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Estado de Minas ENTREVISTA

'A beleza da ciência': infectologista analisa aprendizados da COVID-19

Série de entrevistas revela aprendizados dos profissionais da saúde ao longo da pandemia do novo coronavírus


08/07/2021 11:00 - atualizado 08/07/2021 10:46


Na linha de frente de combate ao novo coronavírus, trabalhadores da saúde tiveram que enfrentar um árduo aprendizado sobre um inimigo desconhecido e traiçoeiro. Nessa guerra, o vírus pode ter vencido batalhas, mas o enfrentamento diário fez com que médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e toda a equipe se armassem de conhecimento para salvar vidas.


Em busca de respostas sobre esse arsenal, o Estado de Minas ouviu profissionais para que revelassem o que tiveram de aprender na prática e hoje funciona para o tratamento desses pacientes – em uma busca contínua, que está longe de terminar ou de ter conseguido todas as respostas.

Desta vez, quem fala é a infectologista e epidemiologista Luana Araújo. Ela se formou como médica especialista em doenças infecciosas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela tem mestrado em Saúde Pública pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, e é a primeira brasileira a receber a prestigiosa Bolsa Sommer.

“Essa é a beleza da ciência, a gente vai entendendo e modificando essas recomendações de acordo com aquilo que vai aprendendo”, refletiu a infectologista sobre as mudanças nas orientações comparadas no início da pandemia e como foram mudando na medida que a ciência ia descobrindo mais informações.


Confira a entrevista completa


O vírus que surgiu a princípio na China foi suficiente para acumular conhecimento prévio antes da chegada no Brasil?
O surgimento desse coronavírus, em específico, não foi uma coisa completamente inesperada. A gente já vinha, ao longo da história, entendendo que esse tipo de vírus tem a capacidade de fazer essas mutações e de ir se adaptando a espécies diferentes. A gente já tinha passado por crises menores anteriores à chegada desse vírus e alguns países conseguiram, por conta desse histórico, ir se adaptando a eventualidade de um desastre global como aconteceu agora.
 
Então quando se pensa nesse coronavírus, a gente não pode pensar no aparecimento ou surgimento da primeira identificação dele na China para cá. Mas deveria estar pensando nos cuidados anteriores que já poderiam ter sido tomados e que foram tomados por outros países até que se chegasse esse momento. Então sim, a gente teve muito tempo para pensar e tentar se adaptar ao que estava acontecendo e não fizemos isso com a maior eficiência.

O conhecimento prévio de outras epidemias ajudaram no começo desta que estamos agora? 
Sim, a Coreia do Sul é um grande exemplo nesse sentido. No início dos anos 2000, eles enfrentaram uma situação semelhante e conseguiram, a partir desse enfrentamento, planejar melhor como eles agiriam no caso dessa repetição. Então eles conseguiram colocar em funcionamento, estruturas e estratégias de uma forma extremamente eficiente e que pouparam o país de desfechos bastante delicados, o que não aconteceu em vários locais do mundo, assim como não aconteceu aqui. 

E hoje que já sabemos mais sobre esse vírus, de que maneira ele se diferencia dos outros? 
Não é uma questão de diferenciação, mas ele é um vírus altamente capaz de se adaptar às dificuldades e contornar as dificuldades que ele teria no seu próprio processo evolutivo. Então como um vírus RNA, como todos os vírus RNA têm isso em comum, ele é capaz de sofrer mutações e de acumular mutações de uma forma muito eficiente.
 
Então esse acúmulo de mutações, permite que ele vai se adaptando a organismos e a cenários diferentes, a pressões seletivas diferentes, sem que ele perca essa vantagem evolutiva que ele tem. Então ele vai se tornando com rapidez mais transmissível, ainda se torna mais agressivo e a gente, infelizmente, não parece estar muito perto de uma estabilidade desse vírus.
 
Quer dizer, ele chega num ponto de equilíbrio entre a transmissibilidade e a agressividade dele. Então nesse sentido, ele é extremamente competente e difícil de lidar para a gente, enquanto profissional de saúde e enquanto saúde pública. E é por isso que ele se diferencia de muitos outros.

Entrevista com a infectologista e epidemiologista Luana Araújo(foto: Bruno Haddad/Divulgação)
Entrevista com a infectologista e epidemiologista Luana Araújo (foto: Bruno Haddad/Divulgação)


A respeito da contaminação, no início era recomendado que apenas a pessoa com sintomas usasse máscara. O que mudou?
É preciso olhar essa recomendação contextualizada, numa questão de contexto da época. O que a gente sabia era que a gente não tinha recursos e insumos suficientes para proteger todo mundo. Então, precisava-se à época, gerir esses recursos de forma que chegasse a quem precisava mais. E quem precisava mais naquele momento eram aqueles, principalmente trabalhadores de saúde, que se expunham constantemente ao vírus, cuja patogenicidade ainda estava sendo entendida. Então todos os recursos que tínhamos na época, as máscaras de maior proteção, a N95, deveriam ser alocadas a esses profissionais. Outros profissionais que compartilhavam desse ambiente, mas talvez não na linha de frente, também precisavam usar as outras máscaras disponíveis.
 
