
Uma seleção de livros para levar na bagagem das férias
Obras de autores e autoras de diferentes países para viajar na literatura contemporânea durante o período de descanso
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O Pensar selecionou, entre os destaques de 2024, lançamentos mais recentes de autores e autoras de diferentes países que permitem viajar no tempo e no espaço sem apresentar passaporte. Confira, nas próximas páginas, comentários e trechos dos livros indicados.
“OS MENINOS ADORMECIDOS”
De Anthony Passeron
Tradução de Camila Boldrini
Fósforo
208 páginas
A descoberta e o avanço da Aids na primeira metade dos anos 1980 entre os viciados em drogas injetáveis na França são apresentados em duas narrativas de estilos literários diferentes. Uma reportagem objetiva e um relato familiar subjetivo, em primeira pessoa, se alternam a cada capítulo antes de se encontrar de forma implacável na segunda parte de um livro que mistura, nas palavras do autor, “lembranças, confissões incompletas e reconstruções documentadas”. O epílogo desta “última tentativa de fazer com que algo sobreviva” é devastador. Brilhante na construção e na execução.(Carlos Marcelo)
Trecho
Até eu tomar a consciência de que escrever era a única solução para que a história do meu tio, a história da minha família, não desaparecessem com eles, com o vilarejo. Para mostrar que a vida de Désiré estava inscrita no caos do mundo, um caos de acontecimentos históricos, geográficos e sociais. E ajudá-los a se desvencilhar da dor, a sair da solidão na qual a dor e a vergonha os tinham precipitado. Pela primeira vez eles estarão no centro do mapa, e tudo o que normalmente chama a atenção ficará relegado às periferias.
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“À SOMBRA DE FAUSTO”
De Nelson Ricardo Reis
Quixote+Do
320 páginas
Que tal uma viagem de turismo à Europa recheada de história, literatura, artes e filosofia? E ainda um longo embate com o Diabo ou um emissário dele ou simplesmente um homem muito culto e misterioso que propõe ao protagonista agenciar seu livro em troca do triunfo do mal na obra.
O ex-professor de literatura da UFMG Nelson Ricardo Reis envolve o leitor numa trama instigante – que passa também por “Grande sertão: veredas” – a partir do mítico pacto medieval de um homem com o Diabo, consagrado no clássico poema “Fausto”, do polímata Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior poeta e escritor alemão. Como se sabe, a obra de Goethe é um extenso poema que trata da aposta entre Deus e Mefistófeles, uma das encarnações do Diabo, pela alma do ambicioso sábio alemão Fausto. “À sombra de Fausto” faz uma releitura desse pacto diabólico.(Paulo Nogueira)
Trecho
–E qual a verdadeira aparência do Diabo? – perguntei em tom provocativo. Arimã me encarou por alguns segundos, como se quisesse perscrutar meu íntimo e entender o verdadeiro sentido da pergunta.
–Isso vai depender de você.
–De mim, por quê? – indaguei, curioso em ouvir sua resposta.
–Porque não deve procurar o Diabo fora de você mesmo. Ao seu redor, no outro. O mal está dentro de cada um, e cabe a você invocá-lo, Assim, ele pode se projetar de incontáveis maneiras: em uma linda mulher, como um elegante cavalheiro, na forma de um velho sábio, em formas não humanas, ou mesmo em ações, mas todas são projeções do Diabo que habita em cada um, projeção do mal endêmico ao ser humano.
“CASSANDRA EM MOGADÍCIO”
De Igiaba Scego
Tradução de Francesca Cricelli
Editora Nós
376 páginas
Obra autobiográfica que irradia para as geografias da Itália e da Somália e mostra como é sentir na pele a experiência do desenraizamento. Em Roma, uma escritora escreve cartas à sobrinha, relembrando a adolescência nos anos 1990 na capital italiana, quando sofre a ausência da mãe, que volta para a Somália em guerra civil. Tróia, Roma e Mogadício formam triangulação muito particular: a narradora estabelece paralelo com a figura da tragédia grega que prevê os infortúnios de seu povo, mas ninguém escuta.
