Mariana: indenização de rompimento pode se basear em 'atingido modelo'
Devido à quantidade de atingidos serem centenas de milhares, casos de danos semelhantes poderão orientar valores de indenização. BHP quer tentar recorrer
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Atingidos com perdas similares poderão servir de base para orientar patamares equivalentes de indenizações para grupos de vítimas do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), após a Justiça inglesa determinar, nesta sexta-feira (14/11), a responsabilização da mineradora BHP pelo maior desastre sócioambiental do Brasil.
A declaração foi dada em coletiva de imprensa por vídeo conferência pela advogada Caroline Narvaez, uma das sócias do escritório internacional Pogust Goodhead, que representa os atingidos na ação movida contra a mineradora inglesa e australiana BHP.
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Ao lado da brasileira Vale, a BHP é controladora da Samarco, mineradora que operava a barragem rompida em Minas Gerais, em 5 de novembro de 2015. A BHP informou que vai tentar recorrer da decisão, que pode gerar indenização de 36 bilhões de libras (R$ 250 bilhões).
"Isso é bem comum nesse tipo de ação no Reino Unido (estipular o valor das indenizações), por meio de casos modelos. Então, como a Justiça não teria tempo para analisar a documentação relativa a todos os 600 mil clientes ou as perdas relativas a todos os 600 mil clientes, para que seja justa e abarque todas as perdas, você usa casos modelos", afirma a advogada.
"Você usa algumas pessoas que são representativas de um universo grande. Um pescador, de uma região específica que sofreu perdas associadas com a pesca, falta de acesso à água, perda de laços da comunidade e você vai usá-lo como um caso modelo para então aplicar o valor de indenização para todos os outros que estiverem na mesma categoria. Mas como uma base", exemplifica Narvaez.
Estão inscritos na ação movida pelo escritório na Inglaterra 586.906 indivíduos, 1.433 empresas, 31 municípios, sete concessionárias de serviços públicos e 23.750 membros de comunidades indígenas e quilombolas.
Em 21 de setembro de 2018 a reportagem do Estado de Minas noticiou com exclusividade que o escritório internacional iria processar a BHP na Inglaterra.
Há ainda dúvidas quanto aos municípios atingidos, que foram permitidos de ingressar com ações na Inglaterra depois da decisão da corte, e também quanto aos clientes que aceitaram acordos extrajudiciais no Brasil, como o acordo final de reparação da Samarco. A BHP estima essa última categoria em cerca de 240 mil clientes individuais.
Os advogados internacionais não endossaram esse quantitativo, mas concordam que há pessoas que renunciaram à ação na Inglaterra. "Nós vamos continuar colocando toda a pressão em cima da BHP para fazer o que é certo e indenizar os nossos clientes ao máximo dentro da lei. E esse então vai ser o nosso foco a partir daqui", declarou a CEO do escritório, Alicia Alina.
A Barragem do Fundão se rompeu há 10 anos, em 5 de novembro de 2015, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, deixando 19 mortos e mais de dois milhões de atingidos na Bacia Hidrográfica do Rio Doce, entre Minas Gerais e o litoral do Espírito Santo.
Cabe ainda recurso da BHP da decisão?
Sobre o recurso que a BHP pretende, o advogado Tom Ainsworth destaca que na Justiça do Reino Unido não se trata de um instrumento garantido e automático, como no Brasil.
"A BHP inclusive já disse aos mercados que vão recorrer da decisão. Mas os recursos na Inglaterra e no País de Gales não são um direito automático. No Brasil, se você recebe uma decisão desfavorável, tem direito a recorrer, mas aqui (no Reino Unido) tem de pedir uma permissão para essa apelação e, mesmo caso consigam, podem ter permissão para apenas alguns aspectos e não a decisão inteira", afirma Ainsworth.
Na segunda parte do julgamento é que ocorrerá a quantificação dos valores a serem indenizados. Está marcada para ser iniciada em outubro de 2026. Contudo, a CEO do escritório encorajou a multinacional a buscar um acordo, evitando citar valores.
Sobre as questões de soberania levantadas pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) e que ensejaram a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, de que decisões estrangeiras só são válidas no Brasil se homologadas por autoridades locais, o consultor do escritório, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, afirma não atrapalhar em nada o andamento.
