
Impacto e desconforto no novo livro de Camila Maccari
Em narrativa densa e incômoda, escritora gaúcha apresenta em 'Infinita' uma mulher gorda que confronta as lembranças de opressões e de desprezo
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Especial para o EM
Nas histórias criadas pela escritora gaúcha Camila Maccari, um elemento que muito me agrada é a voz narrativa. Em seus dois livros, “Dias de se fazer silêncio” e “Infinita”, ambos publicados pela Autêntica Contemporânea, há uma narração em terceira pessoa, mas intimamente próxima às protagonistas, funcionando como uma espécie de duplo, ao expressar-se junto com as personagens e quase se passar por elas. Quase, contudo – porque a voz narrativa assume também distanciamento, a fim de abarcar certa onisciência em relação à história contada, e a credibilidade necessária para conferir legitimidade ao mundo (interno e exterior) que instaura.
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Na obra mais recente, “Infinita”, a protagonista é uma mulher gorda que acaba de vivenciar um evento disruptivo, gerador de uma mudança fundamental no modo com que ela vive e se percebe até então: depois de sair do trabalho, contrariando seus hábitos, vai a um bar – sozinha – tomar uma cerveja e a cadeira na qual está sentada se quebra a ponto de fazê-la cair no chão.
Há algo que se rompe também dentro da protagonista, e de maneira inexorável, sem volta. O fato dispara um turbilhão de memórias e de sentimentos, promovendo um doloroso confronto com o alheamento de si que as opiniões e interferências alheias (pais, médicos, colegas, amantes etc.) sempre lhe provocaram. Durante toda sua vida, os outros reduziram-na a um “corpo errado”, não só ignorando a pessoa que ela era mas transformando-a em inimiga declarada desse mesmo “corpo errado” – horrendo, desobediente, desafiador.
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Para a protagonista, cujo nome, aliás, nunca é dito, a cadeira quebrada e a queda no chão escancaram a constatação feroz e definitiva de que ela não cabia, nunca coube e literalmente jamais caberá no lugar que a sociedade e o senso comum lhe permitem ocupar, custe o que custar: dietas, privações, humilhações, solidão, desamor.
Ela até cumpre certas expectativas sociais: tem um namorado legal e um emprego em agência publicitária que lhe consome horas extras, mas – é essa conjunção adversativa que dói – pesa 146 quilos. Passagens específicas da vida da personagem, organizadas segundo o desenrolar do tempo e o sobe-e-desce do peso, intercalam os capítulos e têm início aos 7 anos de idade e 45 quilos, quando “a mãe percebeu que ela era definitivamente uma criança gorda” e lhe transferiu a responsabilidade moral e prática sobre os resultados que viriam a ser colhidos – ou não.
Direito à perversidade
A voz narrativa habilmente elaborada por Camila Maccari consegue colocar os leitores numa posição desconfortável de testemunhas, cúmplices não só das decisões surpreendentes da protagonista mas também do guloso senso comum, que a julgou ininterruptamente desde a infância. Contudo, em determinado momento, desponta outra voz, que, aos poucos, vai dominando sutilmente o pensamento da mulher e parece escapar à narração usual. Registrada em itálico, dirige-se a um “você”, recorrendo muitas vezes ao “nós”. Essa segunda voz, entranhada, reivindica o direito à perversidade e, por consequência, à libertação do “eu” oprimido por um corpo socialmente renegado. É chegada a hora, finalmente, da autonomia – e da revanche.
A cadeira quebrada desencadeia, portanto, um exacerbado processo de consciência de si. As lembranças, que vêm “como ratos escapando dos bueiros”, são revividas com tintas ainda mais saturadas. A apatia inicial, fruto da implacável sensação de fracasso, dá lugar à obstinação. “Certa vez leu que, para abrir mão do passado, é imprescindível abrir mão do futuro, daquele idealizado que sempre seria perfeito simplesmente porque não pôde existir.” A mulher abandona o domínio do aceitável e se apropria do abjeto, do ininteligível.
A história se passa no período de poucos dias, entre a tarde fatídica no bar e a data da festa de aniversário de 30 anos da protagonista. Embora o livro tenha cerca de 180 páginas, a narrativa é densa e incômoda. A tensão se instala gradualmente. Trata-se de uma obra impactante, escrita com fervor (daí as minúcias, as reiterações). Ao criar uma protagonista mulher e gorda, no limite de sua tolerância consigo e com o mundo, a autora interpela as estruturas de controle social e lida literariamente (ou seja, dentro da própria tessitura narrativa) com reflexões a respeito da ingerência sociocultural sobre os corpos gordos – sobretudo gordos e femininos – e da falácia dos certos imperativos para uma “vida saudável”, que disfarçam estratégias mercadológicas.
