Apps de transporte: Uso de contas falsas viram negócio em BH
Fraude se espalha em aplicativos e permite que motoristas sem CNH, banidos ou com veículos com documentação atrasada continuem rodando em BH
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O flagrante de um motorista usando conta fraudada para transportar passageiros por meio de aplicativos, na última segunda-feira (21/10), expôs uma prática relatada entre os profissionais que trabalham no segmento: o uso e a comercialização de perfis falsos nas plataformas. É comum, segundo condutores de carros e motos que prestam serviços para os apps, anúncios de pessoas nas redes sociais oferecendo serviços para criar, alugar ou vender contas para quem não tem carteira de habilitação, está com documentação irregular ou que foi banido pelos aplicativos.
Não demorou muito para a reportagem encontrar ofertas de contas falsas para cadastro como motorista e motociclista de aplicativos. Uma das propagandas, inclusive, prometia criar a conta completa do motorista, com dados e veículo, para uso imediato. Em outro anúncio, voltado para a Uber, era destacado que o cadastro poderia ser feito mesmo sem a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) ou a permissão para exercer atividade remunerada (EAR). Alguns ainda garantiam conta sem restrição quanto ao ano de fabricação do veículo. Em muitos casos, os valores cobrados variavam entre R$ 150 e R$ 500.
Um dos anúncios mais explícitos listava situações como motocicleta com documentação atrasada, carro antigo ou documentação vencida e garantia que o cadastro seria entregue no mesmo dia, prometendo confiança e funcionalidade do perfil mesmo fora das regras das plataformas. A reportagem conversou com um dos anunciantes. Ao ser questionado sobre o funcionamento do serviço, a pessoa respondeu: “Criamos sua conta. Com sua facial. Seu veículo. Conta bancária. Tudo certinho”, explicou. A equipe disse que a motocicleta que seria incluída na plataforma estaria com a documentação atrasada, mas o vendedor informou que isso não seria problema.
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O caso ocorreu no bairro Cruzeiro, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, durante uma fiscalização de trânsito realizada pela Polícia Militar. O condutor admitiu não ter habilitação e afirmou que decidiu trabalhar com o aplicativo devido a dificuldades financeiras, usando a conta de outro usuário para fazer corridas. Após análise da conta utilizada no aplicativo, foi constatado que o motorista havia alterado os dados de um terceiro, colocando o próprio nome e foto, embora a conta originalmente pertencesse a outra pessoa. A passageira confirmou que havia solicitado a corrida pelo aplicativo, pagando R$ 8,90, partindo de um endereço na Savassi, com destino à Rua Vitório Marçola, no bairro Cruzeiro.
O condutor recebeu voz de prisão em flagrante e assinou o termo circunstanciado de ocorrência, comprometendo-se a manter seus dados atualizados e comparecer ao Juizado Especial Criminal da comarca de Belo Horizonte. A integridade física do motorista e todos os direitos constitucionais foram preservados. O veículo foi removido ao pátio credenciado do DETRAN, e o condutor pôde retirar pertences pessoais, como fone de ouvido, máquina de cartão e dinheiro em moedas, devidamente registrados na ficha de vistoria do pátio.
O que diz a lei
O exercício ilegal da atividade configura contravenção penal prevista no artigo 47 da Lei 3.688/41, conhecida como Lei das Contravenções Penais. Inserir dados falsos nos sistemas das plataformas pode ainda configurar falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal), com pena de reclusão de 1 a 5 anos e multa para documentos públicos, ou de 1 a 3 anos e multa para documentos privados. Dependendo do caso, outras tipificações, como estelionato ou receptação, também podem ser aplicadas.
EAR na CNH
EAR é a sigla para “Exerce Atividade Remunerada”. Trata-se de uma observação na CNH exigida para quem utiliza o veículo em atividades profissionais que geram renda, como motoristas por aplicativo, motofretistas e taxistas em algumas situações. A ausência da EAR, quando exigida, pode implicar penalidades administrativas.
Fraude recorrente em aplicativos
O caso do Cruzeiro está longe de ser isolado. A detenção expôs uma prática cada vez mais comum entre motoristas e entregadores de aplicativos: o uso e a comercialização de contas falsas. Em Belo Horizonte e em outras cidades do país, esse mercado paralelo movimenta grupos no Facebook, canais de WhatsApp e páginas em redes sociais, onde perfis são criados, alugados ou vendidos a interessados que não atendem às exigências das plataformas, seja por falta de habilitação, documentação irregular ou por terem sido banidos.
Trabalhadores ouvidos pela reportagem descrevem o fenômeno como rotina no mercado de entregas e corridas. Um motoboy, que atua com entregas por aplicativo, afirmou, pedindo anonimato: “Trabalhamos como autônomos, mas muitos enfrentam problemas com contas falsas. Alguém cria a conta e aluga para outros, é um mercado meio complicado, é algo de todos os dias.” Ele descreveu a oferta como extremamente acessível: “É só procurar no WhatsApp ou nas redes sociais. Você acha alguém alugando conta rapidinho.”
