Afonso Borges à frente do Palácio de Cristal, em Petrópolis, onde realiza o primeiro festival literário da cidade:

Afonso Borges à frente do Palácio de Cristal, em Petrópolis, onde realiza o primeiro festival literário da cidade: "Me sinto fazendo um festival em Ouro Preto, mas sem as ladeiras"

crédito: W.Still/Divulgação

“Unir desiguais, juntar gêneros, criar temas, conversar com os autores sobre o modo de condução. A curadoria é uma espécie de construção de mentalidades.” Assim o produtor cultural Afonso Borges define o seu trabalho. Organizador de festivais literários em Araxá, Itabira e Paracatu, o criador do projeto Sempre um Papo realiza neste fim de semana a primeira edição do Flipetrópolis, que reúne na cidade serrana do Rio de Janeiro nomes como Eliana Alves Cruz, Carla Madeira, Itamar Vieira Jr e as homenageadas Conceição Evaristo e Ana Maria Machado.

 

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A seguir, Afonso comenta os desafios de produção de cada evento e ressalta o que diferencia os festivais que produz: “São realizados nas praças e espaços da cidade. São visíveis, do ponto de vista urbanístico. A maioria dos festivais e feiras literárias brasileiras acontece dentro de galpões e espaços fechados.”

 

 

Entrevista/Afonso Borges (produtor cultural)

Quais os maiores desafios na elaboração da programação de um festival literário? É um trabalho de curadoria?
O maior desafio, sempre, é o patrocínio. A Lei Rouanet transformou a cultura deste país – mais que isso: é o único instrumento de subsídio à cultura brasileira que funciona. Aqui em Minas também a Lei Estadual funciona muito bem há mais de 20 anos. O trabalho de curadoria é o mais gostoso de fazer. Unir desiguais, juntar gêneros, criar temas, conversar com os autores sobre o modo de condução e mais: a curadoria é uma espécie de construção de mentalidades. Por isso os festivais que faço têm sempre três palavras, mediadas por leitura ou literatura. E, com o tema, os parceiros Tom Farias, Sérgio Abranches e Leo Cunha se fixaram como alavanca destra construção.


Quais as principais características dos três festivais realizados em Minas? O que os une e o que os diferencia?
Os meus festivais têm características completamente diferentes dos demais: em primeiro lugar, um obsessivo cuidado com o autor. Cuidado em todos os sentidos possíveis: honorários, viagem, transporte, hospedagem, mobilidade e tema. Nosso olhar ao autor é amoroso. Depois, o conteúdo civilizatório: todas as atividades são gratuitas, todas têm acessibilidade, são inclusivas, têm libras e audiodescrição. Além disso, cuidamos desde o lixo até a descarbonização do evento, com o Instituto Terra.


Em outra ponta, a questão de conteúdo: são democráticos, éticos, têm qualidade, autores progressistas e olhar firme na democracia. Tenho certeza de que os autores que escolho estão formando uma nova mentalidade brasileira: Eliana Alves Cruz, Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Jr, Djamila Ribeiro e tantos outros. Em primeiro lugar, são ótimos escritores. Em segundo, contam histórias que estão nos reeducando para um mundo antirracista. Se existir uma maneira de salvar o mundo é esta: o fim do racismo.


Tem também o fator urbano (e turístico). São festivais realizados nas praças e espaços da cidade. Eles interferem no trânsito, na vida das pessoas. É um festival visível, do ponto de vista urbanístico. A maioria dos festivais e feiras literárias brasileiras acontece dentro de galpões e espaços fechados. Nos nossos “flis”, a cidade vê as filas enormes que ser formam para assistir aos escritores brasileiros. E importante: hoje eles são estrelas de rock! Reúnem multidões!


