De bebida marginalizada a símbolo nacional: cachaça se reinventa e inova
A 34ª edição da Expocachaça, que será realizada de quinta a sábado (7 e 9 de agosto), em Belo Horizonte, mostra as novidades desse mercado
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Água que passarinho não bebe, pinga, marvada, branquinha e aguardente são alguns dos apelidos da cachaça, que acumula tradições e histórias. Produzida a partir da cana-de-açúcar, o destilado surgiu no Brasil entre 1516 e 1532, período em que os portugueses exploravam o país. Sua origem tem várias versões, inclusive a de que portugueses habituados à bagaceira, feita das cascas da uva, teriam criado um novo destilado a partir do caldo de cana.
Atualmente, a cachaça integra o cotidiano do país não apenas como símbolo cultural, mas como item relevante na economia, na gastronomia e na coquetelaria. Existem diferentes tipos de cachaça: pura, branca, amarela, envelhecida. A forma de armazenamento influencia o aroma e o sabor. Enquanto a “branquinha” passa por dornas de aço inox e preserva o gosto da cana, as envelhecidas adquirem características específicas ao serem armazenadas em tonéis de madeira, como freijó, amendoim e jequitibá-branco.
Minas Gerais ocupa papel central na cadeia produtiva da cachaça. Segundo a Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), o estado concentra 501 cachaçarias registradas, o que representa 39,6% de todas as unidades no Brasil. O número de rótulos também é expressivo: 2.492 cachaças mineiras fazem parte dos 7.223 produtos registrados no país, equivalentes a 34,5% do total nacional.
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Em crescimento
Esse cenário reflete uma produção artesanal forte, muitas vezes mantida por famílias ao longo de gerações. A tradição se soma à expansão do mercado. Em 2024, os mineiros gastaram R$ 3,6 bilhões com bebidas alcoólicas, o equivalente a 10% do consumo nacional, segundo o IPC Maps. Apenas São Paulo ultrapassa Minas, com R$ 9,5 bilhões em consumo.
Entre os municípios mineiros, Belo Horizonte lidera com R$ 598 milhões. Uberlândia, Contagem e Juiz de Fora aparecem na sequência, todas com crescimento em relação a 2023. No mundo, o mercado de bebidas destiladas movimentou US$ 104,9 bilhões em 2023.
A cachaça brasileira, classificada como bebida espirituosa pela NCM 22.08.40.00 (um código de oito dígitos estabelecido pela legislação federal para identificar as mercadorias e facilitar o comércio internacional), teve aumento de 10% nas exportações nos últimos cinco anos. Os principais consumidores estão na Itália, Estados Unidos e Espanha.
Quase mil rótulos
O chef e empresário Miguel Murta faz parte do reposicionamento da cachaça no cenário gastronômico de BH. No antigo bar Via Cristina, chegou a organizar 909 rótulos de cachaça em uma prateleira com escada, semelhante a uma biblioteca. “A casa estava sempre cheia. Depois, levei a ideia para o Via Deslandes, que hoje tem mais de 100 rótulos”, afirma. Entre os mais caros, está a Havana, que sai a R$ 120 a dose. Outros custam a partir de R$ 11.
Do Via Cristina ao Via Deslandes foram muitos anos sem trabalhar em algum estabelecimento e com a cachaça. O distanciamento serviu para ele se aproximar da produção de carne, o que anos depois passou a conectar esses dois protagonistas. “No novo endereço, a cachaça é servida com carne, petiscos como torresmo e outras porções tradicionais.”
A casa também oferece uma dinâmica que serve tanto para apresentar aromas e sabores de cachaças, quanto para abrir o leque de títulos para quem já é fã de uma cachacinha. “Quem quiser explorar um pouco mais dessa bebida pode escolher a tábua de degustação com seis meias doses”, destaca. “Muitas gerações passam por aqui e adquirem o gosto pela cachaça”, diz.
A mudança de percepção passa por ações como a Expocachaça, realizada desde 1998 em Belo Horizonte. “A feira tirou a cachaça de um estigma negativo e a reposicionou como destilado nobre”, explica o idealizador José Lúcio Mendes. Mais do que um festival, o evento é um ponto de encontro entre produtores, pesquisadores e apreciadores. “O visitante pode fazer um passeio pela produção de cachaça de 18 estados. É uma diversidade cultural”, afirma.
Segundo ele, o evento teve papel central na formalização da cadeia produtiva. “Antes, havia preconceito. Muitos achavam que cachaça era bebida de homem cachaceiro - o famoso ‘pinguço’. As mulheres começaram a frequentar e as pessoas viram que havia famílias por trás da produção, da história e da tradição”, diz José Lúcio. “Os estandes começaram a ser enfeitados e agora parecem a sala das casas dos produtores. Há avôs e avós por trás desse produto.”
A relação com a cachaça também passa por como ela é consumida. Para José Lúcio, é possível apreciar a bebida de forma semelhante a outros destilados, como o uísque. "Coloque no congelador e tome em uma taça. Ela fica licorosa. Ou acrescente gelo e água com gás."
A versatilidade permite ainda a criação de coquetéis. Um exemplo é a caipirinha “Verde e Rosa”, inspirada no cantor e intérprete Jamelão, da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. A receita leva limão, açúcar, cachaça, gelo e um toque de Campari, que confere a coloração rosada (veja receita abaixo).
Expocachaça
A 34ª edição da Expocachaça será realizada de quinta a sábado (7 e 9 de agosto), no CenterMinas Expo. Com programação das 12h à 0h, o evento traz também a 18ª BrasilBier, voltada às cervejas especiais, e a 3ª edição do Minas + Doce. A feira funcionará nos formatos B2B (negócios) e B2C (público geral).