“Infinita” pode ser tanto o modo com que a sociedade vê a personagem (gigantesca) quanto o que ela mesma almeja tornar-se (inacabável, sem limites). Renunciando de uma vez por todas à postura subserviente, ela, a Infinita – para enfim nominá-la –, toma as rédeas de seu presente e escolhe os ingredientes para o banquete com o qual nunca pôde se refestelar. Nós, leitoras e leitores, não conseguimos escapar. O livro nos devora.
Maria Fernanda Vomero é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)

Capa do livro "Infinita"
“Infinita”
• De Camila Maccari
• Autêntica Contemporânea
• 182 páginas
• R$ 64,90
Do ponto de vista narrativo, quais as diferenças entre “Dias de se fazer silêncio” e “Infinita”?
Ambos não narrados em terceira pessoa, mas enquanto “Dias de se fazer silêncio” está colado na personagem, quase sem diferenciação entre a própria consciência dela e o narrador, em Infinita a terceira pessoa tem um distanciamento ao contar a história. Mesmo assim, em “Infinita”, a gente se depara com uma segunda voz narrativa que assume totalmente os pensamentos da protagonista, uma segunda voz que, na verdade, é uma primeira, ela contando a própria história para si mesma, transformando em palavra tudo o que tinha vivido até então - em “Dias de se fazer silêncio”, isso não acontece, e a gente vê a criança sem saber como lidar com os próprios pensamentos. Em “Infinita”, ela dá forma a eles, nesse discurso interno que, em diferentes medidas, todos temos.
O que foi mais difícil para escrever “Infinita”?
Emocionalmente falando, a história em si foi bastante desafiadora por causa do tema, um processo exaustivo que me mobilizou inteira e do qual eu saí drenada, sem mais nada para dar e tendo ainda que dar muito, porque precisava me deparar, depois da primeira versão, com um processo de edição. Do ponto de vista técnico, o mais complicado foi conseguir encaixar naturalmente a segunda pessoa no texto, fazer com que essa voz fizesse sentido e aparecesse exatamente no momento que precisava aparecer. Foi um quebra-cabeça que demandou atenção e muito trabalho, justamente num ponto em que eu sentia que já tinha dado tudo o que tinha para o livro. Além disso, durante o processo de escrita, foi me deparar com as possibilidades de leituras que o livro teria, a busca do eventual leitor pelo autobiográfico, quando essa não era uma chave de leitura que eu estava propondo e que, pelo contrário, sentia que enfraqueceria a história.
Como transformar um corpo em palavras?
Acredito que tudo vira realidade a partir do momento em que transformamos em palavra - acho que isso é o que fazemos ao falar sobre o que nos passa, sobre nossos sentimentos, ao escrever nossas próprias histórias. Transformar um corpo que é, também, uma ideia de corpo demanda viver em um, ver quem vive em um, estar atenta ao mundo - aquele distante e aquele cotidiano. Falo em ideia de corpo porque, no caso da personagem, mais que o corpo em si, o que ela carregava era todo o estigma e as projeções que eram feitas a partir desse corpo, então o processo de nomeá-lo, distinguir suas partes, escancará-lo vem de uma tentativa de transformá-lo, pra além de tudo isso, em algo real, tangível.
Trecho do livro
“Um docinho pra gente se desculpar pelo ocorrido, e, nessa hora, ela olhou bem para os olhos dele, olhou para o seu rosto inteiro e viu que talvez o sorriso que estava ali não fosse apenas amistoso ou inocente, não era de alguém que se desculpava de coisa nenhuma, que lamentava de verdade ter colocado a integridade de uma cliente em risco, era ele dizendo vai, gorda, toma aqui pra você continuar se entupindo de doce, é isso que você faz, não é?, vai gorda, toma aqui pra você continuar a ser gorda.
Sustentou o olhar com uma determinação que não sabe de onde saiu, pegou o doce e agradeceu, muito obrigada, ah, muito obrigada. Já se sentia destruída demais e sabia que, às suas costas, seria ainda mais destruída. Porque é isto: pode ter sido a primeira vez que quebrou uma cadeira, mas não era a primeira vez que existia no mundo. Negar o doce seria expor a própria fragilidade de novo e não precisava disso agora.
Quebrar a cadeira já tinha feito o serviço, provando que, para ela, o mundo não era um lugar totalmente seguro, ela não podia simplesmente ir na onda e ficar à vontade, estar alerta era um pré-requisito para a própria existência, e ela fracassou ao ignorar tudo isso e se sentar naquela cadeira despreocupadamente. Colocou o doce na bolsa e saiu porta afora, olhou para o lado apenas para encarar mais uma vez o garçom que lhe estendeu a mão assim que ela caiu, respondeu ao breve aceno de cabeça que ele lhe deu, chegou à rua com o nó imenso bloqueando a garganta e teve a certeza da explosão geral de gargalhadas às suas costas, todo mundo rindo, sem exceção, funcionários e clientes ligados por um sentimento vacilante de união, agora todos colegas, todos iguais, todos parte desse grupo cujo denominador comum era não serem ela.”
