
"BH é a cidade mais literária do Brasil", diz Afonso Borges
Gestor cultural, criador do projeto Sempre um Papo e de quatro festivais literários, ele avalia o cenário da leitura e da literatura no país e evita pessimismo
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Siga noO jornalista e gestor cultural Afonso Borges costuma referir-se a si mesmo como louco. Mas loucura talvez não seja o melhor termo para defini-lo. Afinal, é preciso estar antenado aos acontecimentos do mundo literário para conseguir manter de pé quatro festivais anuais de literatura (Fliaraxá, Flitabira, FliparacatU e Flipetrópolis) e tocar um projeto como o Sempre um Papo, que há 38 anos serve como plataforma para promover o diálogo entre autores, críticos e leitores.
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“O projeto pegou essa tônica de profissionalização das ações de comunicação ao redor do livro. Nós fizemos do lançamento do livro um grande acontecimento”, afirma Borges, o convidado desta semana do “EM Minas”, programa da TV Alterosa em parceria com o Estado de Minas e o Portal Uai. Confira a seguir trechos da entrevista.
Afonso, um dos grandes projetos da sua vida, o maior eu acho, é o Sempre um Papo, que está com 38 anos de vida. A que você deve a longevidade desse projeto?
Brinco que entrei no Sempre um Papo para ler mais, desenvolver minha capacidade de leitura e isso virou a minha vida. Foi uma virada de vida, quando comecei o projeto entrevistando Oswaldo França Júnior, depois Fernando Brant. Começamos num pequeno bar.
Depois, parei com esse negócio de debate em bar, porque sempre voava alguma coisa. Foram dois anos magníficos, todo mundo lembra do Darcy Ribeiro no Cabaré Mineiro; a Adélia Prado no Cabaré Mineiro, tanta gente que levamos lá. Estamos falando de 1986 a 1988, final da ditadura e início da anistia, as pessoas queriam conversar muito.
“Muita coisa pode ser interpretada de outro jeito com relação à leitura no Brasil. Apesar de termos índices documentados de baixa leitura no país, o que é um paradoxo é que o Brasil é o país que mais compra livros educacionais no mundo”
Afonso Borges, produtor cultural
Então o projeto começou com esse desejo de fazer as pessoas falarem. E, desde o início, o livro estava no centro. O projeto pegou essa tônica de profissionalização das ações de comunicação ao redor do livro. Nós fizemos do lançamento do livro um grande acontecimento.
Você é corajoso demais. Livro? Num país que lê tão mal, tão pouco…
Pois é, isso é fato, mas também tem muito mito. Muita coisa pode ser interpretada de outro jeito com relação à leitura no Brasil. Apesar de termos índices documentados de baixa leitura no Brasil, o que é um paradoxo é que o Brasil é o país que mais compra livros educacionais no mundo.
“Está acontecendo uma mudança, uma virada de chave na literatura brasileira. Os autores negros brasileiros hoje estão não só recontando a história brasileira, como estão criando novas histórias contemporâneas com a ótica da escravidão”
Afonso Borges, produtor cultural
São quantas edições do Sempre um Papo?
Perto de 7 mil edições. São 38 anos. Também teve um aumento, porque eu estive em São Paulo, Paraná, Acre, Rondônia, várias cidades brasileiras. Começou em BH, mas foi embora para o país inteiro. Até fora do país, acabei de voltar de Braga, em Portugal, onde fiz duas edições (do Sempre um Papo). Há oito anos eu vou a Óbidos (também em Portugal) levando o Sempre um Papo.
Belo Horizonte é uma cidade literária?
É a cidade mais literária do Brasil. O José Saramago participou do Sempre um Papo aqui em 1999, antes de ganhar o Nobel. Logo que ele ganhou o Nobel, o primeiro lugar que ele quis vir foi para Belo Horizonte, dado o carinho com o qual a cidade o recebeu. Isso é uma defesa da literatura. Belo Horizonte virou o centro da literatura brasileira.
Entre 1923 e 1924, Mário de Andrade veio a Belo Horizonte para fazer aquele trajeto e ali nasceu a amizade com Drummond, que levou uma geração de mineiros para o Rio de Janeiro em 1930. Em 1945, foi a geração do Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.
