A dor do luto e o desejo de viver no primeiro romance de Juliana Monteiro
Radicada na Itália desde 2014, jornalista brasileira investiga algumas de suas próprias obsessões no livro 'Nada lá fora e aqui dentro'
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Siga noEm “Nada lá fora e aqui dentro”, estreia da jornalista Juliana Monteiro como romancista, a protagonista chama-se Loretta Sanches. Ela vive de traduções. Poderia ter tentado a vida como escritora, mas não queria estar à sombra da mãe, uma mulher brilhante. Loretta é uma boa esposa, boa mãe para os dois filhos, melhor do que Olívia foi para ela, “relapsa”, pensava. Meio brasileira, meio italiana, aos 42 anos já estava na “meia-idade”. Loretta não era velha demais, nem nova demais, não pertencia a lugar algum, não tinha ambições e existiu entre tantas metades medíocres que carecia de qualquer pulsão de vida até ficar mais perto da morte.
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Do lado de fora, o mundo passava por um isolamento social em decorrência da pandemia da Covid-19. Por dentro, Loretta lidava com a ausência de si mesma e o vácuo emocional que a falta do “querer” deixou. Quando Olívia Sanches se tornou apenas mais um entre os milhões de corpos enterrados sem honrarias e despedidas, Loretta sentiu raiva e, ao olhar para o corpo da mãe, a mulher emblemática, ambígua, grande demais e finita, quis olhar para si.
Longe do marido e dos filhos, Loretta se ocupou em viver o luto no apartamento da mãe, em Nápoles, na Itália. Aconchegada no vazio cheio de coisas “inúteis” para se sentir mais filha, pode conhecer Olívia Sanches como mulher. “Um dos desafios da vida é fazer do ser que nos pariu alguém que a gente possa olhar”, contou a autora brasiliense Juliana Monteiro.
Jornalista e escritora, por quase 10 anos Juliana foi livreira e curadora de um espaço cultural que manteve em Brasília, sua cidade natal. Em 2014 mudou-se para Roma, onde vive com os dois filhos. É coautora, com Jamil Chade, do livro “Ao Brasil, com amor”, publicado em 2022.
A narrativa de “Nada lá fora e aqui dentro” é detalhada e lenta, mas não se arrasta. A protagonista soltou as rédeas da dor e do desejo para descobrir até onde isso a levaria. Sem tentar controlar a própria história, Loretta desafia as convenções de sua existência enquanto mulher: se aproxima das amigas, vive um romance com um desconhecido e finalmente começa a escrever, contrariando a antítese que se propôs a ser da própria mãe.
Juliana rejeita a ideia de autobiografia, mas conta ao Estado de Minas que usou a história de Loretta para investigar muitas de suas obsessões: o corpo, a estrangeirice, os afetos e as relações. Além disso, enxerga o livro como uma forma de registrar a própria indignação com a má gestão da pandemia no Brasil e as dificuldades de viver aquele momento longe do país.
A autora afirma que, “se fosse capaz”, escreveria poesia, pois sente com mais força a influência do lirismo poético que da prosa, característica que transborda em seu novo livro. A afinidade com a literatura foi o que a fez ser jornalista, mas o afastamento das duas áreas é uma preocupação. “Temo que o jornalismo esteja se afastando mais do que o desejável da literatura, no sentido do prazer que acredito que toda leitura deva nos provocar. Quero ‘morrer’ quando vejo uma matéria organizada em tópicos, como uma apostila de concurso”, conta.
Juliana Monteiro faz da literatura sua forma de existir no mundo, que era “pontudo” e a “machucava” em cada movimento que fazia antes de poder viver da escrita. “A literatura acolchoou o mundo para mim, me deu um lugar confortável, aprendi a me mover sem me ferir tanto porque tenho a companhia dos livros. Nunca pensei em fazer outra coisa que não fosse ler e escrever”, contou.
Apesar da relação indissociável com os livros, é crítica da formação que recebeu enquanto mulher e leitora. “Minha formação como leitora foi muito europeia e masculina, era o que tinha. Só nos últimos anos me dediquei a ler autores mais contemporâneos, o que está sendo uma descoberta maravilhosa. No meu altar tem muitos livros. Mas deixo aqui Virginia Woolf, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Susan Sontag, Lygia Fagundes Telles, Elena Ferrante. Para não dizer que não falei dos homens, Cortázar, Sabato, Proust, Stendhal, Dostoiévski”, afirmou.