Sobre a atuação das plataformas, o trabalhador criticou a falta de ação efetiva: “Não têm vontade de acabar com isso porque existe uma lei de oferta e procura. Para eles é melhor assim, têm sempre mão de obra disponível.” Ele também chamou atenção para os riscos da prática: “Tem muito motorista sem carteira dirigindo com conta fake. E tem gente que se passa por trabalhador só para roubar moto. Furto envolvendo contas falsas é recorrente. Como a conta é fake, eles se apropriam e somem.” Por fim, resumiu o perigo para quem aluga perfis: “Você não sabe o histórico da pessoa. Pode estar pegando uma conta de alguém com problemas, envolvido em coisas erradas, e quem vai pagar o preço é quem está na rua rodando.”
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Outro motorista por aplicativo da Grande BH, também sob anonimato, relatou que conhecia colegas que, após serem bloqueados, passaram a usar contas de terceiros para não ficar sem renda. Ele explicou que a principal motivação é econômica: “Conheço pessoas que foram bloqueadas por documentos vencidos ou problemas no cadastro. Como precisam trabalhar, acabaram alugando ou comprando conta de terceiros para continuar rodando.” Segundo ele, a oferta de contas falsas é muito comum nas redes sociais. “O que mais tem são anúncios prometendo contas para quem não tem CNH, com habilitação vencida ou banido da plataforma. Você encontra isso em grupos de WhatsApp, no Facebook… é impressionante a quantidade de gente oferecendo.”
A presidente do SICOVAPP (Sindicato dos Condutores de veículos que utilizam aplicativos do estado de Minas Gerais), Simone Almeida, reforçou que o sindicato recebe denúncias diariamente. “Todos os dias recebemos essas denúncias. Isso já é corriqueiro. Nesta semana mesmo recebi uma denúncia de contas fake — podemos achar e comprar essas contas na própria internet, em grupos de Facebook. Nós encaminhamos para a Uber e para a 99, e cada plataforma resolve de uma forma”, disse.
Reação das plataformas
A 99 informou que o perfil de motorista parceiro é de uso exclusivo e intransferível, com política de tolerância zero para fraudes. Assim que uma denúncia é registrada na Central de Segurança, o motorista parceiro é bloqueado da plataforma. Para coibir ações como essas, a empresa utiliza ferramentas que checam a autenticidade das informações do condutor, verificam o histórico público e realizam reconhecimento facial periódico. A 99 também orienta os usuários a conferirem, antes do início da corrida, se a foto do motorista e os dados do veículo coincidem com as informações exibidas no aplicativo. Caso haja qualquer irregularidade, a denúncia pode ser feita diretamente no menu Ajuda, para que medidas cabíveis sejam adotadas.
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Também foi solicitado o posicionamento da Uber, diante dos anúncios de contas falsas encontrados nas redes sociais. A reportagem questionou a empresa sobre os requisitos para cadastro de motoristas, os motivos que podem levar ao banimento de contas e as medidas implementadas ou previstas para coibir o comércio ilegal de perfis falsos na plataforma. A empresa, no entanto, recomendou que a reportagem procurasse a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) "por se tratar de uma pauta setorial", e quem responderia pelo setor de mobilidade por aplicativo é a entidade.
A reportagem também procurou a Meta, controladora das redes sociais onde as ofertas de contas falsas são divulgadas. Até o fechamento desta edição, a Meta ainda não havia se manifestado. O espaço permanece aberto.
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Entidade detalha medidas de segurança
As empresas associadas à Amobitec, que representa, entre outras, Uber e 99, informaram que a segurança de parceiros e usuários é prioridade em suas operações. Não é autorizado nenhum tipo de comercialização de contas, e o uso de perfis falsos é prática proibida, com potenciais implicações legais para os envolvidos.
As plataformas têm sistemas que buscam inibir práticas fraudulentas, que, quando detectadas, podem resultar no banimento das contas. Por questões de segurança e pelo uso de diferentes tecnologias, não são divulgados todos os processos nem detalhes do funcionamento desses sistemas.
A associação explica que para utilizar os aplicativos:
- O motorista deve cadastrar dados pessoais, documentos e foto, ter CNH regular e passar por checagem de antecedentes criminais;
- É necessário registrar dados do veículo a ser utilizado, seja próprio, alugado ou de terceiros, com documentação em dia;
- Os dados do motorista e do veículo são validados em sistema oficial do governo;
- Periodicamente, são solicitadas selfies aos motoristas para confirmar a identidade do condutor;
- Denúncias de irregularidades e fraudes são analisadas por equipes internas, que aplicam medidas de acordo com a gravidade, incluindo o banimento da conta;
- As empresas associadas têm equipes especializadas para colaborar com as autoridades, respeitando a legislação de privacidade;
- Ferramentas tecnológicas atuam de forma contínua para aumentar a segurança antes, durante e depois de cada viagem.
Segundo a entidade, essas ações visam proteger usuários, motoristas e toda a operação das plataformas, prevenindo fraudes e garantindo a confiabilidade dos serviços.
*Estagiária sob a supervisão da subeditora Juliana Lima