“Afro-euro-politana”, ela alude aos traumas de uma identidade esfacelada por guerras, ditaduras e racismo, mas não abdica de evocar laços de afeto. Contundente, o livro de Scego aponta caminhos para articular questões fundamentais do nosso tempo. (Stefania Chiarelli, especial para o EM)
Trecho
O italiano, a língua daqueles que colonizaram nossos antepassados tanto em Barawa como em Mogadício, umalíngua que já foi inimiga, escravocrata, mas agora tornou-se, para uma geração que vai desde minha mãe até mim, a língua dos nossos afetos. A língua dos nossos segredos mais íntimos. A língua que nos completa, não obstante suas contradições. A língua de Dante, Petrarca, Boccaccio, Elsa Morante e Dacia Maraini. A língua de Pap Khouma, Amir Issaa, Leila El Houssi, Takoua Ben Mohamed e Djarah Kan. Língua singular no passado, e agora plural. Língua mediterrânea, língua de encruzilhadas.
“ELENA SABE”
De Claudia Piñeiro
Tradução de Elisa Menezes
Morro Branco
158 páginas
O mais ousado dos romances de uma das grandes narradoras contemporâneas da América Latina. Sem diálogos, em breves capítulos e longos parágrafos, a argentina Piñeiro, autora de outros thrillers de protagonismo feminino como “Tua”, “Betibú” e “Catedrais”, tece a trama surpreendente, perturbadora e asfixiante de uma mulher que padece com os primeiros sinais de Parkinson e acaba de perder a filha, que "apareceu pendurada no campanário da igreja”.
Para descobrir a verdade sobre a morte, a mãe terá de desafiar a igreja católica (“Não me interessa o Juízo Final, padre, mas o juízo na terra”) e enfrentar um doloroso acerto de contas na própria família. (CM)
Trecho
É possível ser algo sem um corpo que obedeça?, Elena pensa, arrastando os pés em direção ao local indicado pelo jornaleiro. O que se é quando o seu braço não se move para vestir uma jaqueta, ou sua perna não se levanta no ar disposta a dar um passo, ou seu pescoço não se ergue impedindo-o de andar encarando o mundo? Quando não se tem um rosto para enfrentar o mundo, o que se é? Ou o próprio pensamento, algo que não se pode nem tocar fora daquele órgão enrugado guardado dentro do crânio como um tesouro?
“A SEGUNDA VINDA DE HILDA BUSTAMANTE”
De Salomé Esper
Tradução de Sérgio Karam
Autêntica Contemporânea
156 páginas
Muito mais do que revisitar o realismo mágico latino-americano, a escritora argentina consegue, em sua estreia como romancista, um resultado convincente e, muitas vezes, cativante. Com ecos de “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, de Jorge Amado, Esper narra de forma fluente e bem-humorada uma história fabular sobre as intermitências da ‘indesejada das gentes’ de uma mulher que, inexplicavelmente, sai do túmulo e volta a viver.
A partir do surreal, a escritora lança a seguinte pergunta: “Para onde vão aqueles que ficam?” Impossível, nas últimas páginas, não lembrar de alguém que já se foi – e continua conosco. (Carlos Marcelo)
Trecho
Hilda estava apavorada, não por ela, mas pelas outras, por não saber como reagiriam ao que estava acontecendo. E o que era isso que estava acontecendo? Como ela podia estar aí agora, depois de ter sido enterrada, depois de ter morrido do jeito que lhe contaram? Um infarto era algo reversível? Seu coração havia renascido sozinho, como um bulbo fraco que encontrou forças no descanso de alguns meses sob a terra? Quem deu a corda de novo nesse relógio que já tinha sido guardado?
“ALAMEDAS ESCURAS”
De Ivan Búnin
Tradução de Irineu Franco Perpétuo
Editora Ars et Vita
407 páginas
O livro preferido do escritor Ivan Búnin (1870-1953), o primeiro russo a ganhar o Nobel de Literatura, em 1933, reúne 40 histórias, entre contos e novelas, em prosa poética. A maioria foi escrita entre 1937 e 1945, na época sombria e trágica da véspera e durante a Segunda Guerra Mundial.
