TRANSPORTE METROPOLITANO

O último "Trem" da noite: a luta da volta para casa em cidades da Grande BH

Corte de viagens em ônibus do Transporte Estadual Metropolitano (Trem) à noite submete passageiros a sofrimento e humilhação ao fim de um dia de atividades

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“Se o professor quiser estender o horário, eu deixo a aula mais cedo. É uma realidade para mim: eu estudo e faço tudo contando os minutos para a hora de sair. Se ultrapassar meu horário, tenho de ter outros planos.” O relato é da jornalista e redatora Juliana Gordiano da Silva, de 32 anos, passageira do último ônibus metropolitano da noite entre Belo Horizonte e São Joaquim de Bicas, na região metropolitana. Enquanto está na aula de dança e ginástica que faz duas vezes por semana na Savassi, ela às vezes se dispersa olhando o relógio, pois precisa estar no ponto de ônibus no Centro antes de 22h20 – depois desse horário, o próximo coletivo passa apenas na manhã seguinte.

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Uma realidade comum a moradores de todos os cantos da Grande BH, vítimas dos cortes de viagens das linhas metropolitanas desde a pandemia. E que lembra os versos da canção mais memorável de Adoniran Barbosa (1910-1982) – mais ainda depois que o ônibus metropolitano foi “rebatizado” e passou a ser chamado de Trem (sigla para Transporte Estadual Metropolitano): “Não posso ficar nem mais um minuto com você / (...) Se eu perder esse trem / que sai agora às onze horas / só amanhã de manhã”.

Conforme mostra levantamento feito pelo Estado de Minas, moradores de 21 cidades da região metropolitana que dependem do transporte coletivo precisam estar no ponto antes das 11 da noite para conseguir voltar para casa. Nas outras doze cidades da Grande BH, o cenário não é muito diferente, já que nas madrugadas os ônibus metropolitanos não circulam – os últimos escassos coletivos noturnos passam no Centro da capital por volta de 1h.

A equipe do Estado de Minas acompanhou as últimas viagens da noite para três cidades da região metropolitana (São Joaquim de Bicas, Ribeirão das Neves e Lagoa Santa) e traz relatos das dificuldades enfrentadas pelos passageiros na volta para casa. Pessoas que, na ausência do transporte público, precisam pensar em alternativas para voltar do cinema à noite, para estudar até mais tarde ou até mesmo se precisarem fazer hora extra no trabalho.

(Essa reportagem faz parte de um especial em três partes. Confira as outras matérias no fim da página).

A redatora Juliana Gordiano da Silva, de 32 anos, pauta sua rotina pelo horário do último ônibus que a leva do Centro de BH a São Joaquim de Bicas, na região metropolitana
A redatora Juliana Gordiano da Silva, de 32 anos, pauta sua rotina pelo horário do último ônibus que a leva do Centro de BH a São Joaquim de Bicas, na região metropolitana Marcos Vieira/EM/D.A Press

Início da jornada

Na viagem com Juliana, embarcamos no ônibus no ponto da Avenida Olegário Maciel, altura do número 459, às 22h20. Mas o trajeto percorrido por ela começou bem antes. Naquele dia, a aula do curso na Savassi acabou mais cedo e ela teve a “sorte” de poder seguir a pé até o Centro – uma caminhada de três quilômetros. “Geralmente eu desço para cá de Uber. Quando o tempo é apertado, fico com receio de vir de ônibus”, detalha.

A correria não é injustificada. Depois dos cortes de viagens das linhas metropolitanas na pandemia, dados colhidos no site da Secretaria de Infraestrutura e Parcerias do Governo de Minas (Seinfra) mostram que houve uma redução de 34% no número de viagens no sistema em junho deste ano na comparação com o mesmo período de 2019.

Esses cortes se tornaram ainda mais significativos nos horários menos rentáveis, a exemplo dos fins de semanas e fora dos horários de pico. As poucas cidades que tinham ônibus metropolitanos durante as madrugadas perderam as viagens. Em outras, onde o serviço se encerrava mais cedo, também ocorreram reduções. Foi o caso de São Joaquim de Bicas, e também de Igarapé, destinos para os quais o último ônibus passava no Centro da capital por volta da meia-noite.

Juliana conta que se esse horário fosse mantido ajudaria muito em sua rotina. Desde que o último “Trem” passou a partir mais cedo, passou a ser preciso ter outras cartas na manga nos dias em que a redatora fica até mais tarde fora de casa. “Sou 100% dependente de transporte público. Se eu quiser, por exemplo, sair com minhas amigas, combino de dormir na casa de alguma delas ou na casa de algum familiar. Para minha casa, se for mais tarde, eu não consigo ir”, conta.