Eles foram para o Rio numa época em que não se perguntava se o mineiro iria para o Rio, mas quando iria. É uma geração que foi formar a mentalidade do jornalismo brasileiro da qual saiu (Fernando) Gabeira, Ivan Ângelo, Humberto Werneck, Affonso Romano de Sant'Anna. Ou seja, a gente tem, pelo menos, duas sequências de geração que formaram a mentalidade brasileira na área da literatura. Então, imagina a potência literária que essa cidade (e também Minas Gerais) tem!
Por que o livro é tão caro no Brasil?
Acho que a cerveja é cara. É uma coisa muito simples, quanto tempo a cerveja fica dentro do seu organismo? Alguns minutos. Livro, não. Livro é eterno.
Mesmo para as populações menos favorecidas?
Aí são políticas governamentais. As bibliotecas no Brasil são muito ativas. O Brasil é o país que mais compra livros para escola no mundo, tanto em número quanto em valores. Fico pensando que existem alguns mitos lançados no imaginário das pessoas com relação ao livro.
O livro é acessível. Se a pessoa não tem dinheiro, vai a uma biblioteca; se a pessoa não tem acesso à biblioteca, pede um livro emprestado. Li livro emprestado a vida inteira. Lia na biblioteca da PUC. O preço é um atravessador, uma tangente que se cria na justificativa de quem não lê. A leitura exige tempo, exige concentração.
E hoje o que nós menos temos é concentração. As chamadas distrações digitais acabaram com a vida doméstica. Mas, ainda assim, tem muita gente lendo no celular. E este é o momento da humanidade em que mais se escreve.
Recentemente, saiu a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil e, pela primeira vez, o percentual de brasileiros que não leram nada, nem uma parte de um livro nos três meses até a pesquisa, passou de 50%. Eles calcularam um decréscimo de 7 milhões de leitores. Você concorda com os resultados?
Os resultados são inequívocos. Só discordo um pouco da metodologia. Porque uma coisa é a pessoa não ler, outra coisa é uma pessoa não comprar livro – essa é uma pesquisa do mercado editorial e fez essa outra interpretação da questão da leitura.
Agora, eu pergunto qual outro momento da história da humanidade, e não estou falando só do Brasil, onde se leu tanto? Leu fora da plataforma do livro, mas leu na internet, leu no celular, leu em tantas outras redes sociais. Os jovens se comunicam pelo DM do Instagram e do Tik Tok.
Você tomou bolo alguma vez (de convidados para o Sempre um Papo)?
Teve o caso do Millôr (Fernandes). Todo mundo falou que ele iria faltar e eu não acreditei. No dia, ele me telefonou dizendo que não poderia participar. Aí eu não tive dúvida, peguei o telefone dele na porta do BDMG (onde aconteceria o Sempre um Papo) com o aviso: “Millôr avisou que não vai. Favor ligar para a casa dele”. Dizem que em menos de três semanas ele trocou o telefone (risos). Fora isso, só tiveram casos justificáveis, como alguma doença ou coisa do tipo.
Qual foi a maior fila de autógrafos no Sempre um Papo?
Saramago, Darcy Ribeiro, Fernando Sabino e Ziraldo. No dia do Darcy Ribeiro, eu lancei o livro dele no Palácio das Artes. Tinha uma fila de umas 1,5 mil pessoas, vazando para a Afonso Pena. Lá pela meia-noite, uma hora da manhã, ele terminou de autografar e estava saindo do Palácio das Artes comigo.
Ele olhou pra mim, pegou no meu braço e falou assim: ‘Afonso, vamos comer uma carninha fatiada com whisky’. E era uma época em que ele não estava bem de saúde. Eu falei: ‘Menino, vai pra casa, você tem que descansar’. Que nada, fomos para o hotel e ficamos até de manhã conversando.
Como surgiu o Fliaraxá (Festival Literário de Araxá)?
