Henrique Marques Samyn, autor de "Anastácia e a máscara"
Lina Arao/DIVULGAÇÃO
Rafael Fava Belúzio - Especial para o Estado de Minas
O ano de 2024 está marcado como o primeiro com o feriado nacional do Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, conforme lei sancionada pelo presidente Lula. Dentre múltiplos significados, a data expressa trajetórias históricas que possuem em Zumbi dos Palmares símbolo de lutas e resistências. Acompanhando esse longo processo, diversos livros recentes ocasionam sinalizações importantes. Isso é notável no romance “De onde eles vêm”, de Jeferson Tenório; assim como no relançamento do clássico organizado por Abdias do Nascimento: “Dramas para negros e prólogo para brancos”.
Quanto à poesia, dentre muitos livros que merecem destaque, o recente “Anastácia e a máscara”, de Henrique Marques Samyn. Mais do que focar apenas neste lançamento, vale notar no percurso do escritor uma consciência poética negra múltipla.
Samyn estreia com “Poemário do desterro”, em 2005. A obra é bem acolhida pela crítica, aparecendo no “Roteiro da poesia brasileira – anos 2000”, de Marco Lucchesi, e obtendo considerações de estudiosos como Wilberth Salgueiro, que pontua a consciência social do autor. No livro de estreia, embora questões ligadas à negritude não ganhem tanto foco, é sensível a atenção para com as pessoas humildes, dicção próxima de Manuel Bandeira. Traços do século 19 também se fazem presentes na modulação das métricas e nas imagens por vezes afins às líricas de Cruz e Sousa e de Alphonsus de Guimaraens. Ademais, o Trovadorismo português é audível no apreço por cantiga e barcarola, sem falar nas semelhanças com o verso ibérico de Camões.
Em 2008 sai “Esparsa erótica”. Nesse volume do professor de Literatura da Uerj, são notáveis influências além da lusitana, como recursos sonoros nipônicos a deslizar na carne das palavras. Já em 2013, quando publica “Estudos sobre temas antigos”, os poemas avançam nas releituras das tradições, ganhando o eu poético modulações incomuns. Os cenários cariocas, baudelairianos desde “Poemário do desterro”, estão agora por vezes fundidos com a cultura clássica, a exemplo do poema de abertura, que traz “a estátua de Héracles/ na Avenida Presidente Vargas: pisavam seus destroços/ burocratas e vagabundos”.
Não por acaso surgem nas páginas epigramas à moda de Calímaco, releitura de Safo e “Rapsódia grotesca para Orfeu e Eurídice”. Samyn está a reescrever o mundo, com frequência fundindo tradições e espaços.
Com a publicação de “Levante”, em 2020, os estilhaços de temporalidades acumuladas se erguem com vigor crescente, acentuando relações com a tradição literária negra brasileira, mas sem perder ecos de outras matrizes e matizando ainda mais o sujeito lírico. Sonoridades trovadorescas reaparecem, bem como alguns traços epigramáticos antigos e formas feito o soneto petrarquiano; ao mesmo tempo, há aproximações com Luís Gama, Abdias do Nascimento, Leda Maria Martins, Adão Ventura e tantos outros artistas negros. Na dicção pluriforme de Samyn são audíveis muitos legados, especialmente ao notarmos que a modulação da voz varia nos poemas, buscando se aproximar de figuras ancestrais evocadas.
Diante disso, o recente “Anastácia e a máscara” (editora Malê) persiste criando o mosaico de um eu lírico múltiplo, fragmentado, em consonância com Fernando Pessoa e Carlos Drummond, mas também afinando com negritude os instrumentos de uma estética plural que retoma, entre outros, Luís Gama e Cruz e Sousa. Assim, o sujeito poético neste e nos demais livros se posiciona de maneira propositadamente instável em relação a questões como metafísica e ética, política e conhecimento. Ora com mais doçura e ora com mais acidez, ora com mais sutilezas e ora com visões mais generalizantes.
Um nome de seção do livro dá ênfase a uma figura histórica e dimensiona a estética multifacetada do autor: “Anastácia e a máscara: sete variações”. Aliás, na sua “Arte poética”, Henrique Marques Samyn mostra apreço memorialístico, tecendo posicionamentos sobre seus ancestrais, ciente de que se pode temperar a voz entre tédio, pressa, distração e outras modulações:
“Quando fores escrever, escreve para os teus mortos, tuas mortas – sempre estão sobre ti e ao teu lado – mesmo quando, por tédio, por pressa ou distração, olvidas os seus nomes.
(Cumpre sempre o rito: ouve o que ressoa no tempo – entre os silêncios.)
Quando fores escrever, Honra a memória ancestral: Nela, buscaste a língua as vozes e o sentido: ergue, com palavras, a morada-monumento feita derradeiro abrigo”.
Erguendo com palavras moradas-monumentos para lutas e resistências, Henrique Marques Samyn desenvolve uma poesia de consciência negra, com ancestralidade e talento individual pluriformes. Erguendo com palavras moradas-monumentos para lutas e resistências, Samyn desenvolve uma poesia de consciência negra, com ancestralidade e talento individual pluriformes.
Rafael Fava Belúzio é pesquisador de poesia brasileira (Ufes/CNPq). Publicou recentemente “Quatro clics em Paulo Leminski” (Editora UFPR, 2024) e organizou “Sou poeta menor, perdoai: Manuel Bandeira pela crítica contemporânea” (Alameda Editorial, 2023).
Pretinhos
Vede todos esses pretinhos – tão parecidos com as crias que, trazidas pelos tumbeiros, por acaso sobreviviam.
Vede todos esses pretinhos espalhados pela cidade: uns roubando pelas ruas, outros entregues ao crack.
Uns pretinhos vão à escola, ainda que não botem fé – assistem às aulas, fazem provas, sem saber para que servem.
A quem importam os pretinhos? Desde sempre, indesejados – filhos da raça maldita, deixados na vida ao acaso.
Assim ficam esses pretinhos, assim levam as suas vidas – brincando, correndo, zoando, driblando as balas perdidas.
Vede todos esses pretinhos, vivendo a existência tão leve – tirando onda com tanta gente que lhes deseja a vida breve.
quando destruíram a biblioteca de Alexandria
a Fábio Lucas
Choram sábios, filósofos e poetas: a cinzas está reduzida a sabedoria de muitos séculos.
Em nome de um deus obscuro, homens de olhares ferozes trouxeram trevas ao mundo: outros farão o mesmo.