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PENSAR

Filósofa coloca ‘esquerda no divã’ e discute retomada de pautas originais

Em 'A esquerda não é woke', Susan Neiman defende a luta pela justiça social como uma pauta que deveria atender a qualquer humano oprimido

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“Não deveria ser nenhuma surpresa que um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descubra que a classe trabalhadora o abandonou”. Esta frase faz parte da declaração oficial do senador americano Bernie Sanders em 6 de novembro, horas após o republicano Donald Trump ter sagrado-se, novamente, presidente dos Estados Unidos.

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Sanders foi um dos representantes mais à esquerda no Partido Democrata com derrotas seguidas dentro da legenda na tentativa de ser seu representante na corrida presidencial. O discurso do senador após a derrota de Kamala Harris no pleito deste ano integra uma corrente no pensamento da esquerda global que objetiva retomar o contato com os trabalhadores. Neste caminho, uma das vias encontradas é a crítica ao que se chama de pautas identitárias ou, mais fortemente nos Estados Unidos, de “cultura woke”.


Lançado no Brasil neste ano pela editora Âyiné, o livro “A esquerda não é woke”, é um libelo da filósofa Susan Neiman pela retomada das pautas originais dos movimentos esquerdistas, em especial uma noção de universalismo que suplanta o que ela considera uma valorização das fronteiras e do tribalismo.


Na obra, Neiman defende a luta pela justiça social como uma pauta que deveria atender a qualquer humano oprimido. Mais do que por quem essa busca deveria atender, ela defende a busca em si. Em sua análise do que ela chama de “esquerda woke”, a filósofa avalia que o que se perdeu nos movimentos atuais foi, antes de tudo, a esperança de que a justiça é um ideal alcançável.


Ao tratar o filósofo Michel Foucault como o padrinho do movimento woke, Susan Neiman identifica na percepção do francês de que a sociedade vive em um contínuo jogo de alternância de poder, com a força hegemônica oprimindo os demais grupos, a base teórica do identitarismo.


A americana entende que este pressuposto turva o vislumbre de uma justiça universal para o povo e impede a percepção que movimentos de esquerda pregressos foram capazes de avançar e produzir progresso social, ainda que não completamente satisfatório.


Retomando as bases teóricas iluministas e o universalismo que caracterizou os movimentos de esquerda durante boa parte do século 20, Neiman atribui a eles a consolidação da noção de direitos fundamentais. Na argumentação da filósofa, a lógica de que as relações de poder devem obedecer a uma lei ética geral em qualquer parte do mundo pelo simples fato de tratar sobre seres humanos é uma façanha de abstração digna de louvor.


A linha argumentativa de Neiman guarda pouco espaço para tratar sobre como as pautas mais abordadas pelo assim chamado movimento woke devem se enquadrar em um discurso universalista pela valorização humana. A autora não perde de vista que a opressão baseada na orientação sexual, raça e gênero é um alvo a ser combatido por movimentos de esquerda, mas não de forma sectária. Segundo ela, a criação de tribos responde a um estímulo típico dos pensadores da direita e atende à necessidade neoliberal de comercialização das lutas populares com elementos absolutamente legítimos.


O neoliberalismo, inclusive, é parte importante na crítica de Neiman ao que ela considera uma prevalência do comportamento woke dentro dos movimentos de esquerda. A imagem de um grande shopping global é utilizada pela filósofa como uma forma de mostrar que, no modelo econômico vigente na maior parte do mundo ocidental, a própria ideia de universalismo esvazia os conceitos de dignidade humana para fortalecer uma lógica de uniformidade pautada pelo consumo.


O livro “A esquerda não é woke” também bebe em fontes já consolidadas e, portanto, torna-se também um documento que reforça a ideia de que a ascensão do neoliberalismo nos anos 1990, pós experiências de Margaret Thatcher e Ronald Reagan à frente dos maiores impérios capitalistas, reduziu o espaço de discussão da esquerda.


A consolidação do neoliberalismo como modelo vigente e intransponível, de acordo com essa percepção, limitou as discussões sobre como gerir a economia a modelos menos ou mais radicais de gerir o neoliberalismo. Assim, a esquerda perde espaço nesta seara e concentra-se na emancipação popular. Este movimento mais tarde, de acordo com Neiman, sectarizou-se.


Em recente entrevista à Folha de S. Paulo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP), disse à jornalista Mônica Bergamo que há uma carência de horizontes emancipatórios no mundo. “Sobrou para a extrema direita, que sempre cresce em momentos de crise sistêmica, sobretudo quando a esquerda não se planeja para esse momento, como foi o caso. A esquerda não estava preparada em 2008, com um programa renovado, com um sonho renovado”, afirmou Haddad.


A percepção do petista dialoga com a análise de Neiman, ainda que não teça críticas ao identitarismo. “A esquerda não é woke” passa longe de ser uma obra polemista. O livro, inclusive, evita mergulhar especificamente nos pontos que considera as bases deste pensamento: “cultura do cancelamento, insistência na pureza, intolerância à nuance e preferência pelo dualismo”.


Talvez por isso possa soar superficial ou como uma forma velada de minar a necessária luta contra discriminações específicas.


O livro, no entanto, é mais propositivo que crítico. Dentro do contexto de uma esquerda no divã na busca por conciliar seus ideais clássicos com as demandas do mundo contemporâneo, o pensamento de Neiman é bem fundamentado teoricamente e, por isso, é leitura absolutamente válida. A argumentação da filósofa deve servir como forma de reforçar e sofisticar o que foi considerado “woke” de forma pejorativa, mas versa por demandas humanas básicas como o antirracismo, os direitos LGBTQIA+ e a igualdade de gênero.

