
BH é metrópole assustadora em "O veludo das lagartas verdes"
Livro recém-lançado de João Batista Melo conta a história de homem interiorano que viaja à capital mineira em busca do filho e se depara com uma cidade hostil
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Siga noEm um de seus mais belos e raros poemas, "Gargalhada", publicado postumamente no livro “Magma” (1996), Guimarães Rosa descreve o momento exato em que o eu lírico é informado pelo ser amado de que está sendo deixado. Deprimido e resignado, ele expressa: “Olhei-te bem nos olhos, belos como o veludo das lagartas verdes, e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos, tive pena de ti, de mim, de todos”.
A comparação com a fase jovem do inseto – lagarta verde é o nome que se dá à fase em que o animal está prestes a virar borboleta – caiu como uma luva para o escritor, cineasta e músico João Batista Melo. Ele precisava de um título para seu novo romance sobre um homem interiorano que viaja até Belo Horizonte a fim de encontrar o filho e se depara com uma cidade descaracterizada pela construção civil.
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Lançado no final do ano passado pelo selo Faria e Silva, do grupo editorial Alta Books, “O veludo das lagartas verdes” passou por uma odisseia metamorfa nos últimos 40 anos. Concebida inicialmente como roteiro de filme, a história ficou engavetada por anos, devido à incompatibilidade de ideias entre Melo e mais dois parceiros com quem desenvolveria o longa, Alcino Leite Neto e Ivan Claudio.
“Eu sempre tive uma grande influência do cinema norte-americano. Meu maior ídolo como diretor foi e ainda é Steven Spielberg. Já eles eram mais ligados à nouvelle vague, ao trabalho de Godard. Juntar essas duas estéticas era inviável. Por isso acabei deixando o texto guardado”, explica Melo.
Alguns anos depois, ele tentou novamente viabilizar o projeto como longa-metragem, desta vez sozinho. Não conseguiu levantar recursos e, mais uma vez, voltou com o texto para a gaveta. “A Embrafilme acabou nessa época e o cinema brasileiro parou por alguns anos”, lembra o escritor, referindo-se à produtora e distribuidora estatal dissolvida em 1990 pelo governo Collor de Mello.
Uma terceira tentativa ocorreu 10 anos mais tarde, também sem sucesso. E somente em 2024 Melo decidiu transformar o roteiro em livro.
Elo perdido
Com toques noir, a trama é ambientada entre as décadas de 1970 e 1980. Acompanhamos Antonio, um homem que, após a morte da esposa e a aposentadoria no pequeno vilarejo de Curva do Alto, decide ir a Belo Horizonte procurar o filho único, Estevão. O jovem havia se mudado para a capital em busca de melhores condições de vida, mas parou de se corresponder com a família.
Com apenas o endereço de uma antiga pensão na Lagoinha, Antonio desembarca em Belo Horizonte. Ele descobre que o local está prestes a ser demolido para a construção dos viadutos que integram o complexo da região e a expansão da Avenida Antônio Carlos.
Com a dona da pensão e outros hóspedes que insistem em ficar naquele ambiente semidestruído, Antonio descobre que o filho está envolvido em atividades suspeitas – provavelmente relacionadas ao tráfico, embora o livro não deixe isso explícito. Confuso com aquele mundo novo e perigoso, ele decide, então, tentar um encontro com Estevão, a fim de convencê-lo a voltar para Curva do Alto.
Antonio enfrenta dilemas e contrariedades ao longo da trama, cruzando com personagens que representam a população marginalizada da Belo Horizonte daquela época, marcada por uma mistura de astúcia e ingenuidade diante das adversidades. O protagonista, aliás, é a expressão máxima do casamento entre simplicidade e ingenuidade.
Ele também pode ser interpretado como uma espécie de lagarta impedida de se metamorfosear. Seu processo de transformação é interrompido de forma abrupta e trágica, da mesma forma como ocorre com a Belo Horizonte das décadas de 1970 e 1980, vítima de um processo forçado de urbanização que impediu seu desenvolvimento natural.
“Ao escrever essa história, eu queria enfatizar o drama familiar entre Antonio e Estevão e também o drama social, com o processo de marginalização da sociedade. Faltavam – e ainda faltam até hoje políticas eficazes contra coisas nocivas, como a expansão da criminalidade, que, naquela época, estava apenas começando e hoje faz parte do nosso cotidiano”, afirma Melo.
Diferentemente de seus romances anteriores, “Patagônia” e “Malditas fronteiras” – este último com uma nova edição prevista para este ano –, em que Melo se dedicou a intensas pesquisas históricas, “O veludo das lagartas verdes” segue abordagem mais pessoal.
“Em ‘Patagônia’, pesquisei muito sobre a história da Argentina, e em ‘Malditas fronteiras’ me aprofundei nos alemães que vieram para Belo Horizonte durante a Segunda Guerra Mundial. Já este novo livro trata mais de uma contextualização do meu sentimento em relação àquela época”, explica o autor.
Melo não descarta adaptar “O veludo das lagartas verdes” para o cinema, conforme planejou há 40 anos. Ele está trabalhando nisso com a escritora Branca Maria de Paula. “Transformar um roteiro em um filme propriamente dito é um longo caminho. Mas vamos ver se conseguimos. Está nos meus planos tentar”, conclui, repetindo a última palavra. Tentar.
TRECHO
“Staying alive. Staying alive.
Embora não soubesse o que diziam na canção, que fazia o motorista marcar o ritmo com as mãos no volante, Antonio sentia-se bem ouvindo as vozes no rádio. Ante o silêncio do chofer, era ao menos uma voz, e ele tentava extrair dali a impressão de não estar sozinho na noite de ano-novo. Na verdade, era com eles, os cantores, que passava o réveillon de 1980.”
“O VELUDO DAS LAGARTAS VERDES”
• De João Batista Melo
• Editora Faria e Silva (128 págs.)
• R$ 44,90