Ela não esconde que alguns dos nomes citados são referências para ‘Nada lá dentro e aqui fora’. Apesar da Itália de Elena Ferrante ser bem diferente da Itália pandêmica de Monteiro, os dilemas femininos também são protagonistas. Já Lispector e Hilst ganham as primeiras páginas da obra em trechos que se encontram na liberdade e na autodescoberta.
Entrevista / Juliana Monteiro
Há elementos autobiográficos em seu romance?
Quando a gente escreve ficção, não conseguimos não estar. Tenho uma amiga que diz que, quando a gente não se coloca para jogo, não fazemos boa literatura. A Loretta coincide em muitas coisas comigo, ela é ítalo-brasileira, eu sou brasileira, mas moro na Itália; ela tem dois filhos, eu também tenho; eu dei para ela a minha idade e estava atravessando uma “crise de meia-idade” e conversava com outras mulheres que estavam nessa fase. Nós temos um contexto muito parecido, mas eu construí uma personagem oposta a mim mesma e usei a história dela para investigar muitas das minhas obsessões: o corpo, a estrangeirice, os afetos e as relações.
Por que a escolha da pandemia como pano de fundo para a narrativa?
Quando a pandemia começou, eu estava escrevendo uma outra história, mas me senti muito tomada pela pandemia. Eu me desinteressei pelo que estava escrevendo e comecei a ter uma necessidade muito grande de escrever sobre a pandemia na Itália e a inércia do Brasil. Então, essa história começou muito antes de Loretta ganhar corpo e antes de eu seguir com a personagem, eu estava seguindo a minha perplexidade por esse evento mundial. Talvez eu pudesse contar a história da Loretta sem a pandemia, mas esse contexto trouxe para a personagem essa sensação de finitude, de medo e o sentir que o ar estava contaminado. A raiva é um sentimento forte na Loretta, sobretudo pelo que não se fez.
Olívia, mãe de Loretta, é descrita com ambiguidade pela filha: ora relapsa e negligente, ora amorosa. Como foi construir uma personagem cheia de contradições a partir do imaginário da protagonista?
Vou abrir um segredo: a história que eu estava escrevendo antes era a da Olívia, mas eu não me desinteressei por ela. Foi aí que pensei em começar esse livro matando a personagem do livro anterior. Na história dela (Olívia), ela fala de si, em primeira pessoa. Quando a levei para uma narrativa em terceira pessoa, contada pela filha, isso me levou a pensar sobre como nós falamos das nossas mães. A mãe vem antes da mulher e, às vezes, a mulher não chega para os filhos. Eu tentei fazer com que Olívia tivesse muitas lacunas e fosse essa coisa monstruosa que é uma mãe. Uma mãe, até quando falha, é grande demais. Um dos desafios da vida é fazer do ser que nos pariu alguém que a gente possa olhar.
A morte de Olívia também representa a morte da mulher que Loretta era no início da narrativa? Como isso reflete o medo da protagonista de envelhecer?
A Loretta cresceu como grama sob a sombra daquela mãe, com nenhuma pretensão que não fosse ser grama. A partir do momento em que essa sombra sai de cima dela, é hora de ela olhar para o espelho e tirar a “capa” de filha da Olívia. Quando uma mulher chega aos 40 anos, é um marco, como se fosse meio da vida, e aí você se olha e se questiona: “O que estou virando?” e “O que não posso mais ser?”. Os homens, quando chegam aos 80 anos, estão perfeitamente aptos a fazer o que quiserem, os caminhos que um homem tem quando nasce menino continuam abertos.
As mulheres, quando chegam à metade da vida, ficam invisíveis e a única função é continuar servindo. Loretta, além de medo, tem vergonha de envelhecer. A minha geração disse “não” para essa servidão, e é por esse comportamento que essa crise se apresenta mais forte para nós. Não é uma recusa em envelhecer, é uma recusa em envelhecer nesse lugar social em que o patriarcado nos colocou. Nós estamos vivas.
Como a sensação de estar ficando “louca”, evocada por Loretta em pontos centrais da narrativa, se entrelaça com a relação dela com o próprio desejo?