O Fliaraxá resultou do Sempre um Papo em Araxá. Então, a ideia era fazer um festival literário meio misturado. Agora, tomou uma força tão grande que não só tem 14 anos, como surgiram os outros (Flitabira, Fliparacatu e Flipetrópolis).
Mas o segredo é: comunidade. Um festival literário só se consolida com a participação do público da cidade. Então, o que eu fiz? Juntei a comunidade com os escritores locais, com as escolas e deu tudo certo.
Por que Araxá, e não Bom Despacho, Divinópolis ou Montes Claros?
Por causa da Lei Rouanet. Nós temos essa belíssima lei de incentivo à cultura, a única no mundo. Resumindo, a gente só faz festival literário pela Lei Rouanet numa cidade que tenha uma grande empresa. Araxá tem a CBMM; Paracatu, a Kinross; e Itabira, a Vale.
“Um festival literário só se consolida com a participação do público da cidade. Então, o que eu fiz? Juntei a comunidade com os escritores locais, com as escolas e deu tudo certo”
Afonso Borges, produtor cultural
Você está lançando “Tardes brancas”.Esse é qual livro da série?
É o meu primeiro livro de contos. São 26 contos e cinco poemas.
Mas quantos livros você já escreveu?
De poemas, uns seis ou oito; um livro infantil, “O menino, o assovio e a encruzilhada”, e esse de contos.
E “Olhos de carvão”...
Esse (referindo-se a “Tardes brancas”) é o “Olhos de carvão” completamente reescrito. Senti que ele mereceria uma nova redação. Quando reescrevi os contos, a Rejane (Dias), da Editora Autêntica, decidiu publicar.
E os poemas têm uma história muito engraçada. Me pediram uma antologia – eu escrevo poemas há 40 anos –, eu peguei meus, sei lá, 400, 500 poemas e comecei a reler. Sabe quantos ficaram? Cinco. Mas é o que eu consegui entender como poemas que eu assinaria.
A poesia tem muito a ver com um momento seu de vida, tem ali uma face que revela aquele seu momento. Quando você olha para trás, fica muito difícil (se identificar com aquilo).
Voltando aos festivais, depois de Araxá, teve o Flitabira.
Foi um desejo meu e do Hugo Barreto, hoje presidente do Instituto Cultural Vale, e ganhou força quando o jornalista Marco Antônio Lage foi reeleito prefeito. Então as coisas se tornaram visíveis para mim e idealizamos o Flitabira.
Itabira é uma cidade que reflete a vontade de um autor a vida inteira. Ela permeou toda a poesia de Drummond durante a vida dele. Poucos escritores mundiais se referiram tanto à sua própria cidade como ele.
E a população abraçou a ideia?
A população de Itabira comprou o evento, como Araxá também abraçou o evento, porque o festival é composto de muita coisa. É um caldeirão onde a gente joga literatura lá dentro, mas também joga educação, música e todo tipo de arte. A palavra é festival, não é feira, não é festa. É festival.
E o que é o festival? É onde todas as artes se encontram. E os autores (que o festival convida) são os principais do Brasil, principalmente autores negros. Está acontecendo uma mudança, uma virada de chave na literatura brasileira. Os autores negros brasileiros hoje estão não só recontando a história brasileira, como estão criando novas histórias contemporâneas com a ótica da escravidão.
Eu queria chegar lá no Fliparacatu. Aliás, fiquei sabendo uma história superlegal de uma moça que esteve no Fliparacatu. O que foi que aconteceu?
Primeiro, é legal falar que Paracatu é uma cidade que dá para fazer um festival em muitos lugares. Dá para fazer no centro cultural, na igreja, na praça principal. Você vai passeando pelo festival em cada lugar da cidade.
Mas a história da menina é a seguinte: quando terminei a segunda edição, veio uma moça com seus 15 anos e me disse: “Ano passado, entrei aqui quarta-feira e saí domingo. Fiquei sentada aqui assistindo a todos os debates. Este ano, eu fiz a mesma coisa. Sentei aqui na quarta-feira e estou saindo agora, sábado à noite. Queria te pedir para, no ano que vem, fazer a semana inteira, de segunda a segunda”. (risos). Tem melhor gratificação do que isso?