HORROR VERDE E AMARELO

No Halloween, relembre o nascimento do terror brasileiro com Zé do Caixão

Ícone do cinema nacional, Zé do Caixão deu origem ao terror brasileiro e desafiou censura, moral e religião com seu horror ousado e filosófico

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“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência!” Esse é o monólogo que iniciou a produção de filmes de terror no Brasil. O responsável era José Mojica Marins (1935-2020), o eterno Zé do Caixão.

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Em 1964, ele lançava o longa “À meia-noite levarei sua alma”, considerado o primeiro filme de terror do cinema brasileiro. De acordo com Carlos Primati, que é membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abranccine) e pesquisador do cinema fantástico e de terror, explica que até já tinham sido lançados outros filmes com elementos do gênero, mas que o horror se inicia com a produção de Mojica.

Made with Flourish

“Eu considero o Zé do Caixão o primeiro. Porque existiram outros filmes antes, mas o que se propõe, o que se autodenomina filme de terror, é ele. E é o que estabelece uma linguagem, uma estética do cinema de horror", aponta. 

Dedicado a décadas à obra de Mojica, Primati crava que Zé do Caixão é uma entidade “inigualável, única e irrepetível na história do cinema mundial”. O coveiro sádico que procura a mulher ideal para gerar um filho, com unhas longas e retorcidas, barba espessa, sobrancelha arqueada, olhos injetados de puro ódio e desprezo está de tal arraigada no imaginário popular que se tornou um monstro de cultura pop que transcendeu os filmes.  Afinal, é quase impossível citar uma produção de terror brasileira que não tenha sido inspirada – conscientemente ou não – na criação de Mojica.

De onde veio Zé do Caixão?

Não se sabe exatamente como surgiu a ideia do personagem icônico. Reza a lenda que Mojica criou Zé do Caixão depois de ter um pesadelo em 1963. A partir daí, ele começou a trabalhar no roteiro do filme.

Na hora de gravar veio um impasse: Mojica não encontrou um ator que topasse dar vida àquele ser tão único. Foi então que ele se viu obrigado a fazer a jornada dupla de direção e interpretação. 

A personalidade de Mojica era importante para ser o Zé do Caixão, e ele acabou sendo conhecido como o personagem até o final da vida. Mas a criatura superou o criador. Um dos pontos-chave para que a figura fisgar tanto o público é uma identificação com a realidade brasileira, algo que o diferenciava de qualquer monstro importado dos filmes de Hollywood. 

“O Zé do Caixão é um personagem bem brasileiro. Porque, embora o Mojica seja um cara da cidade de São Paulo, as histórias do Zé do Caixão se passam num povoado não identificado, que lembra uma cidadezinha do interior. Ele é um cara ateu, inconformado, que tem um discurso muito eloquente, porque ele é um vilão, mas ao mesmo tempo ele quer libertar as pessoas da subserviência às autoridades, à igreja e aos políticos. Ele contesta os valores da sociedade”, destaca.

Mas por trás disso tudo, há um vilão insano. “Ele é obviamente louco. Ele é um idiota, um maluco, um cara desconectado com a realidade. Só que o carisma e a eloquência dele levam a gente a achar que ele tem um plano eloquente”, explica. 

Vários terrores em um só

Outro ponto importante é que, já no primeiro filme, Mojica consegue transitar por vários sub-gêneros do terror. Essa característica segue presente nos outros filmes do personagem. 

“O Mojica começa o filme como um típico melodrama gótico, que é o marido que se livra da esposa. Depois, a gente vai pro terror físico, pro terror da agressão, em que ele fura os olhos da pessoa, bota fogo, arranca os dedos com uma garrafa quebrada … então tem todo o horror gráfico que entrega essa  ousadia do Mujica de fazer terror explícito”, destaca Primati.

Só que, depois que tomou a cachaça que encontrou em um despacho, Zé passa a ver espíritos. “Ele ser anti-cristianismo é relativamente padrão, digamos assim. Mas quando ele mostra que ele não respeita o despacho da esquina, ele também não está se vinculando com o que na época era considerado ‘forças do mal’. Ele é contra todas as religiões. Só que aí, ele começa a ver fantasmas e até fala que foi uma alucinação. Ele enlouquece e morre de medo”, descreve. 

É aí que vem o terror psicológico: “Mojica era muito gênio, porque ele conseguiu construir um filme que sai do gótico, vai para o terror explícito, flerta com o sobrenatural, mas na verdade lida com o horror psicológico. E o Mojica influencia vários cineastas de maneira consciente ou não, justamente com esses estados perturbados da mente, loucura, delírio, alucinação… todos os filmes dele lidam com a mente”, avalia.

