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Estado de Minas

Em 10 anos de vigência, Lei Maria da Penha reduziu em 10% assassinatos de mulheres

Dado é comemorado, mas ainda é preciso mudar o comportamento masculino, dizem especialistas


postado em 07/08/2016 06:00 / atualizado em 07/08/2016 07:26

A empregada doméstica Simone sofreu durante 25 anos até denunciar os maus-tratos cometidos pelo ex-marido(foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
A empregada doméstica Simone sofreu durante 25 anos até denunciar os maus-tratos cometidos pelo ex-marido (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)

Completados 10 anos de vigência da Lei Maria da Penha no Brasil, aprovada em 7 de agosto de 2006, ainda é preciso que venha a público a desembargadora mineira Kárin Emmerich alertar que “mulher alguma gosta de apanhar. Ninguém gosta de apanhar”. Há cerca de um mês à frente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv), a desembargadora reconhece os avanços proporcionados pela legislação na última década, que contribuiu com a diminuição em cerca de 10% na taxa de homicídios contra as mulheres dentro das residências, segundo levantamento divulgado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em março. Entretanto, um dos maiores problemas, abordados na própria lei, é a necessidade de reeducar o agressor de mulheres, justamente para evitar que a violência se reproduza em outros espaços e relacionamentos.

No Instituto Albam, em Belo Horizonte, em torno de 2,5 mil agressores de mulheres já enfrentaram a maratona de 16 reuniões obrigatórias de duas horas de reciclagem do comportamento pessoal e familiar, por ordem judicial, como alternativa à pena de prisão. Nos 11 anos de trabalho do instituto, anterior à Lei Maria da Penha, o índice de reincidência desses homens é inferior a 1%. “Tive oportunidade de assistir a uma dessas sessões. Os homens chegam muito revoltados e levam até 10 sessões para se conscientizar de ter cometido uma agressão. Eles simplesmente não entendem o que estão fazendo ali. Sempre acharam que isso fosse normal”, espanta-se a desembargadora, que se sentou na cadeira de plástico, ouvindo os desabafos dos agressores, calada.

A equipe de reportagem do Estado de Minas acompanhou uma das reuniões do Albam, na semana passada, com a participação de 17 autores de violência. Na hora de fazer a foto do grupo, com o trato de que as identidades seriam preservadas, cinco deles se retiraram da sala. Saíram para tomar um café. “Não posso ser reconhecido como agressor de mulher no meu serviço. Vou ser mandado embora.” “Sou músico e tenho um nome na praça. Quem vai querer ouvir meu trabalho se ficar sabendo disso aqui?” “Não estou aqui por vontade própria e ninguém sabe o meu lado da história. Vão me execrar na corporação”, justifica o policial, de ombros largos e músculos treinados para a guerra das ruas. Interessante notar como a Lei Maria da Penha e o grupo desempenham essa primeira função de controle social, uma vez que os homens se envergonham de ser vistos como autores de violência.

Passada a tensão do momento de tirar a fotografia, onde não vão aparecer os rostos dos participantes, a valentia dos acusados de violência doméstica volta a se manifestar, com toda a força, entre as quatro paredes do instituto. “Não estou querendo bater na Lei Maria da Penha, mas por que defende só um lado? E o lado do homem?” “Isso aqui é demagogia. Sou pai de família e estou há três meses sem ver meus filhos. A mulher simulou a tentativa de agressão.” “Antes da Lei Maria da Penha, as mulheres eram mais submissas e não existia essa coisa de divórcio, de separação.” “Ela foi influenciada pela vizinha e pela irmã que se separou. Depois, me procurou para reatar.” Tais atitudes indicam como é difícil para esses homens se perceberem como autores de violências num momento inicial, e um dos objetivos do grupo é justamente induzir esse movimento: que consigam se colocar no lugar da mulher e compreender a dor causada por eles.

JUSTIÇA Diante das opiniões dos autores de agressão contra mulheres, a desembargadora Kárin Emmerich avalia que há muito caminho a percorrer para a mudança de mentalidade, dos valores e da vontade política do reconhecimento dos direitos das mulheres na sociedade e até entre os operadores do direito. “Ainda vejo decisões de cunho machista, independentemente do sexo do julgador e, embora isso venha se reduzindo, ainda se questiona se compete ou não à Justiça interferir na privacidade da família, o que retrata a prevalência da cultura machista e patriarcal.” Em outras palavras, a desembargadora dá o recado, novamente, de que a Justiça pode e deve “meter a colher em briga de marido e mulher”, desfazendo mais um ditado popular.

