O que move o crime? Raio-x revela a violência urbana por trás dos números
Reportagem mapeia grandes cidades mais violentas, motivos para a criminalidade, meios usados pelos criminosos e onde eles mais atuaram em 2024 em Minas
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Siga noOs blocos de edificações compridas de cor clara, dois andares, cobertos por telhas de barro e dispostos em quatro corredores valeram a um conjunto habitacional de Esmeraldas, na Grande BH, o apelido pejorativo de “Carandiru” – nome da Casa de Detenção de São Paulo, então a maior da América Latina, onde 111 detentos foram massacrados em 1992. A associação de mau gosto, porém, vai além do aspecto simétrico das construções, e passa também pela violência: os prédios e o bairro à sua volta somaram o maior número de pessoas assassinadas no município em 2024.
A morte de homens jovens, sobretudo em disputas do tráfico de drogas, fizeram também dessa cidade na Região Metropolitana de BH o município com a maior proporção de vítimas de homicídios entre os grandes centros de Minas Gerais em 2024, chegando a uma taxa de 36,2 mortos por grupo de 100 mil habitantes. Realidades como essa motivam levantamento do Estado de Minas mostrando os grandes centros urbanos mais violentos (veja quadro na página ao lado), os motivos para a criminalidade, meios usados pelos criminosos e onde mais atuaram no estado, indicando a partir dos números razões para a insegurança percebida pela população.
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“O 'Carandiru' não era assim... Mas começou a receber gente envolvida com coisa que não presta, vinda de vários lugares: de Ribeirão das Neves, de Betim, de Jaboticatubas... Hoje, a prefeitura até tenta limpar o bairro, a polícia passa, mas dentro de predinhos ou nas ruas, na noite, o crime é forte e mata mesmo”, disse um morador das proximidades, de mais de 60 anos, que por segurança pediu para não se identificar. No cemitério central da cidade, ele revelou ter perdido um ex-vizinho morto pela criminalidade na comunidade.
Como esse caso, foram várias as ocorrências de mortes de jovens, em 2024. Em 11 de abril, o dono de um bar, de 28 anos, foi atingido por nove tiros no conjunto e morreu. Os atiradores eram três homens encapuzados, que chegaram diante do estabelecimento disparando com pistolas calibre 9 milímetros e depois fugiram. A polícia informou que o morto tinha passagens por venda de drogas e posse ilegal de arma de fogo.
Em 6 de junho, policiais trocaram tiros em uma ocorrência que resultou na morte de dois rapazes, de 25 e de 27 anos, em um dos apartamentos do conjunto. Segundo a polícia, havia armas e tóxicos no imóvel dos homens, suspeitos de assassinar um taxista em Jaboticatubas. Já em 4 de outubro, um jovem de 25 anos foi morto com tiros nas costas e na cabeça. Um dos investigados é tido como traficante no conjunto, oficialmente chamado Conjunto Habitacional Presidente Castelo Branco.
As piores taxas entre as cidades
Desde 2022, a reportagem do EM mostra que o medo da criminalidade passou a ser uma preocupação rotineira em Esmeraldas, com a cidade ostentando proporcionalmente os piores índices de assassinatos no estado. Em seguida, as vizinhas Ribeirão das Neves (31,5 homicídios por 100 mil habitantes), Pedro Leopoldo (30,3/100 mil) e Betim (28,6/100 mil) põem a Grande BH como a região que soma mais cidades entre os 10 municípios com as mais altas taxas de vítimas de assassinatos.
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Belo Horizonte se encontra na 34ª colocação, mas a capital tem o pior índice de crimes violentos entre os municípios mais populosos, com 380 ocorrências por 100 mil habitantes. Novamente, a Grande BH é destaque negativo, com quatro municípios com mais ocorrências de crimes violentos entre os 10 piores mineiros.
Os índices são resultado de um mapeamento regionalizado feito com auxílio de especialistas em segurança pública e usando dados de ocorrências criminais de 2024 da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), cruzados com números da população dos 72 municípios mineiros com mais de 50 mil habitantes, segundo o censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontando taxas de criminalidade por 100 mil habitantes e números absolutos de registros.