Neste ano, 12 produtores de cachaça artesanal do Norte de Minas participam da feira com apoio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (SEDE-MG). A seleção foi feita por meio do projeto "Vem De Minas", que busca ampliar a presença de produtos mineiros em feiras e mercados estratégicos dentro e fora do Brasil.
Os produtores fazem parte do Arranjo Produtivo Local (APL) Cachaça de Alambique de Salinas, um dos mais consolidados do estado. Reconhecida como um dos principais polos produtores do país, Salinas reúne empreendimentos de diferentes portes, além de cooperativas.
O objetivo do APL é qualificar a produção, promover inovação e fortalecer a governança do setor. Alguns dos produtores participantes têm o selo Minas Cachaça, concedido pelo Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA-MG), que atesta a origem e a qualidade da bebida. Segundo a SEDE-MG, a iniciativa reforça a importância dos arranjos produtivos locais como motores do desenvolvimento regional.
A nova geração da cachaça
Nos últimos anos, bares e marcas passaram a tratar a cachaça como um produto sofisticado. É o caso do bar Lamparina, criado por Guilherme Costa e Thales Campomizzi no Mercado Novo. “O objetivo era apresentar a cachaça como um destilado, não como algo exótico”, afirma Guilherme. A casa trabalha exclusivamente com bebidas feitas com cachaça e atrai um público entre 25 e 40 anos.
O cardápio oferece desde a tradicional caipirinha de limão ao “Rabo de Galo”, servido em copo original, além do “Burrin de Minas”, releitura do Moscow Mule com cachaça. “Tudo que é cítrico combina com cachaças claras. Já as frutas amarelas vão bem com madeiras doces, como o carvalho e o mandurana”, comenta Guilherme.
Ele destaca a importância da experimentação. “A cachaça é muito ampla para ser resumida à caipirinha. Existe um preconceito. Muitas vezes as pessoas preferem pagar mais por um uísque sem conhecer a diversidade que temos aqui.”
O respeito ao produto também é fundamental. “Você não toma cachaça de um gole só. Ela foi feita para ser apreciada”, diz, parafraseando Nando Chaves, produtor da cachaça Século XVIII.
Também em um mercado, mas no Central, pode-se encontrar um olhar moderno para a cachaça. Um exemplo é a Xá de Cana, bebida pronta criada por Sthella Lima em 2023. A receita leva cachaça, caldo de cana e limão. Este ano, a marca inaugurou uma loja no Mercado Central. “É um lugar histórico, de 1929. Une tradição e novidade”, afirma.
Há alguns anos, as bebidas enlatadas conquistaram o coração e o paladar de quem curte a folia do carnaval em Minas. As misturas são as mais diversas, que vão do gim ao rum e estão cada vez mais presentes nas prateleiras dos supermercados. Sthella conta que o Xá de Cana faz parte dessa onda, mas que o objetivo é manter as vendas ao longo de todo o ano e ocupar outros espaços, como um dos cartões-postais de Belo Horizonte.
Sem preconceito
Mas, segundo a criadora, mais do que ampliar a marca, o espaço ajuda a quebrar o preconceito com a cachaça. “Por muito tempo, ela foi vista como algo inferior, chamada até de ingrediente ruim. Mas tem um processo rico de fermentação e destilação. Usamos cachaça de qualidade, isso faz diferença.”
Ela lembra que o Mercado Central é um ponto de respeito entre os vendedores. “Muita gente trabalha ali há décadas. A presença da Xá de Cana mostra como o produto ganhou visibilidade”, diz. Sthella também conta que o objetivo é expandir a presença da bebida em Minas Gerais para depois focar em outras regiões do Brasil. Ainda assim, ela conta que a marca já tem distribuição em São Paulo.
Você sabia?
- O termo "cachaça" tem raízes no português europeu e deriva da palavra espanhola "cachaza", usada para se referir a um subproduto da cana-de-açúcar anterior à cristalização do açúcar. No Brasil, o nome passou a identificar a aguardente de cana já no século XVI.
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Presente em práticas religiosas de povos indígenas e africanos, a cachaça acabou ganhando espaço também no imaginário católico popular. Com o tempo, fiéis passaram a associar a bebida a santos protetores como Santa Joana d’Arc, São Benedito, São Jorge e Santo Onofre. O hábito de "oferecer um gole ao santo" simboliza um gesto de devoção, muitas vezes entendido como uma forma de pedir licença antes de pecar.
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Inicialmente consumida para enfrentar o frio e a umidade, a cachaça foi incorporada à medicina caseira brasileira. Durante gerações, ela foi ingrediente comum em garrafadas usadas para tratar desde constipações e fraqueza até picadas de cobra, malária e até impotência. A prática ainda sobrevive em muitas regiões do país.
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A cachaça tem uma conexão histórica direta com o rum. Após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1654, parte deles migrou para o Caribe, levando consigo o conhecimento sobre a destilação da cana. Um ano depois, em 1655, esse processo foi implantado em Barbados, dando origem ao rum tal como é conhecido hoje. Por isso, muitos especialistas consideram a cachaça a precursora do rum caribenho.
Anote a receita: Caipirinha com Campari
Por José Lúcio Mendes, idealizador da Expocachaça
Ingredientes:
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Limão
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Açúcar
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Cachaça
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Gelo
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Um toque de Campari
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Modo de preparo:
Esmague o limão com açúcar, acrescente gelo e cachaça. Finalize com um toque de Campari por cima, sem misturar. Sirva em copo baixo.