A desembargadora pretende atuar em outras frentes a partir da Lei Maria da Penha em Minas, estimulando a reeducação também das mulheres. “Costumam dizer que a mulher gosta de apanhar, quando ela não toma providências. Mas vários fatores levam essa mulher a permanecer com o agressor, mesmo sofrendo a violência física, seja por questão financeira, seja para preservar o casamento, seja em função dos filhos ou pela própria incapacidade emocional de sair da relação. Não podemos julgar os casos com tanta facilidade e rapidez. Muitas vezes, a mulher nem quer se separar, mas apenas quebrar o ciclo da violência doméstica”, avalia.

A doméstica Simone (nome fictício), de 47 anos, moradora de um bairro da região Sudeste de Montes Claros, viveu na pele a dificuldade de lidar com a violência doméstica. Durante 25 anos, ela sofreu calada os maus-tratos do marido, que se tornava violento sempre que bebia. Seu maior medo era não conseguir manter os filhos sozinha. “Mas chegou um ponto em que não aguentei mais”, conta a mulher, que foi encorajada a denunciar o ex-marido pela filha mais velha, de 23 anos, com quem mora atualmente.

Uma medida protetiva foi determinada e o ex-marido agressor tem que manter uma distância de 300 metros de Simone. “Acho que toda mulher agredida tem que tomar coragem e denunciar as agressões. A gente não pode virar saco de pancada e ficar esperando, sem fazer nada”, declara. (Colaborou Luiz Ribeiro)

Fórum

A necessidade de reeducar o homem que se envolveu em situação de violência doméstica será um dos temas do Fórum Nacional da Violência Doméstica, previsto para 9 a 12 de novembro em Belo Horizonte. É o que antecipou a juíza Madgéli Frantz Machado, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre (RS), que passou a semana na capital discutindo os termos do fórum, que fará um balanço dos 10 anos da Lei Maria da Penha.

 

Madgéli Frantz Machado - Juíza, presidente do Fórum Nacional da Violência Doméstica (Fonad)


1) Temos resultados positivos dos 10 anos da Lei Maria da Penha?
Foram muitos os avanços construídos, a começar pela mudança de olhar sobre a questão de gênero, que antes da lei era algo quase que invisível em nossos comportamentos. A partir daí, foram sendo construídas políticas públicas, como a criação de juizados e varas especializadas para o processo e julgamento de casos de violência doméstica contra a mulher, delegacias especializadas, casas-abrigo e parcerias para a construção da autonomia financeira da mulher, entre tantas outras. E ainda conseguimos avançar em relação ao reconhecimento da necessidade de reeducação e de tratamento do homem que se envolveu em situação de violência doméstica.
No início da vigência da Lei Maria da Penha, esse tema era considerado um tabu, muito embora a própria norma traga essa previsão. E justamente porque, para que se consiga quebrar o ciclo da violência e evitar que ela se reproduza, mesmo em outros espaços e relacionamentos, temos que tratar todos os envolvidos na situação de violência, indistintamente, incluindo a mulher, o homem e os filhos.

2) O que ainda é necessário ajustar na Lei Maria da Penha?
É necessário que seja dada prioridade para políticas públicas que existem de forma insatisfatória, como a criação de casas-abrigo/passagem, a instalação de mais juizados e varas especializadas e de mais delegacias de polícia especializadas. Neste caso, imprescindível que sejam disponibilizados espaços adequados, implementado o atendimento 24 horas e em fins de semana e feriados, o que é uma raridade no nosso país, infelizmente. Inclusive, porque a delegacia ainda é a principal porta de entrada dessas mulheres, que, muitas vezes, lá comparecem imediatamente após ser violadas em seus direitos humanos. Ou seja, em situação de total vulnerabilidade. E, se o acolhimento inicial falhar, nós vamos perder essa mulher, ou seja, ela não vai acreditar que a lei é capaz de protegê-la.

3) É possível evitar que as mortes de mulheres continuem ocorrendo?
Temos que investir em uma comunicação rápida da polícia com o Poder Judiciário. Em algumas comarcas já existe o sistema das medidas protetivas eletrônicas. Assim que registradas, são remetidas eletronicamente ao Judiciário. Temos que avançar nisso, utilizar ferramentas como o e-mail e até mesmo o WhatsApp, por que não? É também muito importante a criação de mecanismos para fiscalização das medidas protetivas, pois somente um papel não protege ninguém. Já temos as Patrulhas Maria da Penha. Em Porto Alegre, temos outra ferramenta interessante que é o Aplicativo PLP 2.0 para celular androide, que possibilita contato imediato da vítima com a Polícia Militar, por meio do 190, sendo acionada a guarnição mais próxima. A vítima é localizada pelo GPS, e também há gravação de voz e de imagens do local onde ela se encontra, servindo como prova do fato para o processo. É uma ferramenta gratuita, dependendo apenas da articulação com a Secretaria de Segurança de cada estado. Esse aplicativo foi desenvolvido pela ONG Themis e pelo Geledés, sendo vencedor de prêmio do Google. Está em fase-piloto em Porto Alegre.


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