
Ricardo Domeneck faz a poesia dos corpos vulneráveis
Vencedor dos prêmios Jabuti e da Biblioteca Nacional, 'Cabeça de galinha no chão de cimento' evoca Drummond e condensa forças contraditórias
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Especial para o EM
A poesia de Ricardo Domeneck é uma poesia dos corpos vulneráveis. Desde as suas origens, há quase vinte anos, com “Carta aos anfíbios”, até os poemas mais recentes tem sido assim. Nos seus versos são apresentados, e apresentam as suas dores e desejos, os mais diversos corpos, os mais diferentes sujeitos – a começar pelo próprio poeta, que empenha o seu corpo no centro da cena armada em cada poema.
O sujeito poético e os seres que o cercam, humanos ou não, encontram-se de um modo ou de outro ameaçados, postos em desabrigo. E todos eles, como que a responder em desafio a fragilidade que os constitui, buscam resguardar-se e defender o seu punhado de ar, com o qual possam viver, recordar os antepassados, gozar.
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“Cabeça de galinha no chão de cimento”, livro mais recente do autor, vencedor dos prêmios Jabuti e da Biblioteca Nacional de 2024, traz à tona essa mistura de forças contraditórias. A vulnerabilidade e a violência estão lá, bem como a reivindicação, pela memória, de gestos e práticas sociais outras, distantes do automatismo cego do presente. O título é uma condensação desses elementos, considerados os muitos sentidos que a expressão assume no conjunto dos poemas.
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Desprotegidas, as galinhas são vítimas sacrificadas, em rituais cotidianos e brutais, no altar da fome familiar. O caráter alegórico da imagem parece evidente: ela fixa corpos vulneráveis num quadro em que o poeta, de algum modo, se projeta. Ele identifica-se com as galinhas (e com todos os seres que vivem o ciclo presa-predador, vítima-algoz), afirmando a condição comum daquele “terror particular de tudo/que vive/ com seu ânus e boca”.
O título remete ainda ao núcleo familiar, revelando-o como o que tantas vezes é: agente da devoração (interespécie ou antropofágica, literal ou simbólica), parte do horror geral do mundo. A criança evocada pelo poeta em tantos poemas – a testemunha do morticínio necessário das aves – é ele mesmo, Domeneck, revisto em sua infância interiorana como o membro mais frágil do clã familiar embrutecido.
Era seu o corpo ameaçado, era sua a carne que intuía o destino na visão das galinhas abatidas. Os desejos homoeróticos que muito cedo despontavam nele expuseram-no ao risco, assim como contribuíram para o lançar fora do círculo estreito dos parentes e dos limites da cidadezinha em que viviam. O poeta encontra-se no exílio (e é “sempre o exílio”, como já se lê num poema do seu primeiro livro).
O ato da escrita, como afirma com outro propósito no belíssimo “Carta à matriarca”, parte da “cicatriz vitalícia” deixada por essa experiência. Retorna a ela. “Cabeça de galinha no chão de cimento” pode, nesse sentido, ser lido como um livro de acerto de contas. Momento do reencontro com os fantasmas familiares, das voltas em torno dos traumas de toda uma vida. Momento de volta para casa.
Não é gratuito, assim, o desejo de reescrever (no sentido de repetir, mas também de rasurar) Drummond, trazido ao livro de muitas maneiras, mas de modo mais direto em “Os males e o sangue”, poema que toma para si a formulação drummondiana de 1951, um dos pontos altos de “Claro enigma”.
“Os bens e o sangue”, poema de estrutura dramática no qual Drummond renega os antepassados, interrompe a linha genealógica (“os parentes que eu tenho não circulam em mim”) para ao fim, em sinal irônico de derrota e de entrega, reconhecer a si como um dos seus, serve como referência a Domeneck por apresentar uma meditação ambígua sobre a questão familiar, reflexão verdadeiramente inextricável sobre pertencer e não-pertencer. Sobre reconhecer e estranhar, num mesmo gesto, a si, ao passado, à terra natal, à origem. Que um verso sirva como síntese desse endereçamento oscilante: “queridíssimos ancestrais apodrecidos”.
Ajustar as contas com o passado não é um ato apenas negativo. Implica também a vontade de resgatá-lo ou, nos termos do livro de Ricardo Domeneck, de fazê-lo renascer. O poeta nomeia como seus “afazeres domésticos” (que são compromissos éticos e tarefas poéticas) a busca pela persistência do que um dia foi vida e saúde no mundo familiar dos antepassados – incluída aí a própria terra: “É nosso trabalho dizer agora que hão de/renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã/para os rins, os fígados e os intestinos da família/morta já pela metade”.
Com esses quase quatro versos (versos longos e pensativos, de ritmo lento e tom algo solene) o poeta abre o seu livro, num poema que é uma promessa e uma aposta nos poderes regenerativos da linguagem poética, fórmula encantatória (como a canção de ninar ou as orações propiciatórias) capaz de acordar os mortos e repor as coisas nos seus eixos. Pela palavra em estado de poesia seria possível ver que “voltam peixes/a rios devastados, e as baleias a mares de plástico”.
O texto seguinte, “A canção da benzedura”, construído conforme a técnica da permutação experimental de palavras e versos, segue na mesma direção: evoca a crença e a cura a partir de “movimentos cruciformes” e de uma “benção que sussurra”.
Ou ainda uma “arruda de palavras” e um sussurro que “era um quintal no peito”. Como se vê, neste livro o poema é, para Domeneck, espaço utópico. Mas é também lugar de um confronto desassombrado com os monstros e com as más lembranças, próprias e alheias. É de onde se pode ver a “escuridão escondida dentro do meio-dia”.
