Na linha de frente de combate ao novo coronavírus, trabalhadores da saúde tiveram que enfrentar um árduo aprendizado sobre um inimigo desconhecido e traiçoeiro. Nessa guerra, o vírus pode ter vencido batalhas, mas o enfrentamento diário fez com que médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e toda a equipe se armassem de conhecimento para salvar vidas.
Em busca de respostas sobre esse arsenal, o Estado de Minas ouviu profissionais para que revelassem o que tiveram de aprender na prática e hoje funciona para o tratamento desses pacientes – em uma busca contínua, que está longe de terminar ou de ter conseguido todas as respostas.
Desta vez, quem fala é o infectologista Adelino de Melo Freire Junior, que trabalha no Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte. No início da pandemia ele lidou com um caso de um jovem que tinha chegado recentemente da China. "Naquele momento, fiquei super assustado. Fui me paramentar todo e conhecer o paciente", relembrou.
Apesar do paciente ter sido liberado por não ser sintomas compatíveis com a COVID-19, o hospital entrou em estado de alerta. "Aquilo acendeu um farol vermelho pra gente. Montamos nosso comitê de crise dias depois, tentando ali fazendo algumas previsões, de compra de insumos, imaginando que aquilo poderia realmente se espalhar", disse.
Durante entrevista, ele conta que a preparação precoce não foi suficiente para a onda de casos que o Brasil enfrentou. Por outro lado, com avanço da ciência, exatamente um ano depois deste atendimento, Adelino se vacinou contra a COVID-19.
Durante entrevista, ele conta que a preparação precoce não foi suficiente para a onda de casos que o Brasil enfrentou. Por outro lado, com avanço da ciência, exatamente um ano depois deste atendimento, Adelino se vacinou contra a COVID-19.
Confira a entrevista completa
Como foi ser médico infectologista naquele momento de chegada da COVID-19?
Foi uma situação bem... num primeiro momento, todo mundo bem apreensivo. Tenho uma história bem interessante: no dia 23 de janeiro de 2020, eu estava chegando ao Hospital Felício Rocho e uma das enfermeiras me ligou falando que havia um jovem no pronto-socorro com quadro de febre, dor no corpo e tinha chegado recentemente de uma cidade na China, a 'tal cidade de Wuhan', que parecia que estava tendo algum problema.
Naquele momento, fiquei super assustado. Fui me paramentar todo e conhecer o paciente. (O paciente) era jovem mesmo, de BH, fazia estágio em Wuhan e tinha chegado há cinco dias. Ele estava com gastroenterite, não tinha nenhum sintoma respiratório.
Fiz contato com a Secretaria de Saúde, Vigilância Epidemiológica, informei o que estava acontecendo, aguardei por orientações, naquele momento não eram sintomas compatíveis com COVID-19, com o que a gente conhecia naquela época. Esse paciente foi liberado pra casa, não tinha nenhum sintoma de gravidade, dois dias depois ele estava absolutamente curado.
Fiz contato com a Secretaria de Saúde, Vigilância Epidemiológica, informei o que estava acontecendo, aguardei por orientações, naquele momento não eram sintomas compatíveis com COVID-19, com o que a gente conhecia naquela época. Esse paciente foi liberado pra casa, não tinha nenhum sintoma de gravidade, dois dias depois ele estava absolutamente curado.
Aquilo acendeu um farol vermelho pra gente
Adelino de Melo Freire Junior, infectologista
Montamos nosso comitê de crise dias depois, tentando ali fazendo algumas previsões, de compra de insumos, imaginando que aquilo poderia realmente se espalhar. Em meados de março, quando a corrida por insumos ocorreu de verdade, percebemos que, mesmo tendo feito previsão, comprado coisas com antecedência, a gente tinha insumo pra três dias de atenção de COVID-19. Muito além do que a gente havia previsto que foi a realidade do que aconteceu.
Tem sido ainda uma experiência de muito crescimento, aprendizado, trabalho em equipe, de certa forma de humildade, a gente tem que rever protocolos, orientações continuamente.
O que a ciência evoluiu nesse tempo, de entendimento de como as coisas funcionam, é uma enormidade
Adelino de Melo Freire Junior, infectologista
Depois de todo esse tempo de pandemia, o que você aprendeu, na prática, sobre contaminação, transmissão, eficiência de períodos de restrições de mobilidade mais rigorosas e outros aspectos?
Uma série de conhecimentos novos que foram sendo construídos. Eu falei em público sobre a não-necessidade de uso de máscara por pessoas sem sintomas e isso caiu logo no início e prontamente a gente tem que mudar o discurso, ter essa humildade de adequar o aprendizado.
Havia expectativa muito grande para começar os atendimentos, qual a melhor paramentação. A gente não conseguia capote simples. A gente foi tentando se adequar e fomos nos organizando, com o tempo foi ficando mais claro que o padrão de transmissão é realmente respiratório.