"Que não venham com a história de que a Justiça inglesa não pode condenar uma empresa inglesa a pagar danos que fizeram no Brasil, porque isso é uma ofensa à soberania brasileira. Ofenderam a soberania quando levaram os lucros e fizeram o que fizeram. Nós temos nesse momento a satisfação de ver a Justiça, os direitos humanos e o meio ambiente encontrando uma sentença que é um exemplo, um paradigma para a história", considera Cardozo.
Alívio entre os atingidos
Entre os atingidos e envolvidos que participaram da entrevista coletiva o sentimento era de um certo alívio. Como demonstrou, emocionada, Gelvana Rodrigues, de 38 anos, mãe do menino Thiago, morto pela onda de rejeito aos 7 anos.
"Meu filho agora vai poder descansar em paz, porque a justiça vai ser feita. Hoje, para mim, o sentimento é de gratidão. Gratidão primeiramente a Deus, porque eu nunca perdi a fé. Essa foi a noite mais longa desses 10 anos. A justiça prevaleceu e o mais importante é isso para gente", desabafou.
A advogada e atingida Mônica Santos, de 40 anos, integrante do coletivo Loucos por Bento, também destacou o sentimento de justiça.
Há 10 anos estamos buscando pela tão sonhada justiça, oito anos de ação inglesa. Que esse marco que a gente conquistou hoje sirva para a nossa Justiça brasileira aprender, porque ela não fez nada nesses 10 anos, e que sirva também para as pessoas que faleceram, enquanto a Justiça brasileira inocentou os réus e as empresas (no processo criminal).
O deputado Duarte Júnior (Republicanos) - prefeito de Mariana na época do rompimento e que ingressou na ação da Inglaterra - e o seu irmão, o prefeito de Mariana Juliano Duarte (PSB), também demonstraram alívio pela conquista.
"Mariana foi uma das cidades mais atingidas, além de uma grande queda na sua arrecadação. Mariana teve desemprego, muitas empresas quebraram, literalmente, fecharam as portas. As pessoas que perderam a vida não têm preço", disse Juliano Duarte.
O prefeito criticou o processo de repactuação no Brasil do qual Mariana e outros 22 municípios não foram signatários. "Os municípios não foram ouvidos, as empresas não foram ouvidas, os atingidos não foram ouvidos e a maior parcela ficou com o Estado e com a União. As pessoas vivem nas cidades, nas cidades que estão os problemas. Então, 23 prefeituras não assinaram. Eu queria parabenizar os prefeitos. Estamos unidos nessa causa e nós vamos até o fim", disse.
"São 10 anos e hoje há um reconhecimento de responsabilidades pelo menos da BHP. É algo que parece tão óbvio. De quem é a culpa do rompimento e estávamos discutindo isso ainda. Importante reconhecer e parabenizar a luta dos atingidos e que o (prefeito) Juliano teve muito peito, muita coragem. Falar agora depois da decisão judicial é simples, agora, antes, ninguém tinha certeza do que poderia acontecer", destacou Duarte Júnior.
A BHP informa que pretende recorrer da decisão da corte britânica e reforça o compromisso da BHP Brasil com o processo de reparação no Brasil e com a implementação do Novo Acordo do Rio Doce.
"A BHP Brasil, junto à Vale e à Samarco, continua empenhada na implementação do acordo firmado em outubro de 2024, o qual assegurou um total de R$ 170 bilhões para os processos de reparação e compensação em curso no Brasil", informou a empresa.
A BHP calcula que desde 2015 aproximadamente R$ 70 bilhões foram pagos diretamente às pessoas da Bacia do Rio Doce e direcionados às entidades públicas no Brasil.
"Mais de 610 mil pessoas receberam indenização, incluindo aproximadamente 240 mil autores na ação do Reino Unido que outorgaram quitações integrais. A Corte inglesa confirmou a validade dos acordos celebrados, o que deverá reduzir significativamente o tamanho e valor da ação em curso", informou.
"A BHP continua confiante de que as medidas tomadas no Brasil são o caminho mais efetivo para uma reparação integral às pessoas atingidas e ao meio ambiente e seguirá com sua defesa no caso britânico."