Do ponto de vista narrativo, quais as diferenças entre “Dias de se fazer silêncio” e “Infinita”?
Ambos não narrados em terceira pessoa, mas enquanto “Dias de se fazer silêncio” está colado na personagem, quase sem diferenciação entre a própria consciência dela e o narrador, em Infinita a terceira pessoa tem um distanciamento ao contar a história. Mesmo assim, em “Infinita”, a gente se depara com uma segunda voz narrativa que assume totalmente os pensamentos da protagonista, uma segunda voz que, na verdade, é uma primeira, ela contando a própria história para si mesma, transformando em palavra tudo o que tinha vivido até então - em “Dias de se fazer silêncio”, isso não acontece, e a gente vê a criança sem saber como lidar com os próprios pensamentos. Em “Infinita”, ela dá forma a eles, nesse discurso interno que, em diferentes medidas, todos temos.
O que foi mais difícil para escrever “Infinita”?
Emocionalmente falando, a história em si foi bastante desafiadora por causa do tema, um processo exaustivo que me mobilizou inteira e do qual eu saí drenada, sem mais nada para dar e tendo ainda que dar muito, porque precisava me deparar, depois da primeira versão, com um processo de edição. Do ponto de vista técnico, o mais complicado foi conseguir encaixar naturalmente a segunda pessoa no texto, fazer com que essa voz fizesse sentido e aparecesse exatamente no momento que precisava aparecer. Foi um quebra-cabeça que demandou atenção e muito trabalho, justamente num ponto em que eu sentia que já tinha dado tudo o que tinha para o livro. Além disso, durante o processo de escrita, foi me deparar com as possibilidades de leituras que o livro teria, a busca do eventual leitor pelo autobiográfico, quando essa não era uma chave de leitura que eu estava propondo e que, pelo contrário, sentia que enfraqueceria a história.
Como transformar um corpo em palavras?
Acredito que tudo vira realidade a partir do momento em que transformamos em palavra - acho que isso é o que fazemos ao falar sobre o que nos passa, sobre nossos sentimentos, ao escrever nossas próprias histórias. Transformar um corpo que é, também, uma ideia de corpo demanda viver em um, ver quem vive em um, estar atenta ao mundo - aquele distante e aquele cotidiano. Falo em ideia de corpo porque, no caso da personagem, mais que o corpo em si, o que ela carregava era todo o estigma e as projeções que eram feitas a partir desse corpo, então o processo de nomeá-lo, distinguir suas partes, escancará-lo vem de uma tentativa de transformá-lo, pra além de tudo isso, em algo real, tangível.
Trecho do livro
“Um docinho pra gente se desculpar pelo ocorrido, e, nessa hora, ela olhou bem para os olhos dele, olhou para o seu rosto inteiro e viu que talvez o sorriso que estava ali não fosse apenas amistoso ou inocente, não era de alguém que se desculpava de coisa nenhuma, que lamentava de verdade ter colocado a integridade de uma cliente em risco, era ele dizendo vai, gorda, toma aqui pra você continuar se entupindo de doce, é isso que você faz, não é?, vai gorda, toma aqui pra você continuar a ser gorda. Sustentou o olhar com uma determinação que não sabe de onde saiu, pegou o doce e agradeceu, muito obrigada, ah, muito obrigada. Já se sentia destruída demais e sabia que, às suas costas, seria ainda mais destruída. Porque é isto: pode ter sido a primeira vez que quebrou uma cadeira, mas não era a primeira vez que existia no mundo. Negar o doce seria expor a própria fragilidade de novo e não precisava disso agora. Quebrar a cadeira já tinha feito o serviço, provando que, para ela, o mundo não era um lugar totalmente seguro, ela não podia simplesmente ir na onda e ficar à vontade, estar alerta era um pré-requisito para a própria existência, e ela fracassou ao ignorar tudo isso e se sentar naquela cadeira despreocupadamente. Colocou o doce na bolsa e saiu porta afora, olhou para o lado apenas para encarar mais uma vez o garçom que lhe estendeu a mão assim que ela caiu, respondeu ao breve aceno de cabeça que ele lhe deu, chegou à rua com o nó imenso bloqueando a garganta e teve a certeza da explosão geral de gargalhadas às suas costas, todo mundo rindo, sem exceção, funcionários e clientes ligados por um sentimento vacilante de união, agora todos colegas, todos iguais, todos parte desse grupo cujo denominador comum era não serem ela.”