Grandes municípios agravam indicadores
Os 72 municípios avaliados têm, em conjunto, taxa de crimes violentos de 203,7 por 100 mil habitantes, índice quase 30% superior ao mineiro (157,3/100 mil). Situação que piora com taxa de 226,8 (44,2% maior) quando considerados apenas os municípios de mais de 100 mil habitantes. Já os registros de homicídios no grupo de 72 cidades são quase 10% maiores, com taxa de 14,7 ocorrências/100 mil (mesmo índice se considerados municípios com mais de 100 mil pessoas), contra 13,4 da taxa geral no estado.
Ao todo, os municípios avaliados reúnem uma população de 12.174.065 habitantes, que equivale a 59,2% do total do estado. Dos 32.322 crimes violentos ocorridos em Minas, responderam por 24.805 (76,7%), e por 1.792 vítimas de homicídios, 64,7% do total de 2.769 registradas no estado, em 2024.
O coronel Carlos Júnior, especialista em inteligência de Estado e segurança pública, colaborou com a reportagem levantando junto a comandantes e chefes de forças de segurança da ativa e inativos as razões para as estatísticas de crimes. “O levantamento de taxas de crimes violentos e de vítimas de homicídios por população de 100 mil habitantes é uma ferramenta para comparar a incidência criminal entre locais com populações de tamanhos diferentes. Comparar números absolutos seria enganoso, já que municípios maiores naturalmente teriam mais ocorrências. A taxa normaliza esse fator e permite uma comparação mais justa do risco relativo”, afirma.
“Analisar especificamente municípios acima de 50 mil habitantes cria um grupo de pares com características urbanas/semiurbanas mais comparáveis do que municípios muito pequenos”, completa.
As ocorrências em números absolutos
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) informa que considera números absolutos para ocorrências de municípios com menos de 100 mil e mais de 50 mil habitantes. Neste cenário, para a secretaria responsável pela segurança dos mineiros, os 38 municípios nessa faixa de habitantes seriam tratados por ocorrência impactando igualmente populações desde 50.911 a 97.669 habitantes.
No caso dos crimes violentos, as 10 piores cidades nessa faixa estão em oito regiões (Central, Centro-Oeste, Grande BH, Noroeste, Rio Doce, Sul e Zona da Mata) e seriam: Paracatu, com 217 registros; Curvelo (158); Caratinga (153); Esmeraldas (145); Alfenas (142); Itaúna (129); Manhuaçu (125); Viçosa (120); Pará de Minas (119) e Unaí (117). As 217 ocorrências de crimes violentos de Paracatu, município de 94 mil habitantes da Região Noroeste, foram mais numerosas do que os registros de outras 17 cidades com mais de 100 mil habitantes mineiras.
Já as cidades de mais de 50 mil e menos de 100 mil habitantes com maiores quantidades de vítimas de homicídios em 2024 pertencem a cinco regiões (Central, Grande BH, Noroeste, Rio Doce e Zona da Mata), sendo: Esmeraldas, com 31 mortos; Manhuaçu (29); Viçosa (26); Lagoa Santa (20); Pedro Leopoldo (19); Paracatu (18); Pará de Minas (18); Ponte Nova, Mariana, Timóteo e Caratinga (com 17, cada). O total de 29 vítimas de homicídios de Manhuaçu, município de 91 mil habitantes na Zona da Mata, é maior do que os de outras 21 cidades com mais de 100 mil habitantes em Minas.
O avanço das facções
Entre os fatores para a violência nas maiores cidades mineiras, o coronel Carlos Júnior destaca uma grande contribuição da expansão do tráfico e das disputas do crime organizado, mas, com importância significativa, os fluxos de migração devido a empreendimentos vultosos que surgem rapidamente – como agronegócio, mineração e até grandes obras públicas de infraestrutura –, além da necessidade de investimentos em tropas, inteligência e tecnologia.
“A interiorização do crime segue a lógica do adensamento das áreas periféricas urbanas desses municípios, sem o devido acompanhamento em termos de estrutura de policiamento e de equipamentos urbanos, como vias formais, iluminação, água e esgoto”, avalia. “É perceptível o surgimento de bairros afastados nesses municípios, onde a estrutura de polícia antiga não tem coberto a contento ou é demandada em presença excessiva, descobrindo outras áreas”, acrescenta.