Qual é o diferencial do Flipetrópolis, que começou na última quarta? O que o levou a realizar um festival na cidade serrana do Rio de Janeiro?
Um conjunto de forças: o prefeito de Petrópolis viu os vídeos do Fliaraxá, Flitabira e Fliparacatu e ficou encantado. E nos convidou a repetir a experiência na cidade. Este é um festival peculiar que junta recursos da prefeitura e de empresas via Lei Rouanet. O diferencial é a tradição literária e histórica que a cidade de Petrópolis tem, além da proximidade do Rio de Janeiro, que facilita muito. O Palácio de Cristal, no Centro da cidade, recebeu auditórios, edificados e o próprio palácio tornou-se uma livraria imensa, com mais de 30 mil títulos. Eu me sinto fazendo um festival em Ouro Preto. Mas sem as ladeiras.


Como a discussão de temas atuais entra na programação dos festivais?
Os nossos festivais são interligados com a realidade brasileira e do mundo através dos temas. Flipetrópolis tem “Arte, Literatura, Educação e Liberdade”. Veja: Arte com a exposição “Portinari Para Crianças”, com 24 painéis com reproduções de Portinari com motivos infantis; Literatura é sempre o eixo; Educação porque grande parte da programação é voltada para crianças e Liberdade por causa dos 60 anos do golpe militar. O segredo é este: contextualizar o festival, dar conceito e conteúdo, levar autores que se alinhe ao tema.


O que mudou nos festivais literários depois da pandemia?
Sem dúvida nenhuma, uma tremenda articulação com as redes sociais e as transmissões ao vivo. Em 2020, fizemos o único festival do mundo 24 horas no ar na internet. Não tenho notícia de quem conseguiu fazer isso. Até a Feira de Frankfurt foi cancelada este ano. Os modelos, sistemas e aparatos técnicos do áudio visual foram definitivamente incorporados aos meus festivais, que tem toda a sua programação transmitida pelo YouTube. Mas é importante lembrar que isso vem de longe: em 2012, o primeiro Fliaraxá foi totalmente transmitido pelo único recurso que tínhamos em mãos: o Facebook.


Como se dá a interação com as cidades que sediam os festivais? E com os autores locais?
Este é um ponto-chave. A população local tem que entender que os festivais são feitos, em primeiro lugar, para ela. Nós convidamos curadores e produtores locais, contamos com o apoio de prestadores de serviços da região e mais: as Academias de Letras das cidades são protagonistas. Elas fazem toda a programação local.


“Língua, Leitura, Livro, Literatura, Livraria” é o norte dos eventos produzidos por você. O Brasil valoriza os cinco itens?
Há mitos sobre isso que um dia temos que enfrentar. O mito de que o brasileiro lê pouco ou nada é confrontado com as centenas de pessoas nas filas para assistir Paula Pimenta, Itamar Vieira Jr. e tantos outros. A Paula escreve livro de 600 páginas! E é muito lida. Como analisar este paradoxo? Ao mesmo tempo que é fácil dizer que o governo não liga para a leitura, vivemos no país que mais compra livros no mundo para as escolas. A minha recompensa está no olhar das pessoas ao final dos debates. É sempre um agradecimento sincero.


Em tempos de dispersão acentuada pelas redes sociais, como garantir a atenção do frequentador do festival?
A gente incorpora. Tem espaço “instagramável”, todos tiram fotos, gravam vídeos durante o evento. Não há mais como estabelecer disparidade. A desatenção veio para ficar.

Que encontro de autores, mesmo impossível, gostaria de ter promovido em um de seus festivais?
Nossa! Vários: Drummond e Chico Buarque. Saramago e Adélia Prado. Dois vivos: Mia Couto e Conceição Evaristo – este eu fiz, no Fliparacatu. Ou seja, o impossível mora ali na esquina.


O que é preciso fazer para garantir a permanência dos festivais literários?
Mais gente com amor no sangue para cuidar direito dos autores e construir festivais interativos, felizes e literários.

Festivais
de Afonso
em Minas

Fliaraxá
“Memória, Literatura e Diversidade”
De 19 a 23 de junho

Fliparacatu
“Educação, Literatura e Liberdade”
De 28 de agosto a 1º de setembro

Flitabira
“Alma, Leitura e Poesia”
De 30 de outubro a 3 de novembro