
As poucas e exatas palavras de Jaime Prado Gouvêa
Fabrício Marques, Humberto Werneck e João Barile homenageiam os 80 anos do contista e romancista mineiro de poucos livros e muito talento
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Especial para o EM
Artista de poucas e exatas palavras
Seria muito bom entrar na livraria dia desses e topar com livro novo de Jaime Prado Gouvêa. Lá estaria ele, a engordar as obras completas do autor, compostas pelo romance “O altar das montanhas de Minas” e por “Fichas de vitrola & outros contos”.
Seria muito bom – mas quem pode garantir que vá acontecer? Jaime, que no próximo dia 5 chega aos 80 anos, é um caso raro de escritor que depois de dar o seu recado fecha o botequim e vai cuidar de outra coisa, ou de coisa alguma. Aprendeu a lição que o Rei de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, dá ao Coelho, quando este lhe pergunta o que fazer em determinada situação. “Comece pelo começo”, receita Sua Majestade, “vá até o fim – e então pare”. Preciosa recomendação. Já reparou quanta gente, não só no ramo da escreveção, chega ao fim, mas continua?
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Viva o poeta Rimbaud, que, aos 21 anos, tendo dito o que tinha a dizer, aposentou a lira e foi traficar armas na África. Mais perto de nós no tempo e no espaço, o Raduan Nassar, que ainda jovem, depois de duas obras-primas, “Lavoura arcaica” e “Um copo de cólera”, demitiu-se da literatura. Cobrado o tempo todo a partir de então, só bem mais tarde aceitou exumar e pôr em livro os contos de “Menina a caminho”.
Viva também Murilo Rubião, autor de 51 contos que, filtrados e interminavelmente retrabalhados, resultaram em 33 diamantes.
Admirador de Murilo, que o levou para o Suplemento Literário do Minas Gerais, Jaime usou rigor igual na administração de sua escrita – não fosse ele de poucas e exatas palavras até mesmo na conversação. Submeteu a uma peneira implacável as três coletâneas de contos que publicou entre 1970 e 1986 – “Areia tornando em pedra”, “Dorinha Dorê” e “Fichas de vitrola” –, e daqueles 42 relatos descartou mais da metade. Não poupou sequer os três que em 1969 lhe valeram prêmio nacional num disputado concurso no Paraná. Aos 18 sobreviventes ele acrescentou três inéditos em livro e nos deu o irretocável “Fichas de vitrola & outros contos”.
Mas não se limitou a descartar: os escritos que passaram pela peneira tiveram de passar também por um processo que outro perfeccionista, Otto Lara Resende, chamaria de “despiorar”, no qual uma simples vírgula tem que justificar presença. Ao Otto, aliás, devemos uma observação que os incontinentes literários deveriam considerar: “Um escritor pode também não escrever”. E, quando escreva, lhe valha o alerta de José Carlos Oliveira: “Palavra é sangue. Não se derramar.”
Com a autoridade de quem o encontrou nos nossos 14 anos, e com ele segue encontrado desde então, posso apostar que Jaime tem gaveta bem mais suculenta do que muito livro publicado. Penso, ao acaso, em “Lembrança desta minha casa” e “A barata e as cigarras e o fim de século”, duas raras incursões deste fino prosador pela crônica, gênero em que teria sido dos melhores.
Tem mais livro bom na gaveta dele? Desconfio que tem. Se vai sair de lá, é outra história.

Capa do livro "Fichas de vitrola e outros contos"
O chefe
Especial para o EM
Fabrício Marques
No início de 2009, recebi um e-mail do escritor Jaime Prado Gouvêa convidando-me para colocar meu nome no conselho editorial do Suplemento Literário de Minas Gerais, dirigido por ele. Como não sou bobo nem nada, aceitei, figurando ao lado de Humberto Werneck, Eneida Maria de Souza, Sebastião Nunes e Carlos Wolney. Alguns meses depois, passei a participar também da redação do jornal, que então funcionava no anexo do Museu Mineiro, ao lado do Arquivo Público Mineiro.