Aí quem estava claramente sintomático, porque obviamente quem é sintomático é mais identificável em termos de transmissão, essas pessoas deveriam se proteger com a máscara. As outras, a gente não tinha condição de entender como era essa transmissibilidade e a gente não tinha também insumo para proteger essas pessoas. Aos poucos a gente foi desenvolvendo o nosso parque industrial para produzir esse tipo de necessidade e também a gente foi compreendendo melhor o mecanismo de transmissão da doença, até que a gente compreendeu, ao final das contas, que o assintomático também transmitia bastante, que era preciso que todo mundo usasse máscara, que era preciso que as outras medidas de proteção também fossem colocadas em consonância, tanto a higiene de mãos como o distanciamento, quanto a ventilação natural, que foi uma coisa que a gente foi aprendendo também ao longo do tempo.
 

''Essa é a beleza da ciência, a gente vai entendendo e modificando essas recomendações de acordo com aquilo que vai aprendendo. Mas, existe um norte que é o do bom senso que deve sempre prevalecer''

Luana Araújo, médica infectologista e epidemiologista



Quais outras informações sobre a contaminação e transmissão do vírus foram sendo estudadas e compreendidas de uma maneira melhor ao longo deste período de pandemia? 
A gente foi entendendo melhor que pacientes assintomáticos transmitiam o vírus, que a via da contaminação de superfícies, embora existente, não é a mais importante. A mais importante é a respiratória. A gente também entendeu que existe um grau de transmissão desse vírus, que não é só por gotícula, mas também por aerossol, então a ventilação natural é uma ferramenta extremamente útil para lidar com isso porque o ar parado é um ar que contém partículas em suspensão e elas podem conter o vírus.
 
A gente foi aprendendo esse tipo de coisa que tem um reflexo direto no dia a dia das pessoas. Hoje, a gente fala diferente do que era no começo. Todo mundo use máscara, e a medida mais importante que é todo mundo higienize as mãos, ventilação natural é algo importantíssimo, associada ao distanciamento e aquela via de superfícies de que lava tudo, higieniza tudo, passa desinfetante, essa não tem a importância que se creditava no começo e a gente sabe que a higiene de mãos é suficiente para compensar esse tipo de via.


No início tivemos as restrições mais rigorosas de mobilidade para evitar disseminação do vírus. Qual protocolo deveria ter sido tomado desde o começo para evitar todas essas mortes que temos hoje?
A gente deveria ter parâmetros claros que tornassem essas restrições, um crescendo, um processo em fases e a gente não fez isso. Então o que a gente experienciou nesse período foi ou um fechamento muito restrito ou uma liberação completamente desconexa. Então, como a gente oscilou muito nessa resposta, a gente leva a população brasileira a uma fadiga muito grande e a resultados não exatamente consistentes e nem de longa duração às custas de um sacrifício socioeconômico muito alto.
 
Uma das estratégias que os países com melhores respostas utilizaram foi essa parametrização clara e estratégias específicas para cada uma dessas fases, para que as pessoas entendessem exatamente onde estavam e como estava acontecendo, qual era o resultado daquele sacrifício e, por tanto, passassem a aderir essas medidas de uma forma mais lúcida e consistente.


Pesquisadoras brasileiras identificaram a sequência completa do genoma viral da Covid em 48 horas. O que isso impactou nos conhecimentos sobre a doença, de que forma esta informação foi usada para combater o vírus?
O sequenciamento genético do vírus é importantíssimo para todas as ferramentas que temos, tanto diagnósticas quanto profiláticas ou eventualmente terapêuticas para combater a doença. Então o sequenciamento é vital para que a gente tenha os testes diagnósticos que temos hoje, como o PCR de antígeno, é fundamental para que a gente consiga fazer as vacinas. Por exemplo, as vacinas de MRNA são vacinas que tem sua raiz no sequenciamento genético do vírus, se a gente não entendesse tudo que tá escrito dentro do material genético do vírus, a gente não conseguiria fazer uma vacina que fala exatamente desse 'texto', digamos assim, e que ensina nosso corpo a se defender.
 
