“Abri a porta e, antes de entrar/Revi a vida inteira” e “Coisas que a gente se esquece de dizer”, versos de Márcio Borges e Ronaldo Bastos, respectivamente, serviram quase como um mantra para os que foram ontem (4/11) se despedir, no Palácio das Artes, de Lô Borges.
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“Quem sabe isso quer dizer amor” e “O trem azul”, duas das centenas de canções que Lô deixou de herança em 73 anos de vida e 53 de carreira, foram entoadas ao longo de um velório afetivo que reuniu parentes, amigos e fãs do cantor e compositor.
A derradeira despedida, no final da tarde, no Cemitério da Colina, foi restrita à família e aos mais próximos. Não mais do que 100 pessoas que ouviram, serenas, as palavras de Yé e Telo Borges, dois dos 10 irmãos de Lô.
A morte do sexto filho de Maricota e Salomão Borges no último domingo (2/11), de falência múltipla dos órgãos, após 18 dias de internação decorrente de intoxicação medicamentosa, encheu Belo Horizonte (MG) de um sentimento triste, porém bonito – algo que se espalhou por Minas Gerais e o Brasil via redes sociais.
A imagem da cantoria na noite de segunda (3/11) na esquina entre Paraisópolis e Divinópolis, em Santa Tereza, onde tudo começou, ressoou de uma forma como há muito não se via por aqui.
Quem cantava chorou
“Ele nos fez ter convicção que era possível ter nascido em Belo Horizonte, não necessariamente em Liverpool, para fazer uma música que fosse interessante aos ouvidos do Brasil e do mundo. Fui bombardeado pela música americana e pela música inglesa desde que nasci. Posso bater no peito e dizer que o Lô tem um pé de igualdade com o Paul McCartney”, afirmou Samuel Rosa, que chegou ao Palácio das Artes bastante emocionado.
Samuel e Lô foram parceiros por 25 anos – e não é exagero dizer que foi o ex-líder do Skank quem fez a ponte entre o Clube da Esquina e a geração de bandas que despontou em BH na década de 1990. Flávio Venturini acrescentou: “O Lô foi um cara que sempre teve uma veia pop e MPB. Era um artista universal dentro de uma época meio retrógrada. Tudo era muito dividido, e o Lô veio com uma música que conquistou o Brasil e o mundo”.
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Tanto Samuel quanto Flávio estiveram no grupo de músicos que ficou até o final do velório. Pouco antes das 15h, o acesso do público ao foyer foi fechado para que os mais próximos pudessem fazer as últimas homenagens. Acompanhados de apenas um violão, Toninho Horta, Wagner Tiso, Samuel, Flávio e Cláudio Venturini cantaram o Hino do Cruzeiro, time do coração de Lô. Antes, já tinham interpretado “O trem azul” e “Quem sabe isso quer dizer amor”.
Coral Lírico
As duas canções haviam sido executadas na parte da manhã pelo Coral Lírico de Minas Gerais. Houve também apresentação de música sacra pelo Coral Cantos do Cerrado, de Brasília.
As homenagens tiveram início às 9h20, quando o foyer do Palácio das Artes foi aberto para o público. As pessoas começaram a chegar aos poucos, mas logo a fila cresceu, atingindo a área externa da instituição.
Rock, jazz, música brasileira, a musicalidade de Lô não tinha limites. A presença de músicos de diferentes vertentes da produção foi mais do que uma prova disso. Maurício Tizumba o homenageou com uma apresentação de tambores de Minas.
Chico Amaral, que conhece a fundo a música de Lô e Milton Nascimento, citou Tom Jobim e a obrigatória “O trem azul”. “É única no cancioneiro brasileiro, uma música ‘debussyana’. Talvez por isso Tom (que a gravou duas vezes) tenha tido esse encanto. Lô condensou a sofisticação no formato de canção.”
O velório de Lô reuniu Rogério Flausino, do Jota Quest, Wilson Sideral e bambas das cordas como Gilvan de Oliveira, Juarez Moreira e Sérgio Santos. “A obra é o que faz com que a pessoa permaneça, e isso é lindo”, destacou esse último.
Zeca Baleiro se tornou parceiro de Lô em 2024. Depois de compor uma dezena de músicas, ele cismou que seria o maranhense, que não via há duas décadas, o letrista ideal para aquele material. Assim surgiu “Céu de giz”, último álbum de Lô, lançado em agosto passado, só com letras de Zeca – que cantou em cinco canções. O cantor e compositor, que mora em São Paulo, soube da morte de Lô no voo que o trouxe a BH anteontem, para o enterro de Rossana Decelso, sua empresária.
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No Palácio das Artes, Zeca afirmou que Lô “é de um tipo de artista que não vai mais aparecer. Ele inventou um jeito de fazer música, então a partida dele representa meio que o fim dessa linhagem”.
Toninho Horta, que já tinha homenageado Lô na cantoria de segunda-feira em Santa Tereza, disse no velório que “acredita que a vida não morre para ninguém, que a energia (dos que já se foram) é trocada de outra forma (com os que ficam).”
Primeiro parceiro de Lô, amigo da vida toda, beatlemaníaco desde garoto como ele, com quem estava fazendo a turnê “Esquina e canções”, Beto Guedes chegou ao Palácio das Artes no início da tarde. Não passou da porta do foyer e foi econômico nas palavras. “Se cheguei onde cheguei, se o 14 Bis chegou onde chegou, foi por causa do Lô. É um grande irmão que eu tive.”
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Márcio Borges, irmão mais velho e maior parceiro, está tão abalado com a morte de Lô que não conseguiu vir para o velório – ele mora em Visconde de Mauá, interior do Rio. Milton Nascimento não está sabendo do ocorrido. Augusto Nascimento, seu filho, veio a BH para a despedida e contou que seguiu instrução médica.
“Todas as vezes que tive algum diálogo difícil com meu pai, o médico dele sempre esteve presente. Por precaução, daremos a notícia junto com o médico (no dia 8/11), porque certamente é uma coisa que vai abalá-lo profundamente.”
(Ana Clara Torres*, Daniel Barbosa, Gabriela Matina, Lucas Lanna Resende e Mariana Peixoto)
*Estagiária sob supervisão da editora Silvana Arantes