As mulheres são chamadas de loucas historicamente: a ex é louca, a mãe é louca, a filha é louca, enquanto os homens são transgressores, criativos e geniais. Loretta se estranha quando descobre que tem desejos, vontades e arrependimentos, porque até ali ela tinha sido obediente. Muitas vezes, na vida de uma mulher, a gente se pergunta o que estamos fazendo, temos medo de dar um enorme passo em falso, enquanto os homens vão lá e fazem. Nenhum fracasso acaba com a vida de um homem. É como se não tivéssemos o direito de errar. A grande descoberta de Loretta é que querer é bom; ela ganha essa coragem de dar os próprios passos.
Por que você escolheu desenvolver um romance em uma história que aborda sobretudo a trajetória de autodescoberta da protagonista?
Eu não queria que, no final, o que ficasse da Loretta fosse uma história de amor, como se ela tivesse conhecido um cara que mudou a vida dela e ela viajou para vê-lo. Eu queria que, no final, o Martin fosse só um cara e ela fosse até o desejo dela. Por isso, a aposta dela em se apaixonar por alguém que ainda não conhecia. Eu queria que fosse uma construção dela. No final, a amiga pergunta: “E se não for nada disso?” e ela responde: “Não é sobre ele.” Eu queria que esse não fosse mais um livro no qual a vida de uma mulher orbita em torno de um homem.
Trecho
“A lembrança mais remota era do dia em que ele bateu nela. Na única vez que Loretta tocou no assunto, Olivia disse que era impossível que se lembrasse, ‘você era só um bebê’. Mas ela lembrava do soco e da mãe no chão. E da surra que ela deu nele logo depois. Era o sangue do pai no tapete. Lembrava sobretudo da fúria. Nunca mais a viu furiosa assim.
Também lembrava de uma tarde em que Olivia não foi buscá-la na escola. A mãe de uma amiga a levou para casa, ofereceu-lhe um chocolate no caminho e foi muito carinhosa quando abraçou Olivia com o rosto todo machucado na porta. Elas falavam baixo, mas Loretta ouviu ‘figlio di puttana’ e ‘bastardo’ e sabia que falavam do seu pai. Depois escutou a mãe no telefone, com um tom de voz seco que não costumava usar. Falava em português, pedia dinheiro e dava as instruções para o envio. Quando desligou, Loretta perguntou com quem ela estava falando. ‘Com minha irmã’, respondeu sem olhar de volta. Foi a única vez que soube dessa tia, eu posso ter inventado isso.
A avó brasileira dizia que era preciso manter curtas as rédeas da dor ou ‘sabe-se lá para onde podem nos levar’. Loretta obedecia. Era dura como a avó. Não deixava a dor se criar, mantinha as mãos firmes e seguia em frente. Mas, desde criança, fantasiava com a imagem, aterrorizante, de si mesma montada na dor-cavalo, correndo, livre, sabe-se lá para onde. Nesse dia, ela ficava repetindo ‘minha mãe morreu’ como se a frase fosse um número de telefone que deveria ser memorizado. Uma forma de se prevenir do susto, impedir que a pegasse desprevenida depois da curva de cada hora distraída.
Ainda tinham frutas frescas, o pote de café estava na metade; ficou especialmente comovida com o Cuadro, o quadradinho de chocolate e nocciole que a mãe adorava e comia escondida da filha quando ela era pequena, tadinha. Descobriu que Olivia recebia um jornal impresso chamado Lotta Comunista e tinha um telefone fixo que continuava tocando enquanto Loretta apenas comia, bebia, fumava e lia. Tentava entender a morte da mãe do jeito que aprendera a entender todo o resto, estudando.
Não tinha muita coisa. Um vírus novo, identificado na China. Alguns poucos casos na Europa, outros poucos dispersos pelo mundo. Sintomas de gripe que podiam evoluir para uma pneumonia grave. Muito contagiosa, mas de baixa letalidade, 1.694 casos e 34 mortos na Itália. No entanto, mobilizava tanta atenção do governo e do noticiário. No entanto, algumas cidades haviam suspendido as aulas escolares. No entanto, estava sobrecarregando, de forma inédita, o sistema de saúde dos lugares afetados. No entanto, havia matado sua mãe. Os poucos enfermeiros e médicos com quem teve contato no hospital pareciam perdidos. Sem saberem o que dizer, foram rápidos, protocolares e frios.”

Capa do livro "Nada lá fora e aqui dentro"
“Nada lá fora e aqui dentro”
• De Juliana Monteiro
• Editora Patuá
• 292 páginas
• R$ 70