Banido pelo regime stalinista e por isso pouco divulgado ainda hoje no Ocidente, Búnin fala de amores conquistados e perdidos, traição e morte e do amor eterno que supera o abandono e o tempo. Se a morte é inevitável, o amor também é em suas múltiplas faces dóceis (paixão, afeto, carinho, abraços, tesão...) ou cruéis (traição, abandono, indiferença, ofensa, agressão...) (Paulo Nogueira)
Trecho
– Tudo passa, minha amiga – balbuciou. – Amor, juventude – tudo, tudo. É uma história vulgar, corriqueira. Com os anos, tudo passa. Como está dito no livro de Jó? “Lembrar-te-ás como de águas passadas”.
–A cada um, o que Deus dá, Nikolai Aleksêievitch. A juventude de todos passa, mas o amor é outra coisa. (...) Sabia que há muito tempo o senhor não era mais o de antes, que para o senhor era como se nada tivesse acontecido, porém...
“VENTO VAZIO”
De Marcela Dantés
Companhia das Letras
224 páginas
“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”, diz Ana Terra logo na abertura da obra de Erico Verissimo, que pertence à saga “O tempo e o vento”. Pois em “Vento vazio” é o vento que faz acontecer, ou melhor, enlouquecer.
Na Quina da Capivara, um lugar imaginário abandonado na Serra do Espinhaço, onde as torres da usina eólica foram instaladas e esquecidas, sopra o Vento Vazio, que espanta o progresso, alucina, apaga a memória e desorienta os quatro protagonistas.
Em obra dividida em três partes, a escritora de BH Marcela Dantés cria um universo fantástico que deixa o leitor em dúvida, por exemplo, se o atormentado Miguel está vivo ou morto ao contar sua vida centenária. E a autora ousa mais ainda com uma narrativa surpreendente em primeira pessoa de uma mulher louca. (PN)
Trecho
O shhhhhhh do Vento Vazio é diferente de qualquer outro vento chiando é uma coisa que entra pelo ouvido fininho e atravessa tudo dentro da nossa cabeça no lugar mais importante que é o lugar do juízo e continua chiando lá dentro shhhhhhhhhhh shhhhhhhhh e a cabeça dói mas a pessoa fica acometida e nem percebe que tá doendo e não percebe que tá conturbada porque isso é a coisa principal dos doidos, não saber que são doidos...
“BAUMGARTNER”
De Paul Auster
Tradução de Jorio Dauster
Companhia das Letras
174 páginas
Em seu romance-despedida, Auster (1947-2024) é o mesmo guru do real: a literatura, oferenda entre razão e paixão, jamais derramada em excesso para um dos lados. No título, o sobrenome do protagonista, viúvo, professor de filosofia à beira da aposentadoria.
Na narrativa, o relacionamento poético com Anna e derivações da família de migrantes judeus. Obra certeira e comovente, entre a seriedade controlada do texto escrito e a voluptuosidade do contato humano. (Sérgio de Sá, especial para o EM)
Trecho
Assustado e curioso, Baumgartner compreendeu que os sons do telefone que tocava eram os mesmos que ouvira enquanto estava deitado na cama no segundo andar, a mesma sequência alternada de intervalos mais longos e mais curtos de som e silêncio, tênues e abafados lá em cima, porém altos e claros no térreo. E, nesse caso, a pessoa, o trotista ou o agente invisível que chamara anteriormente voltava a chamar.
“PEQUENAS COISAS COMO ESTAS”
De Claire Keegan
Tradução de Adriana Lisboa
Relicário Edições
126 páginas
Narrado com elegância e precisão, o romance da irlandesa Claire Keegan, que foi adaptado para o cinema com o ator Cillian Murphy como protagonista, se destaca pela potência trazida pela contenção. Cada capítulo, mesmo cada parágrafo, das 126 páginas parece cuidadosamente burilado para expressar o máximo com o mínimo de palavras.
E a estrutura está a serviço de uma história de não ditos, de segredos guardados entre quatro paredes, mesmo diante de nós. Como reflete o protagonista: “Por que as coisas que estavam mais próximas eram com tanta frequência as mais difíceis de ver?” (Carlos Marcelo)
Trecho
Para que tudo aquilo?, Furlong se preocupou. O trabalho e a preocupação constantes. Levantar-se no escuro e ir para o pátio, fazer as entregas, uma após a outra, o dia inteiro, depois chegar em casa no escuro e tentar tirar do corpo a sujeira e sentar-se à mesa para jantar e adormecer antes de acordar no escuro para encontrar uma versão da mesma coisa, outra vez. Será que as coisas nunca mudariam ou se transformariam em algo diferente ou novo?