Transgressão e perseguição

A obra de Mojica é inseparável do contexto político e social em que nasceu. Nos anos 60 e 70, sob a Ditadura Militar, a sociedade brasileira era controlada por um rígido moralismo católico. O cinema de Mojica era, essencialmente, um ato de rebeldia.

Mojica Marins como Zé do Caixão em 'À meia noite levarei sua alma'
Mojica Marins como Zé do Caixão em 'À meia noite levarei sua alma' Reprodução

O personagem Zé do Caixão era ateu, blasfemo, profanador de tabus e sexualmente perturbador para a época, o que lhe rendeu a fúria da Censura. Seu cinema era uma afronta direta aos "bons costumes" do regime, utilizando o horror para cutucar o conservadorismo e a hipocrisia social. Por isso, não dá para separar Zé do Caixão da luta de Mojica contra a censura. 

Outro ponto de transgressão vem do próprio cinema. Mojica rejeitava a estética polida do cinema europeu e dos grandes estúdios, optando por um visual visceral, low-budget e potente. A grande inspiração vinha de manifestações populares como o circo e os quadrinhos. 

"É claro que ele sofre com isso de o medo envelhecer, já que algumas coisas que eram assustadoras na época e vão perdendo. Você vai vendo várias coisas que eram para chocar e o telejornal é mais chocante hoje do que aquilo que era mostrado ali. Mas eu acho que tem uma construção de suspense, de clima e do personagem do Zé do Caixão em si, do José Mojica, que eu acho muito poderosa ainda hoje”, pontua o professor, roteirista e direitor de Cinema, Renné França. 

Zé imortal

Além de “À meia-noite levarei sua alma”, outros dois filmes foram a principal trilogia do Zé do Caixão: “Esta noite encarnarei no teu cadáver”, de 1967, e “Encarnação do demônio”, de 2008, que também foi a última produção de Mojica em vida. Vale destacar que o capítulo final não só dá um desfecho para a história do personagem como inicia um novo momento do cinema – mesmo que o filme não tenha agradado o público e a crítica. 

Com capa, cartola e unhas longas, Zé do Caixão se tornou um ícone do terror
Com capa, cartola e unhas longas, Zé do Caixão se tornou um ícone do terror Reprodução

“O filme não é muito bom mesmo. Mas ele coincidiu com a chegada do digital e apontou alguns caminhos. O ‘Encarnação do demônio’ se mistura muito com aquela coisa do ‘Favela Movie’, do filme de crime, uma coisa meio ‘Tropa de elite', ‘Carandiru’ e ‘Cidade de Deus’. E aponta para um tipo de mistura do horror com a violência urbana que é muito forte para diretores como Gabriela Amaral Almeida, Marco Dutra, Kleber Mendonça Filho e Denilson Ramalho”, ressalta Laura Cánepa, professora do programa de pós-graduação em Comunicação da Unip, doutora em Multimídia pela Unicamp e pesquisadora do cinema de horror.

E surge uma diferença importante: na década de 1970, vários diretores tentavam replicar o sucesso de Mojica. “Ali ele teve uma importância mercadológica. Em 2008, quando ele lançou o filme, ele acabou apontando para um direcionamento mais temático. Claro que ele não fez isso sozinho, mas ele meio que capta o espírito do tempo”, avalia. 

"Mas 2008 é, de um lado, o retorno do Mojica e, de outro, o digital. E aí com isso essa geração consegue embarcar numa onda que agora está bem forte mesmo”, conclui.

José Mojica Marins faleceu em 2020, mas o Zé do Caixão permanece. É um legado de terror que garante: no Brasil, o medo jamais será enterrado.

Além do Zé do Caixão

Zé do Caixão é imortal, mas não é o único personagem de Mojica: 

  • Dr. Honório (“Horas fatais: cabeças trocadas”, 1987) -  delegado corrupto e inescrupuloso que esconde os crimes de um estuprador e assassino que é filho de um poderoso juiz;
  • O Profeta (“Finis Hominis”, 1971): Um homem nu aparece na praia e se torna uma espécie de profeta-celebridade;
  • Prof. O.O.T.M. (“O segredo da múmia”, 1971) - cientista com traços sádicos e fetichistas;
  • Repórter Mauro (“Mundo: mercado do sexo”, 1979) - repórter que depende de manchetes espetaculares e sensacionalistas. 
  • Dr George Medeiros (“Inferno carnal”, 1977) - brilhante cientista que vê a esposa traí-lo com o amigo, jogar ácido em seu rosto e o deixar desfigurado.  

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