Brechas para a alta nos delitos
A criminalidade se aproveita dessas falhas de cobertura de polícia e do poder público para atuar, observa o coronel Carlos Júnior. “É parecido com o que vemos no Rio de Janeiro e em São Paulo. É natural que a cidade cresça, mas não o é que a polícia, as prefeituras e o estado não acompanhem essa expansão. Esses locais precisam ser cuidados. A essa situação, se soma a expansão das organizações criminosas transnacionais, que precisam ser acompanhadas desde o topo e não apenas depois de instaladas no varejo do tráfico”, destaca o especialista em inteligência de Estado e segurança pública. “São vigor novo e mais poder para o crime onde se instalam, trazendo a violência e se apoderando do Estado.”
Tomando o somatório de vítimas de homicídios que tiveram o sexo identificado ao dar entrada na lista da Sejusp, 1.362 (86,13%) eram homens e 216 (13,69%), mulheres. As idades predominantes dos mortos estavam nas faixas de 21 a 30 anos (35,40%) e de 31 a 40 anos (26,23%). Como se tratam de informações preliminares que antecedem investigações mais aprofundadas da Polícia Civil, apenas 55,6% dos óbitos tiveram motivação predeterminada, sendo que o envolvimento com gangues e tráfico chega a 44,97%. Os motivos mais numerosos foram envolvimento com drogas ou tráfico (26,62%), brigas e atritos (20,86%), ações de gangues ou facções criminosas (18,35%), vinganças (11,69%) e crimes passionais – reações impulsivas e não premeditadas (8,09%).
Entre os registros em que foi possível determinar quais os meios usados para matar, o predomínio absoluto é das armas de fogo (59,8%), seguidas de armas brancas (26,6%). Quando se restringe aos motivos conhecidos de envolvimento com drogas ou tráfico e ações de gangues ou facções criminosas, a utilização das armas de fogo nas mortes chega a 88,6%.
Marcas das criminalidade
O coronel Carlos Júnior consultou profissionais de segurança pública que estão ou já estiveram na posição de comandando ou chefia de regiões mineiras para sua análise sobre os dados da reportagem. “Desses homicídios, possivelmente 70% se devem ao tráfico, às gangues e ao crime organizado, ainda que pareçam brigas ou vinganças, pois assim são preliminarmente identificadas na estatística da Sejusp. São, na verdade, o poder do crime sendo exercido e punindo com a morte”, informa.
“É preciso apreender mais armas de fogo usadas pelos criminosos e interceptar esses carregamentos que vêm de fora do estado, pois 90% dessas mortes são causadas por elas. Mas faltam operações táticas para apreender armas e drogas. As unidades especiais se tornaram mais raras no interior, segundo as forças de segurança desses municípios. Ao mesmo tempo, a solução de inquéritos está muito aquém e é incapaz de desarticular as grandes quadrilhas que, munidas de eficiente aparato jurídico, se livram de penas na Justiça e se mantêm impunes”, destaca o coronel.
Roubos lideram entre ocorrências
Os crimes violentos considerados pela Sejusp se dividem em extorsão mediante sequestro e nas modalidades tentadas e consumadas de estupro, extorsão, homicídio (relativo a ocorrências e não ao quantitativo de vítimas), roubo, sequestro e cárcere privado. Os roubos são responsáveis por 64,1% dos crimes violentos, com 15.910 ocorrências dos 24.805 registros. Com isso, é o crime de mais impacto para esse índice de violência.
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Certos tipos criminais se mostraram mais presentes na composição dos crimes violentos nas 72 cidades mais populosas de Minas Gerais, o que indica para quais problemas de segurança podem ser maiores os desafios para o poder público nesses locais. Os estupros, por exemplo, têm maior representatividade em Muriaé, na Zona da Mata, onde chegam a 10,5% da criminalidade violenta. Já o estupro de vulnerável é mais presente em Congonhas, na Região Central, com 30% do total.
A extorsão chegou a 13,9% dos crimes mais violentos em Campo Belo, no Centro-Oeste. Já as saidinhas de banco ou extorsão mediante sequestro predominam em Bom Despacho, representando 2,5% do total. As ocorrências de homicídio têm mais representatividade em Timóteo, no Vale do Rio Doce (27,1%), enquanto roubo é o que impera em Belo Horizonte, com 77% dos crimes violentos. Sequestro e cárcere privado são destaque em Formiga, no Centro-Oeste (12,5%).