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LITERATURA

Novo filme de Cillian Murphy adapta 'joia' irlandesa

'Pequenas coisas como estas', de Claire Keegan: livro virou filme com ator de 'Oppenheimer'

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Vencedor do Oscar por "Oppenheimer", Cillian Murphy interpreta  Bill Furlong, o protagonista de "Pequenas coisas como estas", na adaptação cinematográfica do livro de Claire Keegan, que estreia no Brasil no início  de janeiro de 2025

Vencedor do Oscar por "Oppenheimer", Cillian Murphy interpreta Bill Furlong, o protagonista de "Pequenas coisas como estas", na adaptação cinematográfica do livro de Claire Keegan, que estreia no Brasil no início de janeiro de 2025

divulgaçao

Irlanda, novembro de 1985. Frio, chuva, vento, árvores sem folhas, fumaça de chaminés, crianças de capuz a caminho da escola, adultos trabalhando em profissões prestes a serem extintas ou na fila do desemprego, a maioria deles suportando o tempo com tristeza e resignação, na expectativa de algumas horas felizes na noite de Natal. Entre elas, um homem decente. Bill Furlong, comerciante, às voltas com entregas de carvão e madeira antes de voltar para casa onde o aguardam a esposa e as cinco filhas. “Os tempos eram difíceis, mas Furlong se sentia ainda mais determinado a seguir em frente, evitar problemas, ficar na boa estima das pessoas e continuar provendo às suas filhas, vendo-as progredir e concluir seus estudos em St. Margaret’s, a única boa escola para meninas da cidade”, descreve Claire Keegan, autora de “Pequenas coisas como estas”, um pequeno-grande livro lançado no Brasil pela editora mineira Relicário com tradução da escritora Adriana Lisboa.


Finalista do International Booker Prize 2022 e vencedor do Orwell Prize, “Pequenas coisas como estas” figura nas listas dos 100 melhores livros do século 21 formuladas pelos jornalistas e leitores do New York Times. Nada mais justo. Narrado com elegância e precisão, o romance da autora irlandesa se destaca pela potência trazida pela contenção. Cada capítulo, mesmo cada parágrafo, das 126 páginas parece cuidadosamente burilado para expressar o máximo com o mínimo de palavras (e o fato de a autora, nascida em 1968 no condado de Wicklow, ter uma bem-sucedida trajetória como contista certamente a ajudou a obter esse resultado). Revelações sobre a origem de Furlong e suas descobertas após o encontro inesperado com uma jovem trancafiada em um galpão são narradas sem exclamações ou qualquer outra ênfase. Até porque interessa mais a Keegan se aprofundar nos dilemas enfrentados pelo protagonista ao se deparar com a conivência dos moradores de sua cidade com os abusos institucionalizados pela igreja católica contra mulheres consideradas socialmente desajustadas. “Por que as coisas que estavam mais próximas eram com tanta frequência as mais difíceis de ver?”, reflete.


Coordenadora editorial da Relicário, Maíra Nassif conta que se interessou em publicar o livro depois da indicação ao Booker Prize e de saber que a autora já havia sido traduzida para mais de 30 idiomas. “Com minha leitura não tive dúvidas de que estava diante de uma pequena joia”, lembra ao Estado de Minas. “Uma prosa curta, condensada, mas muito poderosa do ponto de vista da construção de seu personagem e da atmosfera na qual a história se desenrola, trazendo a importante tematização sobre o poder da Igreja Católica na Irlanda e suas consequências nefastas, principalmente para as mulheres”, complementa.


“Pequenas coisas como estas” é o segundo livro de uma autora irlandesa a entrar no catálogo da Relicário. O outro é “Constelações: ensaios do corpo”, de Sinéad Gleeson (trad. Maria Rita Drumond Viana), que foi uma das convidadas da Flip 2023. Tradutora de “Constelações” e especialista em literatura irlandesa, Maria Rita Viana escreveu a apresentação de “Pequenas coisas como estas”. Professora de literatura da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e pesquisadora do CNPq, ela destaca na prosa de Keegan “uma narração sucinta que sugere muito mais do que explicita, que nega muito mais do que afirma”. Leia, ao lado, a entrevista de Maria Rita Viana ao Pensar.

 

O que mais chama a atenção na narrativa de “Pequenas coisas como estas”?


O que mais me chama a atenção na escrita de “Pequenas coisas” é a economia das palavras. Ao escolher a palavra justa, a expressão mais característica, a imagem mais exata, a autora consegue descortinar muito mais sobre as personagens, seus defeitos e qualidades, seus medos e seu senso ético do que se as descrevesse longamente. A capacidade de sugestão a partir de muito pouco, a partir justamente das pequenas coisas do título, é o grande trunfo do livro e a razão por que ele consegue ser tão conciso e poderoso.