Também é fundamental na busca de fármacos que sejam específicos para o vírus, que tenham alguma efetividade e que tenham poucos efeitos adversos e muitos deles estão em desenvolvimento e testagem. Então o sequenciamento não aconteceu só no começo, acontece o tempo todo, principalmente em função da emergência de variantes que a gente vem presenciando. Então essa documentação das variantes continuam sendo importantíssimas porque novas vacinas precisarão ser desenvolvidas que consigam ser eficazes contra essas apresentações diferentes do vírus. O sequenciamento foi fundamental lá e continua sendo fundamental no nosso combate.

As estratégias de onda vermelha, onda roxa, etc, foram baseadas em outros governos? Elas deram certo aqui no Brasil?
Essa parametrização feita aqui foi adaptada para o nosso contexto, mas ainda sim com falhas importantes, principalmente da comunicação às pessoas de como estava acontecendo, por que e como as pessoas poderiam aderir a isso de uma forma melhor. Acima de toda ciência que a gente utiliza para embasar essas estratégias, está a compreensão da população. Se a população não compreender o que está acontecendo, nós não temos a adesão dessas pessoas.
 

''Saúde pública não existe sem o povo, não existe gestor que aponte alguma coisa sem que a população seja parceira nisso''

Luana Araújo, médica infectologista e epidemiologista


 
Então, por mais que existam essas tentativas, acho que nós falhamos em algumas circunstâncias que não trouxeram o melhor dos resultados. Sim, essas estratégias feitas de formas mais abrangentes, funcionaram muito bem em outros países.

Quais perguntas ainda permanecem sem resposta sobre a infecção pelo coronavírus?
Muitas perguntas ainda permanecem sem resposta. Quais são exatamente os fatores de risco para uma doença mais grave? Existe forma da gente antecipar isso e conseguir apontar para as pessoas o melhor caminho de cuidado? Na vacinação, exatamente o que vamos conseguir de resultado diante de todo esforço que estamos vendo? O mix de vacina que a gente tem é suficiente para atender as necessidades globais? O ritmo que a gente está fazendo vai proteger todos? Porque a gente já sabe que não é só uma questão de eficácia de vacinação, é uma questão de velocidade de ação e que se em algum lugar do mundo permanece não vacinado, esse lugar se torna um santuário para o vírus conseguir se multiplicar e produzir novas variantes que podem colocar o resto do mundo inteiro a perder do novo.
 
Não é só o nosso mix de vacinas, estamos no ritmo adequado para isso? Quais são as consequências do COVID-19 a longo prazo? Sabemos que são consequências individuais em vários sistemas, consequências cardiovasculares, cerebrais, temos problemas na emergência de doenças como diabetes. A gente já sabe que o vírus deflagra muita coisa no organismo das pessoas, então qual é o tamanho disso e qual o impacto vai ter no sistema de saúde? A ideia de deixar correr solta um vírus sem a estratégia adequada da sua contenção vai nos levar a que ponto, que momento em termos de saúde pública?
 
E isso tudo dentro da área de saúde, mas existem as outras áreas que vão estar impactadas por isso, qual é o impacto da pandemia no nosso desenvolvimento futuro do nosso país? Qual o impacto que vai ter na nossa educação ou no nosso desenvolvimento socioeconômico? Então pode parecer que é só um vírus, mas tudo que está ligado a ele, desde a doença até a nossa capacidade como sociedade de lidar com ele, até os efeitos na saúde individual e no reflexo coletivo e como isso vai se portar na nossa história como sociedade ainda há muito a descobrir. 

Quais lições que aprendemos que vamos levar para o pós-pandemia?
A gente deveria aprender que o cuidado individual é igual ao cuidado coletivo. Se eu cuido de mim, isso significa que eu também estou cuidando das outras pessoas. Uma outra lição individual é de que eu não posso botar uma outra pessoa sob risco sabendo que eu tenho uma doença infecciosa, então manter a higiene de mãos, manter o uso da máscara se sintomático de alguma outra doença, isso também é muito importante.
 
Uma terceira lição é de que a ciência faz parte do dia a dia das pessoas, não é algo distante, ela dita o que você faz na sua rotina. Então, saber mais sobre isso, se informar melhor, procurar fontes corretas para este tipo de informação também deveria ser uma das lições que a gente tira dessa história toda.
 
Em termos globais, é entender que estamos todos interligados, o que acontece num país do outro lado do mundo pode impactar sua vida por um longo período a partir de um momento pouco depois desse início. Então o cuidado de todo mundo, a melhor interação com a natureza, uma interação mais positiva, menos prejudicial, respeitando a saúde da natureza, dos animais e a nossa é fundamental para que a gente sobreviva enquanto espécie por um período um pouco maior.


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