Histórias comuns

O ônibus em que embarcamos é novo, da leva dos 850 veículos adquiridos no último ano como parte da renovação de frota do transporte metropolitano. Que, vale observar, possuem portas BRT do lado esquerdo, sem nenhuma utilidade nesse caso, pois não há estações no caminho. A configuração apenas tira espaço de quatro assentos e, assim, obriga quatro passageiros a encarar a longa viagem a pé. Mas, dependendo do dia, o ônibus que passa no último horário é mais velho, já com 13 anos de fabricação.

Em nosso trajeto, uma passageira que se sentou no banco atrás de Juliana ficou curiosa com as câmeras da reportagem. Depois de descobrir o motivo do equipamento, a estudante de enfermagem Daniele Mafra e Silva, de 37 anos, descreveu os sacrifícios que também enfrenta diariamente. “Faço estágio em um hospital, e preciso entrar lá às 18h e largar às 23h, mas essa não é a nossa realidade. Tenho de sair mais cedo do hospital, uma hora antes, porque o último ônibus realmente não nos deixa outra opção”, relata.

Diferentemente de Juliana, a estudante de enfermagem não tem parentes ou amigos na capital, então a mínima possibilidade de perder o último ônibus do dia está fora de cogitação. “Não tenho opções para onde ir. Se um dia isso acontecer, eu vou ter que dormir em um banco da praça”, conta.

Mais cedo naquele dia, Daniele, que mora em Igarapé, precisou desembolsar um valor a mais com passagem no trajeto para BH, depois de não conseguir pegar o ônibus no horário certo. Na impossibilidade de esperar a viagem seguinte, a estudante precisou pegar uma linha até Betim e outra para chegar à capital. “A passagem é cara demais, então não dá para ficar pulando de ônibus em ônibus para chegar ao seu destino”, desabafa.

Caro e demorado

As histórias dos passageiros com os quais conversamos nesta reportagem mostram que o custo real dos deslocamentos para os usuários do transporte metropolitano é maior do que a tarifa dos coletivos, pois, muitas vezes, é normal precisar completar o trajeto com mais um ônibus ou por outro meio.

A rotina da redatora Juliana Gordiano exemplifica isso. A linha 3851, que atende diretamente o Bairro Pedra Branca, em São Joaquim de Bicas, onde ela mora, tem apenas seis viagens por dia, mas a última sai do Centro de BH ainda mais cedo, às 20h20. Quando suas atividades superam esse horário, a solução é pegar um dos ônibus que fazem a última viagem da noite às 22h20 e passam pela BR-381. Descendo na rodovia, o caminho até chegar em casa precisa ser feito de “perueiro”, caminhando quilômetros a fio ou em corrida por aplicativo.

Foi essa última a opção da redatora assim que desembarcamos em São Joaquim de Bicas, às 23h30. Como a linha de ônibus que pegamos não entra na cidade, deixando num posto de combustível na marginal da BR-381, o fim da jornada até em casa foi em corrida de aplicativo, custando R$ 15 – que se somam aos R$ 16,65 da passagem de ônibus.

Ao longo do trajeto entre BH e a cidade de destino, enquanto conversávamos, o ônibus foi se enchendo de passageiros, a ponto de ter todos os bancos ocupados e mais cinco pessoas em pé. Juliana conta ser comum os coletivos ficarem cheios, mesmo com todos os obstáculos vividos pelos usuários, como passagem cara e escassez de viagens. A avaliação dela é que depender do transporte metropolitano em dia de semana é “absurdo”, mas aos fins de semana chega a ser “desumano”, pois são ainda menos horários.

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“Na última vez em que estive em BH em um sábado, conversei com uma família da minha cidade que estava havia três horas esperando o ônibus. Eles tinham perdido o das 13h, já eram 16h e estavam no mesmo lugar. Era um casal com três filhos, um deles de colo. É muito triste e revoltante ver isso”, conta. “A mãe me falou assim: ‘Meu marido trabalha em escala 12x36. No dia de folga, você quer sair com seus filhos e não consegue, porque não tem ônibus’. Isso desanima”, conclui.

Reportagens publicadas

Parte 1: O último "Trem" da noite: a luta da volta para casa em cidades da Grande BH

Parte 2: O que são as "viagens fantasmas" que ameaçam a volta para casa na Grande BH

Parte 3: Queda de demanda e redução de ônibus alimentam risco de colapso no "Trem"

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