“O AMOR E SUA FOME”
De Lorena Portela
Todavia
136 páginas
O segundo romance da cearense Lorena Portela, que fala do amor e de sua fome por afetos, é um soco no estômago. Conta a sina de Dora, a menina/adolescente protagonista. Depois que a mãe a abandona na pequena cidade de Rio do Miradouro e nunca volta, Dora fica aos cuidados do pai, que não deixa faltar nada material em casa, mas a deixa órfã de afeto até se definhar para a morte.
Dora se agarra à transgressora prima Esmê, que se torna seu norte para sobreviver e crescer numa vida sem rumo. Lorena Portela constrói um romance contundente e contemporâneo, que mostra o alto custo do abandono afetivo na vida de uma adolescente enredada num triângulo amoroso. (Paulo Nogueira)
Trecho
Aqui, na minha rua e em todas as outras que eu passasse, onde quer que eu pisasse havia uma fome, a que me pertencia. Mesmo depois de eu engolir um prato cheio, da mesa posta com arroz, feijão, macaxeira e carne. A fome que eu carregava por onde andava, meio tonta, o cérebro pra lá e pra cá, plec, plec, plec, porque fome é uma venda ajustada perfeitamente nos olhos a ponto de cegar a gente, e eu caminhava subnutrida, apesar de saudável, de ter carnes sobre meus ossos e cor na minha bochecha.
Eu comia de tudo e a fome me mordia de volta. Esse vão aqui dentro, engolindo o que houvesse às voltas com aqueles dentes de trator que me esmagavam e a garganta sebosa que me vomitava. Minha rua foi só começo. Essa fome, na verdade, criou tudo que eu tenho, conduziu minha história, fez existir tudo que eu sei.
“Uma saída honrosa”
De Éric Vuillard
Tradução de Sandra M. Stroparo
Manjuba
144 páginas
Éric Vuillard mantém o estilo que o consagrou ao contar como as relações nos bastidores do poder causaram impacto além-mar ao retratar a retirada das tropas francesas na Indochina diante do avanço das forças de libertação do Vietnã.
Além das atrocidades cometidas pela França na antiga colônia, “Uma saída honrosa” fala sobre como a relação promíscua entre grandes empresários e parlamentares ditava os destinos de soldados de ambos os lados na guerra no sudeste asiático. A obra ainda aborda o movimento através do Oceano Atlântico para iniciar a segunda fase do conflito, desta vez com os Estados Unidos ocupando o papel das potências ocidentais. (Bernardo Estillac)
Trecho
A Société des Mines d'Étain de Cao Bang havia sido constituída em 1905 e, para funcionar, só tinha necessidade de alguns engenheiros, capatazes europeus, só isso, e para se proteger era preciso um posto militar.
Em 1911, essa companhia parecia ter sido absorvida pela Étains et Wolfram de Tonquim. Essa sociedade anônima, com capital de 3 milhões e 800 mil francos, possui, como toda pessoa jurídica, o que chamamos uma sede, um domicílio jurídico, bem longe do Alto Tonquim, bem longe de Cao Bang, mas não muito longe do Palais Bourbon, localizado no boulevard Haussmann, no 8º arrondissement de Paris, a dois passos do Banco da Indochina, que detinha sérios interesses no negócio. Dez anos mais tarde, seu capital é de 7 milhões; doze anos mais tarde, de 24 milhões; e na véspera da Guerra Mundial, é de 36 milhões, cifras que dão vertigem.
Não é, portanto, por um simples posto avançado perdido na floresta que o exército luta, nem por alguns colonos franceses perdidos, e deveríamos, pelo bem da precisão, rebatizar a Batalha de Cao Bang, sobre a qual se engalfinha o Parlamento, como Batalha pela Sociedade Anônima de Minas de Estanho de Cao Bang; isso lhe conferiria sua verdadeira importância.