A gente começou fazer teste de PCR para dar diagnóstico da doença e para tirar as pessoas da precaução porque os pacientes com testes PCR positivo poderiam transmitir a doença. Com o tempo percebemos que o PCR positivo permanecia por um tempo e vimos que não era sinal de que a pessoa era transmissora do vírus. Essa história deixou de acontecer. Não precisa de repetir o exame para tirar a pessoa de isolamento.
Os grupos de risco também mudaram. Tivemos no início mais pessoas idosas e com comorbidades sendo o alvo, mas agora uma pessoa saudável e jovem também pode ter riscos altos. Como isso foi se transformando?
Algumas coisas mudaram, mas não foram muitas. As grávidas, por exemplo, por um tempo foram encaradas como um perfil que não tinha maior risco de adoecer com gravidade e com a evolução do aprendizado da doença, as grávidas foram incluídas. Então hoje elas são priorizadas porque elas tem de fato maior risco de adoecer com gravidade.
Pessoas que fazem cirurgias grandes, às vezes sem saber que estão de COVID-19, elas tem uma mortalidade maior que população que não tem COVID-19 submetida a mesma cirurgia. Então, será que faz sentido a gente testar essas pessoas antes de grandes cirurgias? Provavelmente esse é o melhor caminho. Esse tipo de conhecimento tem sido construído.
Como você avalia as medidas de autoridades na lida da pandemia? No âmbito federal, estadual e municipal, a forma como os governantes trataram a pandemia foi eficiente, houve falhas?
Do âmbito federal a gente percebe que as coisas poderiam ter sido melhores no sentido de um discurso unificado, construção de laços, colaboração em nível nacional fariam muita diferença. O que a gente viu foi uma série de discursos truncados. E não é atoa que estamos em vias de ser o país com mais mortes no mundo. Acho que isso é reflexo de uma política federal que foi complicada e não foi muito bem sucedida.
Do ponto de vista estadual e municipal acredito que tivemos muito mais acertos do que erros. Com rigor, transparência, estabelecer rede de diagnóstico bastante relevante, viabilizar qualquer apoio no estado não é simples. Em BH também acho que a gente foi bastante rigoroso em boa parte do tempo. A gente tem uma rede de saúde muito consolidada.
As restrições de mobilidade são realmente eficientes para evitar a transmissão da COVID-19?
Do ponto de vista estadual e municipal acredito que tivemos muito mais acertos do que erros. Com rigor, transparência, estabelecer rede de diagnóstico bastante relevante, viabilizar qualquer apoio no estado não é simples. Em BH também acho que a gente foi bastante rigoroso em boa parte do tempo. A gente tem uma rede de saúde muito consolidada.
As restrições de mobilidade são realmente eficientes para evitar a transmissão da COVID-19?
A percepção é que é meio óbvia que quando você tem os feriados, situações em que aumenta o tipo de encontro, semanas que seguem começam a ter aumento do número de casos, internações, depois CTI e posteriormente o número de óbitos. Não acho que seja mera coincidência, acho que tem uma relação fundamental nisso aí.
Quais perguntas ainda permanecem sem resposta sobre a infecção pelo coronavírus?
A pergunta da vez é de fato a origem do vírus. Se a transmissão começou de origem animal ou se houve realmente vazamento em laboratório de pesquisa. Fazendo coro com todo mundo, até com a OMS nesse momento, não há evidências que concluam nem pra um lado nem para outro. Não acredito em teorias da conspiração, de que isso foi deliberadamente colocado a solta, não é por aí, mas a possibilidade de um vazamento tem que ser investigada a fundo.
A pergunta da vez é de fato a origem do vírus
Adelino de Melo Freire Junior, infectologista
A gente ainda precisa de resposta em relação ao tratamento eficaz, a gente tem uma série de tratamentos possíveis sendo aprovados fora do Brasil, basicamente os anticorpos monoclonais, são muito caros, ainda são pouco acessíveis, o resultado ainda não é o que mude a história da doença. É uma chance de ajuda, mas não é um remédio milagroso.
A minha pergunta é: até quando vamos precisar viver desse jeito que estamos vivendo? Com uso de máscara e distanciamento? Essa começa a ser respondida agora de forma mais recente. A gente começou agora a ter publicações mostrando redução de transmissão relevante em comunidades com alta taxa de vacinação.
Quais lições que aprendemos que vamos levar para o pós-pandemia?
Acho que a gente aprendeu uma série de coisas. Uma das grandes lições é o valor desse novo tipo, dessa nova plataforma de vacinas, que é a RNA, um divisor de águas para a ciência. Pode fazer que a gente consiga novas vacinas, atualizações.
Eu fui vacinado exatamente um ano depois do atendimento do menino suspeito. Minha primeira dose foi 365 dias depois. Isso foi um grande avanço. A gente imaginar uma doença nova a gente consiga uma vacina em um ano sendo aplicada no mundo inteiro, sem dúvida, um grande avanço da ciência.
PCR uma técnica avançada de diagnóstico antes era tida como caro pouco acessível e hoje é padrão ouro, todo mundo faz, e com certeza isso vai ser usado para outras doenças cada vez mais, como meningite, pneumonia, existe um campo enorme de utilização dessas técnicas.
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