Como é o Natal e Ano Novo nas religiões de matriz africana?
Em um mundo fragmentado, Umbanda e Candomblé oferecem uma lição eterna: o divino está na dança das diferenças, no pulsar da vida coletiva
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Em um Brasil tecelado por fios de ancestralidade africana, indígena e europeia, as religiões de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda emergem como faróis de resistência cultural e espiritual. Essas tradições, nascidas do sincretismo forjado nas chamas da escravidão e da colonização, não rejeitam o calendário cristão, mas o reinterpretam através das lentes do axé – a força vital que pulsa no universo, conectando humanos, orixás e ancestrais.
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Enquanto o Natal evoca o nascimento de Jesus Cristo para os cristãos, e o Ano Novo marca renovações globais, nessas religiões, essas datas se entrelaçam com rituais profundos de renovação, gratidão e harmonia cósmica. Mergulhamos nas tradições, na visão de Jesus Cristo e na espiritualidade que iluminam esses momentos, revelando como o sagrado africano dança com o cristianismo em um ritual de resiliência e amor.
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O Natal: da Luz de Oxalá à essência do Axé
Para muitos adeptos do Candomblé, o Natal não é uma data litúrgica essencial, mas um espaço de pausa e convívio familiar, livre de rituais religiosos específicos. Essa religião, mais purista em suas raízes iorubás, nagôs e bantus, separa o sagrado africano das celebrações cristãs, mantendo "cada um no seu quadrado" – ou seja, sem misturas diretas.
No entanto, o período natalino é visto como um tempo de "axé-overload", uma sobrecarga de energia vital que inspira alegria, polidez e boa vontade. Praticantes podem erguer uma árvore de Natal para honrar memórias ancestrais, como a avó falecida, ou preparar quitutes como biscoitos e couve para prosperidade, transformando o cotidiano em um altar de afeto e cultura.
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Na Umbanda, mais sincretista, o Natal ganha contornos mais próximos do cristianismo. Fundada em 1908 por Zélio Fernandino de Moraes, essa religião brasileira mescla elementos africanos, indígenas, espíritas e católicos, permitindo que seus fiéis se vejam como cristãos em certos contextos. Aqui no Brasil, o nascimento de Jesus é celebrado com reflexões sobre caridade e amor, inspiradas na figura de um mestre espiritual elevado.
Mas o coração dessa visão pulsa na sincretização de Jesus com Oxalá, o orixá criador, senhor da paz e da luz branca. Oxalá não é Jesus, mas suas qualidades se espelham: ambos representam criação, pureza e redenção. Em alguns terreiros, Jesus é visto como uma encarnação de Oxalá, o "Cristo-Oxalá", chefe supremo da Umbanda. Essa fusão, nascida da necessidade histórica de camuflar práticas africanas sob santos católicos, reflete uma espiritualidade profunda: a capacidade de transcender dogmas, unindo o divino em formas que curam feridas coloniais.
Espiritualmente, o Natal nessas religiões convida a uma meditação sobre a luz interior. Oxalá, sincretizado com Jesus, simboliza a criação do mundo e a harmonia universal – uma lição de que o axé flui em todos, independentemente de rótulos. É um chamado para honrar ancestrais, dançar com os orixás e espalhar bondade, transformando o fim de ano em um portal de renovação pessoal.
O Ano Novo: oferendas ao mar e renovação cíclica
Se o Natal é introspectivo, o Ano Novo explode em cores e rituais vibrantes, influenciando até as celebrações seculares do Brasil. No Candomblé, a virada do ano marca um ciclo de renovação vital, guiado por consultas aos búzios – conchas que revelam orientações dos orixás. Pode ser tempo de iniciações, obrigações rituais ou imersão religiosa, preparando o espírito para novos desafios. O dia da semana de 1º de janeiro pode indicar orixás regentes, como Xangô e Oyá em uma quarta-feira, mas o foco é na ancestralidade e na energia cósmica.
Na Umbanda, as tradições se entrelaçam com o folclore nacional, especialmente no culto a Iemanjá, a rainha do mar. Desde os anos 1950, fiéis se reúnem em praias como Copacabana para oferendas: flores brancas jogadas ao mar, pulos sobre sete ondas (simbolizando as sete linhas da Umbanda) e garrafas de champanhe estouradas em homenagem à "Mãe das Águas".
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Vestir branco evoca a paz de Oxalá, enquanto o amarelo atrai a prosperidade de Oxum. Esses rituais, herdados de religiões africanas, se popularizaram, tornando o Réveillon brasileiro um espetáculo de fé coletiva.
Jesus Cristo, nessa equação, permanece como inspiração de amor universal, mas o foco espiritual é na renovação cíclica: o mar como útero cósmico, lavando o velho para dar espaço ao novo. É uma espiritualidade que ensina resiliência – assim como os escravizados africanos adaptaram suas crenças para sobreviver, hoje esses rituais celebram a vitória da vida sobre a opressão.
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A espiritualidade que une mundos
Nas religiões de matriz africana, Natal e Ano Novo transcendem datas: são portais para o axé, onde Jesus e Oxalá coexistem em um sincretismo que cura divisões. Essa espiritualidade, profunda e criativa, nos lembra que a fé é fluida como o mar de Iemanjá – capaz de abraçar contradições, honrar ancestrais e forjar futuros luminosos. Que o axé nos guie, saravá!