem uma galeria de cineastas que são super importantes para a manutenção do horror brasileiro. Só que esses filmes só são estudados hoje em dia porque historicamente eles eram desprezados por serem pornografia”, destaca Carlos Primati, que é membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abranccine) e pesquisador do cinema fantástico e de terror.

Essa produção que misturava horror e erotismo era diferente da pornochanchada carioca mais conhecida. Primati aponta em um de seus trabalhos que o cinema paulista da época era mais trágico, violento e pervertido do que aquele que era produzido no Rio de Janeiro. O horror, em São Paulo, não era apenas um acessório; ele era a manifestação da perversidade, da violência e da desilusão da realidade urbana do país.

As décadas de silêncio

Com o fim da Embrafilme (estatal que cuidava da produção e distribuição do cinema nacional) e as crises políticas e econômicas, o cinema brasileiro passou por um forte declínio, especialmente entre as décadas de 1980 e 1990. A produção de gênero, que dependia de uma escala industrial e popular, foi a mais afetada. 

"O período que começa em 82 e vai até 96 é o mais difícil, mais problemático para o cinema de horror. E aí, é, você tem o Guilherme de Almeida Prado que vai com o ‘A Dama do Cine Shanghai’. É o momento onde o Estado se afasta e aí o cinema é muito problemático. É uma geração que não tem muito medo”, destaca, Laura Cánepa, professora do programa de pós-graduação em Comunicação da Unip, doutora em Multimídia pela Unicamp e pesquisadora do cinema de horror

Contudo, como aponta, o interesse pelo terror não morreu. Ele se metamorfoseou, frequentemente se fundindo com um medo mais tangível, especialmente nas grandes cidades. “Essa geração estava envolvida com aqueles filmes sobre criminalidade urbana, também tinha interesse no terror no início dos anos 1980”.

O gênero sobreviveu nas margens, através de um "cinema de guerrilha," mantendo a chama acesa até o século XXI, longe dos grandes circuitos.

A revolução de 2008 

A grande virada sísmica do horror brasileiro aconteceu em 2008. Cánepa cita uma nova geração que, mesmo tendo contato com produções anteriores de terror, fazem filmes diferentes. Essas novas produções iam desde o gore até um terror sutil, que levantava debates se se encaixavam ou não no gênero. 

Esse renascimento não foi um evento isolado, mas a conjunção de alguns fatores cruciais. “É uma questão geracional, você tem chegando ao longa-metragem uma geração de pessoas que nasceram nos anos 70, nos anos 80 e que tem um, um contato com o cinema de terror muito grande por causa do tipo de filme que era feito na época. Você tem um consumo de cinema de fantasia e de terror muito acentuado dos anos final dos anos 70 para cá, cinematograficamente, esse repertório fica muito presente”, destaca.

Além disso, o último filme de Mojica (“Encarnação do demônio”, lançado em 2008), agiu como um catalisador natural de filmes que misturam horror com a violência urbana. Além disso, a época coincide com a popularização das câmeras digitais de qualidade.

“Isso mudou bastante o perfil do primeiro longa dos cineastas, com filmes que você podia fazer com menos orçamento por não ter que usar a película. Então filmes que teriam mais dificuldade de passar em edital, se tornaram mais fáceis de serem feitos de forma independente. Então acho que a virada tecnológica e a virada geracional coincidiram ali, né? É o primeiro longa de uma geração formada no cinema de terror. Aí explode”, destaca.

A partir daí, o terror brasileiro ganha em volume, diversidade e qualidade.

O terror de hoje

A professora define a nova safra do terror brasileiro como um leque de realizadores liberados pelo "prisma" de 2008.  A diversidade é a marca: de um lado, estão aqueles que fazem filmes que "tangenciam o terror" para falar de crises sociais (como Marco Dutra e Juliana Rojas); de outro, o "lado mais radical", fiel à estética visceral (com diretores como Rodrigo Aragão e Paulo Biascaia Filho).

“É bastante variado o horror brasileiro. Ele é numeroso e variado, dependendo de como você encara o gênero”, destaca. 

Enquanto isso, Primati destaca que o terror brasileiro é inovador. “O bom do horror brasileiro é que ele é muito original, ele é muito ousado, não fica apostando em fórmulas seguras”, aponta.

O especialista também avalia a presença feminina na direção. “Não só temos mulheres fazendo filmes de terror no Brasil, como muitos dos principais filmes de terror feitos no Brasil contemporâneo são feitos por mulheres. Eu posso mencionar a Gabriela Amaral Almeida, que fez ‘A Sombra do Pai’ e o ‘Animal Cordial’; a Anita Rocha da Silveira, que fez o ‘Medusa’, que é um filme que lida com o avanço moralista do evangélico pentecostal”, cita. 

Já o  roteirista, diretor e professor de cinema, Renné França, destaca que o terror brasileiro vive um momento de "mistura" interessante, onde a temática e os personagens nacionais encontram uma estética importada de Hollywood.

