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PENSAR

Novo livro de Miranda July apresenta a meia-idade por inteiro

Escritora e cineasta norte-americana explora excitações e inquietações femininas com ousadia e humor no romance 'De quatro'

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Stefania Chiarelli
Especial para o EM


“Me incomode, por favor!” O pedido, já na segunda linha de “De quatro”, sinaliza a convicção pessoal da protagonista do romance. A vontade de saber mais de si, de estar na pele dos outros e de testar possibilidades de vínculos é inquietação que ecoa em cada página desse livro tão instigante quanto divertido. Ela leva a sério a frase “Sempre quero saber como é ser outra pessoa”.

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A narradora, cujo nome não sabemos, é uma artista que ao longo da carreira explorou com sucesso muitas linguagens como performer, escritora e cineasta. Ela conta em primeira pessoa episódios de sua vida - nem tão anônima como muitos de nós; nem tão famosa a ponto de ser reconhecida em qualquer lugar. Nada difícil identificar variações da trajetória da própria July, autora dos contos de “É claro que você sabe do que estou falando” (2008), do romance “O primeiro homem mau” (2015) e diretora de filmes como “O futuro” (2011) e “Eu, você e todos nós” (2005), premiado nos festivais de Cannes e Sundance.


Aos 45 anos, casada com Harris, produtor musical, e mãe de Sam, uma criança não binária,a personagem acaba de ganhar um dinheiro extra e decide percorrer sozinha de carro os 800 km que separam Los Angeles de Nova York. Planeja a viagem em minúcias, mas pouco depois de cair na estrada desvia do itinerário e se aloja no quarto de um hotel decrépito - então a aventura para dentro começa. Essa deliciosa guinada caberia com perfeição em uma novela de Paul Auster, mestre na criação de tramas em que o acaso propulsiona a narrativa, a exemplo de “Noite do oráculo” (2003). Mas aqui quem escreve, dirige e atua é uma mulher. Isso faz toda a diferença.


Hospedada em uma cidadezinha a meia hora de casa, ela se esconde nesse purgatório-cápsula por duas semanas. Um dos motivos da permanência atende pelo nome de Davey, jovem empregado de uma locadora de carros, a quem acaba de conhecer no posto de gasolina. Exímio bailarino de hip-hop, ele é casado com Claire, que, em mais uma coincidência, será contratada para reformar seu quarto, transformado pouco a pouco em cópia da suíte de um hotel parisiense de luxo. Espelunca por fora; sofisticação por dentro.


Mesmo assim, a dança do acasalamento não é tão simples, já que o rapaz não compartilha os mesmos códigos morais e não topa um caso extraconjugal. A ausência de sexo não impede (pelo contrário, até aprofunda) a intimidade física e emocional entre os dois. Nada óbvio, esse é apenas um dos muitos méritos do livro, que aponta como sentimentos, perplexidades e dúvidas podem, a qualquer momento, virar matéria de criação artística. Na mente da personagem, fervem ideias e as emoções estão afloradas.


Mas nem tudo é sublimação erótica. O gozo aqui é metafórico e também pura concretude. Em muitos momentos, aceitamos o convite para olhar pelo buraco da fechadura e ouvir o que dizem (certas) mulheres quando se sentem livres, sozinhas ou sem a presença de estranhos. Descrições de sexo do ponto de vista masculino ocupam a maior parte das obras literárias, e só por isso já seria estimulante ler o que pode uma boa autora diante da “coisa”, como formula Eliane Robert Moraes em seus estudos sobre o erotismo na literatura: ela pode abrigar “o esforço de dar palavra ao irracional, ao interdito e ao inconsciente, abrindo espaço a fantasmas e fantasias que foram expulsos”, afirma a crítica no prefácio da coletânea “A parte maldita brasileira – literatura, excesso, erotismo”. Na prosa de July pulsa essa imaginação pecaminosa; é quando o tesão invade a cena e dá lugar ao grande teatro do desejo, como nas intensas passagens em que a personagem vive uma relação com a artista Kris.


Uma outra forma de troca vem pela via da amizade feminina. Essa é talvez a relação mais sólida da narrativa inteira, dentre tantas configuradas ali. Jordi, a melhor amiga, é um ponto de ancoragem para todo tipo de assunto. Os diálogos entre elas são pontos altos do texto, um vale tudo sem censura ou julgamento. Por isso não surpreende que venha dela a expressão do título: “Todo mundo acha que a posição de cachorrinho é muito vulnerável - disse Jordi -, mas é uma das mais estáveis. Como uma mesa. É difícil cair quando se está de quatro”. Também abrigo simbólico, ela é a pessoa que está bem ao lado quando tudo desmorona e é preciso voltar para casa.


Surpreendentemente, a narrativa segue instigante ao acompanhar esse estranho retorno à vida, na retomada de um cotidiano totalmente alterado: “Levantei da minha tumba. Fiz um smoothie, tostei um waffle, expliquei coisas e ri no final das piadas. Descobri que podia conversar com Sam e pensar em Davey ao mesmo tempo”. Fixação, ansiedade, paixão: meio Bovary contemporânea, ela agora tem internet, independência financeira e trânsito livre para concretizar o desejo tanto por homens quanto por mulheres. E o mais importante: na antessala da menopausa.


“Muito do que eu considerava feminilidade era só juventude”, constata com amargura diante da iminente queda hormonal (com direito a gráfico desse penhasco e lista de sintomas) e daquilo que considera a derradeira onda de libido. Sinal vermelho, pois a avó paterna sejogou da janela do apartamento em Nova York aos 55 anos. Anos depois, a tia fez o mesmo. Em tese, estavam velhas e vendo a beleza desaparecer. O que fazer diante desse enigma que inclui menstruação, gravidez, maternidade, e... o fim?


Quem sabe um dia por semana no quarto de hotel seja uma rota de fuga. Além de abrir o casamento, repensar pactos e o conceito de família – cabe tudo na busca por uma vida com menos hipocrisia e mais honestidade, mas a equação exige enorme esforço de muitas partes.


Na ótima tradução de Bruna Beber, o livro mostra o quão irresistível é a possibilidade de expansão de cada vida. Paga-se um preço para essa liberação, aí contido um “lamaçal de olho vermelho com rímel borrado”. Sobretudo quando o corpo vive metamorfoses nem sempre desejadas, em contratempos e pausas que requerem habilidade. Com ousadia e humor, July planta com a ponta dos dedos essa semente de inquietude, explorando uma parte inescapável da vida de muitas mulheres. É a tal da meia-idade, mas o pulso ainda pulsa.

STEFANIA CHIARELLI é professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF. Publicou, entre outros títulos, “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022).


Trecho

“Filha da puta, sussurrei. Eu me referia à vida. Sempre surpreendendo, sempre fazendo pegadinhas. O quarto 321 era a caverna e eu era o guarda. Eu havia construído a porra de um útero para me unificar a cada semana. Comigo mesma, com Deus, com meus amigos e às vezes com amantes. Mas eu não era dona do quarto. Ninguém é. Dono de qualquer coisa, nem que seja de seu próprio útero, de seu próprio corpo. Tudo vai embora. Mas toda quarta-feira cá estava eu, com ou sem desejo, para ser – qual era mesmo a palavra? Livre.”

Capa do livro "De quatro"

Capa do livro "De quatro"

reprodução

“De quatro”
• De Miranda July
• Tradução de Bruna Beber
• Amarcord/Record
• 322 páginas
• R$ 89,90

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