Como o livro se insere na tradição de romances em língua inglesa? Com quais autores e autoras acredita que Claire Keegan dialoga por meio de sua obra?


A primeira escritora que me vem à mente é a também irlandesa Mary Lavin, que também tem essa capacidade incrível de sugestão, visível em contos como “In the middle of the fields”, ainda sem tradução para o português, até onde eu sei. O assunto das lavanderias de Madalena é muito importante para mulheres irlandesas e aparece em várias obras, seja na literatura ou no cinema, mas a conexão mais direta que eu faço é com a peça de Patricia Brogan, “Eclipsed”, que foi traduzida pela minha colega Alinne Fernandes como “Eclipse”. A grande diferença para mim é a decisão de trazer como foco narrativo não uma das detentas ou mesmo suas filhas, mas um homem aparentemente comum. Esse foco em um homem e seus afazeres ao longo do dia nos faz pensar logo em “Ulysses”, de James Joyce, e o périplo de Leopold Bloom durante o dia 6 de junho por vários lugares de Dublin e seus arredores. É possível fazer outras conexões com essa pedra angular do romance mundial, como o luto pelo filho perdido, as relações entre marido e mulher, os abusos da igreja, a hipocrisia da sociedade, mas, diferentemente do calhamaço de Joyce, que desafia pelo excesso, o livro de Keegan exige de quem o lê ser capaz de extrapolar significados do pouco que é dito.


Concorda que, ao contrário do que ocorre nos romances caudalosos, a contenção do número de personagens, de descrições, situações e mesmo da linguagem é um dos trunfos de Claire Keegan? Essa ‘contenção’ narrativa não deixa de espelhar também o comportamento do protagonista do livro, Bill Furlong?


Como dito, vejo isso como trunfo absoluto e concordo plenamente. Apesar da autora optar por escrever em terceira pessoa e não em primeira pessoa como fez em seu outro livro, no belíssimo “Foster”, temos uma narrativa que segue de forma bastante próxima a consciência de Furlong e nos é dado acesso às suas memórias e pensamentos de forma quase exclusiva. Essa proximidade é uma das formas como ele é focalizado e como sua perspectiva se torna a única coisa a que temos acesso, ainda que a narração também esconda algumas de suas decisões importantes, de modo a criar suspense e promover o desenrolar do enredo de forma a nos surpreender.


Claire Keegan é conhecida no exterior também como renomada autora de contos. Ela conseguiu levar a potência das histórias curtas para o romance?


Essa é uma pergunta difícil. Em inglês, a diferença entre "short story", “novella" e “novel” passa essencialmente pela extensão. Já na nossa tradição brasileira, mais próxima da francesa, é comum ressaltar outras diferenças estruturais entre o conto, a novela (menos falada) e o romance, passando inclusive pela questão do número de núcleos narrativos. Eu veria “Pequenas coisas” mais na linhagem de “O alienista” do nosso Machado de Assis: uma narrativa mais longa do que se espera de um conto, com divisões de episódios sequenciais distintos, mas firmemente centrados num espaço, em ambos os casos uma cidade do interior, e que se desenrola a partir das decisões de seu personagem principal. Além disso temos também, é lógico, um espaço de encarceramento e que projeta sua sombra em toda a cidade, mas isso escapa um pouco da consideração do gênero literário. Assim como “O alienista”, “Pequenas coisas” se destacaria em qualquer antologia de contos mas também funciona muito bem isoladamente. O mesmo se dá com o já mencionado “Foster”, de 2010, e o mais recente “So late in the day”, que foi publicado tanto em um volume próprio quanto em coletânea com outras duas narrativas em 2023.


O que destacaria na tradução feita por Adriana Lisboa?


O que se espera de uma poeta da competência dela: ritmo e sonoridade. Adriana consegue encontrar soluções criativas para várias encruzilhadas do texto, especialmente esses não-ditos ou coisas que são apenas sugeridas. A Relicário me chamou para fazer a revisão técnica por causa das questões da cultura irlandesa, então tive a oportunidade de fazer um cotejo cuidadoso do texto, comparando as duas versões, em inglês e em português e fiquei muito satisfeita com o tino da Adriana. Acho que um dos maiores desafios é a fala de Eileen Furlong, casada com o protagonista e de certa forma a mais sensata da casa. Sua fala é cheia de frases na negativa e na interrogativa, perguntas retóricas e outros penduricalhos linguísticos que parecem dizer duas coisas ao mesmo tempo. Se fosse um audiolivro ou uma peça no palco seria mais fácil entendê-la com clareza por causa da intonação, mas no papel e tinta essa ambiguidade é importante de ser mantida, mas não deve confundir quem lê. A tradução que chega pra gente deu conta desse desafio e acredito que seja assim possível “escutar” a Eileen em português do Brasil.