"Muitas vezes o filme vai trazer uma situação histórica específica que tem a ver com o contexto do Brasil ou são pessoais do folclore brasileiro, mas numa estética muito dos filmes de terror de fora. Então, tem uma mistura assim de uma temática e de personagens que são bem brasileiros, mas com o modelo de fotografia, de som, de montagem do terror de Hollywood ainda, aí fica essa coisa meio misturada”, define.

Apesar disso, ele vê um processo gradual em curso. "Eu acho que está acontecendo aos poucos um processo de a gente encontrar o nosso próprio jeito de também filmar o terror. E eu acho que, com a chegada de maiores investimentos ou uma aposta maior, a gente vai caminhar para a gente ter até uma uma uma estética própria de terror que foge um pouco do clichê básico mesmo”, avalia. 

'Mata Negra', filme do capixaba Rodrigo Aragão

reprodução

Ele nota, contudo, que as produções de maior porte ainda demonstram cautela em investir totalmente no gênero. “O que eu sinto é que essas produções maiores, que elas buscam um público maior, elas ainda têm um pouco medo de falar medo no filme de terror, de ir no terror total, para tentar atrair mais gente”, destaca.

O que assusta o brasileiro?

Diretor de “Terra e luz” (2017) e filmando um novo longa intitulado “Famaliá”, França aposta que o futuro do terror nacional passa por explorar medos intrínsecos à cultura brasileira. "Eu acho que no Brasil as  questões passam muito por você conseguir olhar e perceber o que que dá conta de assustar o brasileiro e trabalhar a partir disso”, indica.

Ele identifica o medo de espírito e fantasma como algo ligado ao "âmago do brasileiro", reforçado pelo fenômeno dos filmes espíritas, mas também o medo do diabo. "Esse filme que eu tô fazendo agora é sobre o Cramulhão, o Diabo na Garrafa. Porque é um uma história que todo mundo tem medo. Diabo é uma coisa que o brasileiro tem muito medo. Até ateu brasileiro acredita no diabo. Você pode não acreditar, mas tem medo de fazer algumas coisas”, analisa.

França também avalia que o True Crime deve ser cada vez mais aproveitado no mundo do terror. "Eu acho que o True Crime pega muito nessa curiosidade mórbida que a maioria dos brasileiros tem, que já era antes muito presente em programas populares de final de tarde e em jornais mais populares", explica.

“Quando tem um depoimento que tira a pessoa um pouco da ficção, faz ela pensar que aquilo se aproxima da verdade. E aí depois, com imagens de arquivo ou alguma dramatização, você entra no jogo da ficção de novo. Eu acho que já tem várias produções futuras sendo pensadas a partir dessa estrutura do true crime”, pontua. 

O formato usado em produções true crime é adotado pelo cineasta em sua nova produção. “Eu estou usando como referência muito dos causos e lendas brasileiras e o True Crime, porque ele tem um formato meio de documentário. É um filme que usa muito imagens de celular. Eu tentei misturar várias texturas de imagem para trazer essa ideia das câmeras e de câmeras filmando coisas que não deveriam filmar”, dá o spoiler. 

‘Terra e luz’

Nas duas produções, para fugir das "armadilhas de lidar com a própria realidade do Brasil" e do longo processo burocrático de editais, França optou por um modelo de produção mais ágil e independente, adaptado à sua realidade e à de sua equipe. Em “Terra e luz”, a história se passa em um mundo pós-apocalíptico. 

“Eu criei uma outra realidade em que eu consegui fugir dessa armadilha de lidar com a própria realidade do Brasil. O mundo no futuro não tem mais sociedade, não tem mais nada”, conta.

René França explica que a ideia  do filme surgiu no ambiente acadêmico no Instituto Federal em que ele dava aulas. “Eu cheguei para dar aula no curso de cinema, falei que eu tinha uma ideia de um filme e os professores falaram: 'OK, vamos te ajudar a fazer'. Pegaram as câmeras e aí eu nunca tinha feito nada, não tinha experiência prática, nem de visitar set de filmagem e fiz esse longa metragem”, pontua.

Ele destaca a velocidade do processo, motivada pelo fato de ser uma produção independente e colaborativa, "sem dinheiro nenhum": "Eu escrevi o roteiro em maio de 2015 e o filme tinha acabado de ser filmado em novembro de 2015. Então, o processo foi rápido por causa disso. A gente montou em 2016 e foi lançado em 2017”, lembra.

Todo o processo foi feito sem recursos específicos ou editais. “Teve a dificuldade da produção sem dinheiro nenhum, mas ao mesmo tempo houve a facilidade de estar com pessoas próximas que fizeram acontecer”, avalia.

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A produção de “Famaliá” segue o mesmo modelo. "Eu escrevi o roteiro no início desse ano e a gente começou a filmar no final de setembro... A gente está filmando quando dá. Não tem um cronograma de filmagem normal. A gente monta uma agenda quando dá para todo mundo... a gente se reúne e filma e filma”, conta.

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