A ESQUERDA NÃO É WOKE

O neoliberalismo considera que a felicidade humana é mais bem servida por mercados não regulamentados que produzem quantidades cada vez maiores de bens que foram desenvolvidos para nos distrair e projetados para deteriorar.

Se você rejeitar essa visão e argumentar que as pessoas têm mais chances de prosperar quando envolvidas em atividades produtivas comuns, provavelmente será considerado um hippie ou um comunista enrustido – embora esse argumento seja confirmado por todos os estudos empíricos sérios em psicologia social.


Mesmo que tenhamos passado a acreditar, como disse Thatcher, que não há alternativa para um mundo governado pela racionalidade econômica, sua irracionalidade é demonstrada todos os dias. Thomas Piketty resume:


“A partir do momento que se afirma não haver nenhuma alternativa plausível para a organização socioeconômica atual e a desigualdade entre as classes, não surpreende que a esperança de mudança se volte para a exaltação da fronteira e da identidade”. Parece que nos resta escolher entre dois tipos de irracionalidade, nenhum dos quais nos permitirá prosperar – ou mesmo sobreviver.


II

Pode-se argumentar que a teoria é secundária: é claro que os ativistas woke buscam solidariedade, justiça e progresso. Suas lutas contra a discriminação são animadas por essas ideias. Mas eles não conseguem ver que as teorias que adotam subvertem seus próprios objetivos.

Sem universalismo, não há argumento contra o racismo, apenas um grupo de tribos disputando o poder. E, se é a isso que a história política chega, não há como manter a ideia sólida de justiça. Mas, sem compromissos com o aumento da justiça universal, não podemos nos esforçar coerentemente pelo progresso.

A maioria dos ativistas woke rejeita o universalismo e defende os discursos de poder, mas é improvável que neguem que buscam o progresso. Porém, muitos foram educados em tradições que ensinavam que “o progresso social em si, produto do pensamento iluminista, é, em última análise, destruidor de almas”.

Seria mais fácil acreditar no compromisso dos ativistas woke com o progresso se estivessem dispostos a reconhecer que algumas formas de progresso foram de fato alcançadas no passado. Mostrar como cada passo anterior para a frente levou a dois passos para trás pode ser intelectualmente deslumbrante.

Há muitos casos de injustiça a serem desmascarados; várias vidas não bastariam para isso. Mas, sem a esperança de colocar algo mais em seu lugar, esse desmascaramento se torna um exercício vazio de demonstração de conhecimento. Você não será enganado novamente.

“A esquerda não é woke”


Susan Neiman
Tradução: Rodrigo Coppe Caldeira
Editora Âyiné
240 páginas
R$ 54,95

 Doppelgänger

 
Como a maioria de nós, não sei onde o vírus da COVID-19 se originou – se surgiu num mercado em Wuhan, ou no laboratório de nível 4 de biossegurança do Instituto de Virologia de Wuhan, ou em outro lugar completamente diferente. Mas, em retrospecto, constato que fui rápida demais em aceitar – sem analisar muito – a história oficial de que o vírus teve origem em um "mercado úmido”, termo utilizado em partes da Ásia para descrever locais onde se vendem carnes, peixes, produtos perecíveis e animais vivos.

Para ser sincera, acreditei na versão porque servia ao meu próprio raciocínio motivado e reforçava a minha visão de mundo: para mim, a pandemia seria um pouco menos assustadora se fosse mais um exemplo de seres humanos sobrecarregando a natureza e pagando o pato por isso. Depois, com o passar do tempo, e à medida que a “teoria do vazamento de laboratório” se tornou um dos principais temas nas discussões de pessoas como Wolf e Bannon no Mundo-Espelho, onde se mesclou a afirmações infundadas sobre armas biológicas, juntamente com um bocado de racismo antiasiático, a meu juízo parecia haver ainda mais razões para não analisar novamente a questão.

Embora se acumulassem cada vez mais fatos e documentos que corroboravam uma reflexão séria acerca da hipótese do vazamento de laboratório, durante meses a maioria dos progressistas e esquerdistas não se deu ao trabalho de procurar, porque não queríamos ser como eles, da mesma forma que eu não queria ser como ela. De maneira bizarra, as exageradas teorias dos conspiracionistas alimentaram o nosso excesso de credulidade; o “questione tudo” deles fez com que muitos de nós não questionássemos o suficiente.

II

Três décadas depois de Wolf ter apresentado esse argumento, outra escritora feminista, mais sintonizada com a economia política, olhou para o mesmo aumento no interesse pelo fitness e pela beleza na década de 1980 e viu algo diferente.

Em “Natural causes: An epidemic of wellness, the certainty of dying, and killing ourselves to live longer” (Causas naturais: Uma epidemia de bem-estar, a certeza de morrer é nos matar para viver mais), Barbara Ehrenreich, que morreu em setembro de 2022, seguiu o rastro das maneiras pelas quais a busca pela saúde e pelo bem-estar se tornou uma empreitada obsessiva na era Reagan e Thatcher, e desde então só cresceu em influência.

Ela argumentou que essa guinada foi uma reação não aos êxitos do feminismo, mas sim aos fracassos dos movimentos revolucionários, quando as grandes esperanças das décadas de 1960 e 1970 deram com os burros n'água ao se chocarem contra a parede de tijolos do neoliberalismo dos anos 1980.


“Doppelgänger – Uma viagem através do Mundo-Espelho”


Naomi Klein
Tradução: Renato Marques
Carambaia
480 páginas
R$ 99,90

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