Quais outros autores irlandeses contemporâneos, traduzidos ou não no Brasil, poderia indicar para quem gostar de "Pequenas coisas como estas”?


É meio surpreendente como um país com a população da Irlanda tenha tantos escritores e escritoras de imensa qualidade, em todos os gêneros literários e há tanto tempo. Muita coisa escrita em inglês e que passa por inglesa é, na verdade, de autoria irlandesa, tanto de escritores clássicos como Oscar Wilde, George Bernard Shaw, Bram Stoker, quanto mais contemporâneas.


A escritora irlandesa contemporânea mais conhecida hoje em dia é, sem dúvida, Sally Rooney, cujo romance “Intermezzo” teve lançamento mundial recente, com traduções sendo publicadas simultaneamente com o livro em inglês em todo mundo.


Aqui no Brasil pudemos contar, mais uma vez, com a Débora Landsberg, que fez todas as traduções da Rooney pela Cia das Letras desde sua estreia. Mas eu acho que a profundidade da narrativa da Keegan parece mais com a de Emma Donoghue, que foi outra escritora que muita gente não sabia ser irlandesa na época em que “O quarto de Jack” foi indicado a vários Oscars em 2016, incluindo o de melhor roteiro adaptado pela própria autora.


“Room” foi traduzido por Vera Ribeiro no Brasil como “Quarto” e publicado pela Verus em 2011 e desde então mais três de seus romances chegaram por aqui, pelas mãos das mesmas tradutora e editora: “O milagre”, em 2018, também adaptado para filme da Netflix e estrelando Florence Pugh e “O capricho das estrelas”, em seguida à pandemia de covid-19 em 2022. Esses últimos são, como “Pequenas coisas”, romances históricos, que se passam em momentos cruciais da história da Irlanda: após a Grande Fome no século 19 no interior e durante a crise da gripe espanhola em 1918 numa maternidade em Dublin, quando a mortalidade entre mães foi altíssima.
Donoghue não tem nada da concisão de Keegan, mas as duas estão buscando a ficção para lidar com as feridas que a religião e o colonialismo deixaram nos corpos das mulheres irlandesas.


E por falar no corpo, minha última sugestão seria o livro “Constelações: ensaios do corpo”, também publicado pela Relicário e com minha tradução e organização, escrito por Sinéad Gleeson. Embora não seja ficcional, “Constelações” também certamente interessaria a quem gostou de “Pequenas coisas”.

“O que mais me chama a atenção na escrita de “Pequenas coisas” é a economia das palavras. Ao escolher
a palavra justa, a expressão mais característica, a imagem mais exata,
a autora consegue descortinar muito mais sobre as personagens, seus defeitos e suas qualidades, seus medos e seu senso ético do que se as descrevesse longamente”


Maria Rita Viana
professora da Ufop e especialista em literatura irlandesa, em entrevista ao Pensar


Cillian Murphy estrela a
adaptação cinematográfica


“Pequenas coisas como estas” ganhou adaptação para o cinema pelo diretor belga Tim Mielants e, no início de janeiro de 2025, estreará no Brasil. Em seu primeiro papel depois do Oscar de melhor ator por “Oppenheimer”, Cillian Murphy interpreta o protagonista, Bill Furlong, em produção que conta ainda com a veterana Emily Watson (“Ondas do destino”). Não é a primeira obra de Claire Keegan a ser levada às telas. “A menina silenciosa”, baseado no conto “Foster” (inédito no Brasil) e dirigido por Colm Bairéad, foi indicado pela Irlanda a concorrer ao Oscar de melhor produção internacional em 2023

Trecho


“Era sempre a mesma coisa, pensou Furlong: prosseguiam mecanicamente, sem pausa, até a tarefa seguinte. Como seria a vida, ele se perguntou, se lhes fosse dado tempo para pensar e refletir sobre as coisas? Suas vidas seriam diferentes ou mais ou menos a mesma coisa – ou só perderiam o controle? Mesmo enquanto ele batia a manteiga e o açúcar, sua mente não estava tanto no agora, naquele domingo que se aproximava do Natal, com sua esposa e filhas, mas no amanhã e em quem devia o quê, e em como e quando ele entregaria o que fora encomendado e a que empregado ele deixaria qual tarefa, e como e onde cobraria o que lhe era devido – e antes que o amanhã chegasse ao fim, ele sabia que sua mente já estaria trabalhando da mesma maneira, mais uma vez, no dia seguinte.”

"Pequenas coisas como estas"

"Pequenas coisas como estas"

divulgação

“Pequenas coisas como estas”


De Claire Keegan

Tradução de Adriana Lisboa

Relicário Edições

128 páginas

R$ 41,90

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