Nos três anos seguintes, tive o privilégio de conviver intensamente com o escritor forjado na geração Suplemento, na época pesada do fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 (seus companheiros de geração não se restringiram aos escritores: ele dividiu grandes papos de boteco com o compositor Fernando Brant).
Era muito trabalho, conversa e aprendizado. Num especial sobre o escritor Osvaldo França Júnior, ele encomendou uma entrevista com Paulo Tiago. Jaime me orientou a abordar o diretor do filme “Jorge, um brasileiro” sobre o fato de França não querer assessorar o diretor no roteiro porque achava que não sabia "escrever para ser visto". Coisas assim.
Vi de perto sua aversão aos holofotes e sua fina ironia. Certo dia, perguntei em qual conto dele saíra uma citação de Fitzgerald (“Na noite profunda e escura da alma, são sempre três horas da madrugada”). Era “A nossa infância”. Ou seja, o chefe (como eu passei a chamá-lo desde aquele tempo) sempre levou a sério a literatura.
Noutra ocasião, me mostrou um texto que escreveu para o “Aliás”, do Estado de S. Paulo, na época do chamado mensalão, em 2005 – com a seguinte ressalva: “Se tiver muita besteira, releve, por favor. É que, por pudor (sim, isso ainda existe!), não a reli.”
Sobre sua escrita refinada, lembro de uma entrevista dele para o jornal “Brasil Econômico”, em 2010, em que afirmou: “Considero que o prazer do texto está nas descobertas que faço enquanto escrevo, os pequenos acidentes, quando os personagens ganham vida própria. Não raro, eles zombam de mim no final.”
Raramente sai dos contornos da Savassi, na capital mineira, mas esteve em 2010 em São Paulo para participar de um evento literário. Um dos presentes, o poeta Donizete Galvão, comentou, ao final: “Que grande figura é o Jaime Prado Gouvea. Despido de qualquer retórica, tão simples e tão sofisticado em seu humor. É um lorde com jeito de mineiro. E é também um homem muito elegante.”
Agora, brindando seus 80 anos, podemos presenteá-lo revisitando seus livros.

Capa do livro O altar das montanhas de Minas
Nem eu, Sérgio. Nem eu
João Pombo Barile
Especial para o EM
Mesmo correndo o risco de cair no lugar comum, inimigo número um do escritor Jaime Prado Gouvêa, sempre lembro da famosa (e batida) frase de André Gide quando penso na obra do autor de “Fichas de Vitrola”. Afirma o Nobel francês: “Escrevi e ainda estou disposto a reescrever o que me parece uma verdade evidente: faz-se má literatura com bons sentimentos. Nunca disse nem pensei que só se fazia a boa literatura com maus sentimentos. Também poderia ter escrito que as melhores intenções realizam as piores obras de arte e que, ao desejar sua arte edificante, o artista se arrisca a rebaixá-la”.
A frase de Gide é mesmo a cara do Jaime. Um dos mais refinados autores de sua geração, e olha que esta turma teve nomes como Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu, ele sempre pagou um preço meio alto por nunca ter cedido a modismos. Em tempos onde a literatura, para ser lida e cultuada tem que ser necessariamente engajada, não me causará nenhum espanto se os seus oitenta anos, que completará no próximo dia 5 de fevereiro, passem meio batido. Seu “Concerto para Berimbau e Gaita” é, sem nenhum exagero ou favor, um dos melhores contos escritos no Brasil nos últimos cinquenta anos. Mas de engajado não tem nada. E aí, já viu: a turma não se interessa.
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“Você sabe se o Jaime está escrevendo? ”, me perguntou o inesquecível Sérgio Sant’Anna, na última vez que estive com o escritor, no Rio em 2018, pouco antes de começar a pandemia que mataria milhares de pessoas, e também Sérgio. “Nunca entendi direito porque o Jaime parou de escrever”, me disse o contista carioca naquela tarde.
Nem eu, Sérgio. Nem eu.