A aposta do poeta está na sobrevivência. Tudo o que sobrevive o faz porque se transforma. Persistir na mesma forma, nos mesmos sentidos, no sempre igual e nas identidades fixas é atar-se à paralisia e à morte. Tudo o que é vivo movimenta-se.
A poesia de Domeneck acumula imagens que querem traduzir isso. Ainda uma vez a lembrança do seu primeiro livro (que tem muitas conexões com este “Cabeça de galinha no chão de cimento”) vem à memória. Um dos seus poemas diz: “a pele medrosa cicatriza-se: e recomeça”. Passar da ferida à cicatriz, suturar o que foi aberto com violência: movimento e sobrevivência.
De certa maneira, é este também o sentido político do livro, que quer fazer passar da história individual à história coletiva um mesmo impulso de alforria, uma mesma vontade de evitar o “destino esquartejante” dos que viveram, e ainda vivem, no país, humanos ou não, e instalar em seu lugar o “motim desenfreado” do desejo, força desestabilizadora do poder, outra metade dos corpos desassossegados e vulneráveis que se lançam ao desconhecido. Isto é, à vida.
GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO é professor de literatura brasileira da UFMG e um dos editores da "Ouriço" - revista de poesia e crítica cultural
Poemas
“Os afazeres domésticos”
É nosso dever dizer agora que hão de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninar.
E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã.
E que o vô morto voltará em sonho pra ralhar
até a bandeira nacional mudar de cor
com estes desnaturados que não se cansam
de dar desgosto aos seus antepassados,
que cruzaram oceano não só para a desgraça
trocar de passaporte e vegetação ao fundo.
E é nosso trabalho dizer que os avós sequestrados
d’além-mar hão de alforriar-se em nossos corpos
e que os antepassados desde lado do Atlântico
hão de reaver seus quinhões de terra preta,
e juntos, entre a hortelã, o boldo e o capim-cidreira,
de mão em mão as xícaras da saúde que nos elide.
*
“Canção da benzedura”
Havia as mãos da velha, suas rugas, no quintal,
e o cheiro da arruda, e os movimentos cruciformes,
e as palavras em sussurro, e o calor no meu peito.
A benzedeira e suas palavras, e o quintal crescia
em movimentos vegetais, e o calor da arruda
eram palavras cruciformes, com mãos de mulher.
A própria mulher crescia nessa arruda de palavras
e o sussurro era um quinta no peito, as mãos
com cheiro de cruz e fome, e se moviam as rugas.
Eram as mãos, elas eram arrudas que se cruzam
sob o quintal, como se ali se movesse o peito
que palavreia o calor nessa benção que sussurra.
Sarça ardente nas minhas mãos, e ali vivia Deus:
na arruda, nas rugas das palavras, na mulher
que se movia e era velha desde muitos quintais.
Era um Deus rutáceo, calor vivo como um cheiro
de palavras, o quintal benzia as minhas mãos,
meu peito, e o calor se enfolhava como a arruda.
*
“Carta à matriarca”
Saudações
meio secas meio líquidas,
os cumprimentos
do barro e da costela.
Escrevo do centro do umbigo
que é a cicatriz vitalícia
de minha maculada conceição.
Queridíssima Urmamífera,
Caríssima Protouterina,
não é à toa
que o seu nome
nas várias línguas
vem das mais fáceis sílabas,
aquelas das quais são capazes
os bebês, os infantes,
nossas miniaturas
de baba e pernas titubeantes.
Ma
é só um balbucio,
alfabeto fonético para iniciantes,
articulado
num abrir e fechar
de lábios
como os que se encaixam
nos mamilos
para sugar as proteínas
das fábricas industriosas
de suas mamas.
Minha pequena pomada-de-calêndula,
Minha minúscula mercúrio-cromo.
Ovípara ardilosa
que faz do próprio bucho
uma carne de casca-cálcio,
faz de si mesma
a primeira
doadora de órgãos.
Para fazer esse
M + A,
os lábios fechados ocluem
por um segundo
o ar
dos meus pulmões,
eu sou filho do pós-guelra,
para chamar a Senhora
que é filha do pré-guelra.
Minha pequena dinossaura,
minha minúscula pré-história.
Ave, primeira
professora de línguas.
Eu pio desesperado
no ninho de galhos
sequíssimos, tão
prontos à combustão.
A Senhora se faz meu totem
para tornar-se a primeira
legisladora de tabus.
Por anos segui sua manufatura
de gêneros,
seus respectivos costumes
e figurinos, eu que não
passo de argila,
argamassa e reboque.
A Senhora, sentada
sobre as cadeiras, semelhava
aquelas pequenas estátuas
pré-históricas
que anacronicamente
chamamos de Vênus,
elas próprias
assimilando ovos,
figuras femininas redondas,
de tetas grandiloquentes,
a fértil feminil.
Minha pequena geleia de tutano,
minha minúscula bolsa de estopa.
É a Senhora quem faz a diferença
entre o tico-tico e o pardal.
É a Senhora quem faz a diferença
entre a chuva e o toró.
A Senhora
que ensinou
a agigantar as significantes gramas
até que tivéssemos
o trigo, o arroz e o milho.
A Senhora
que presidiu
sobre a mutação das lobas
em cadelas
e as guarás de volta ao lupino.
A Senhora
que sobreviveu
a cada uma das cinco extinções
e lentamente sobrevive a esta.
No tororó eu ouvi
a água que houve.
Hoje sei que perigosa
mesmo a Cuca
nunca foi.
Cá estou em sua boca,
minha minúscula Tutancânon.
A que me untou com os seus unguentos,
a que me besuntou com seus emplastros.
A que me enfaixou, múmia, em seu linho.
A que me enfeixou, mosca, em sua teia.
“Cabeça de galinha em chão de cimento”
De Ricardo Domeneck
Editora 34
128 páginas
R$ 54