'Existe uma tendência natural à maldade?', questiona o colunista -  (crédito: Freepik)

'Existe uma tendência natural à maldade?', questiona o colunista

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A questão do mal é um dos mistérios que intrigam a alma humana. Por que o praticamos? Existe uma tendência natural à maldade? A cultura e a educação são capazes de corrigir os desvios morais? Essas e outras perguntas permeiam o imaginário filosófico e foram responsáveis por várias teorias ao longo da história do pensamento humano.


Uma das teorias mais famosas foi cunhada pela filósofa Hannah Arendt, quando foi convidada, na década de 60, a acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazista responsável por encaminhar milhares de judeus ao extermínio. Ao longo de todo o processo jurídico, a pensadora acompanhou as falas, os gestos e a forma de pensar do réu, chegando à conclusão de que ele era, apenas, uma espécie de funcionário burocrático do regime totalitário.


Ao ser convidada por um jornal norte americano para cobrir o julgamento, que acabou se transformando em um evento midiático, ela afirma não ter encontrado um monstro, o próprio demônio em pessoa, mas um sujeito comum, destinado a cumprir ordens, capaz de fazer qualquer coisa em troca de ascensão profissional. Essa tendência à mediocridade, à vida resumida em um cumprimento irreflexivo de obrigações disciplinares, fez de Eichmann peça central em um regime totalitário. É nesse momento que a pensadora propõe um de seus conceitos mais famosos: a banalidade do mal.


Para ela, quando o indivíduo abdica de suas capacidades reflexivas, sobretudo a autonomia de um julgamento ético, ele se mostra propenso a viver de forma mecânica, e o mal, entranhando nessa ordem ordinária, por se alastrar como um fungo, vivendo sem raízes, se espalhando pela superficialidade daqueles que vivem na ignorância das ações éticas, tende a se espalhar entre vários sujeitos.


A filósofa afirma que o mal é banal não porque nos acostumamos a ele, como algo corriqueiro. Para a pensadora, a banalidade do mal consiste na possibilidade de, buscando nossas próprias metas, na tentativa de sermos inseridos no status quo, podemos, inconscientemente, fomentar um regimente excludente, totalitário e mortal.


Eichman, ao longo do julgamento, chegou a dizer que a única linguagem que conhecia era o “oficialês” e que “estava sendo julgado não por um crime seu, mas por ser apenas um cumpridor de ordens vindas de outros”, além de afirmar que, em seu papel de oficial, seria moralmente correto “entregar o próprio pai, caso seus superiores assim o pedissem”. Frases como essas fizeram a pensadora alemã chegar à seguinte conclusão: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais.


Para além da importância acerca do debate levantado por Arendt e sua análise sobre os regimes totalitários do século XX, e ainda fazendo justiça ao seu posicionamento frente ao julgamento de Eichmann, no qual ela foi favorável à pena de morte imposta ao antigo oficial nazista, precisamos ver com cautela a disseminação do conceito de “Banalidade do Mal” e suas implicações no campo da política, bem como no contexto da discussão filosófica.


A INGENUIDADE DE HANNAH ARENDT


Umas das questões levantadas acerca do debate em torno da banalidade do mal é o fato de que, a todo momento, Adolf Eichmann estaria mentindo para salvar a própria pele. O antigo tenente da SS, com certeza, teria sido treinado para manter a calma e se portar de forma programada diante das situações mais estressantes e perigosas. Com isso, é possível que ele tenha se comportado, ao longo do julgamento, ancorado em sua frieza militar, pois sabia que seu destino seria a morte por enforcamento.
Nesse sentido, longe ser uma característica de um homem mediano disposto a cumprir regras em favor de sua ascensão social, ele estaria colocando em prática anos de treinamento militar. Hannah Arendt, ao se deparar com essa situação, talvez teria criado a pretensão de teorizar acerca da consciência daquele homem, na ingenuidade de alguém que não sabe que a guerra não é assunto para intelectuais. Ele deve ter mentido durante todo o julgamento e a pensadora, por sua vez, criou uma construção filosófica a partir de uma mentira bem contada, simples assim.


PASSAR PANO PARA CRIMES INDIVIDUAIS


Uma das grandes críticas feitas à Hannah Arendt se concentra na ideia de que ela teria “aliviado” a responsabilidade de Adolf Eichmann, ao afirmar que ele era apenas um funcionário burocrático do totalitarismo nazista. Essa postura fez com que grande parte da comunidade judaica, a qual ela pertencia, rompesse relações com a pensadora, pois esperavam uma postura mais efusiva, no sentido de uma condenação mais explícita, às ações do oficial alemão.


Verdade seja dita, a filósofa se propôs, apenas, a fazer uma análise do comportamento humano frente aos totalitarismos do século XX, inclusive sendo favorável à condenação de Eichmann pelo tribunal em Jerusalém. Porém, levada às últimas instâncias, o conceito filosófico de Banalidade do Mal pode sim ser utilizado para retirar a responsabilidade individual frente à maldade de uma organização coletiva. Nesse sentido, é como se colocássemos a culpa no “sistema” que produziu a mediocridade dos monstros, e não nos atos de perversidades que determinada pessoa foi capaz de cometer.


A BANALIDADE DO MAL É UM CONCEITO FILOSÓFICO?


Tenho dúvidas em relação à pretensão de Hannah Arendt em construir um conceito filosófico. O próprio texto, “Eichmann em Jerusalém: relato sobre a banalidade do mal”, construído a partir de um relato de experiência, um ensaio, possui pouco lastro de pesquisa, focando em impressões da autora acerca do julgamento de uma única pessoa.


Além disso, outros autores debateram o tema com maior profundidade e com ampla perspectiva teórica, como é o caso de Kant e Santo Agostinho. No campo da teoria política, temos o filósofo espanhol José Ortega Y Gasset que, de forma primorosa, aponta os perigos da massificação em seu livro “A rebelião das Massas”, publicado pela primeira vez em 1929, cerca de quarenta anos antes de Hannah Arendt.


Nele, Ortega y Gasset, com profundo lastro filosófico, alerta para os perigos da construção daquilo que ele chamou de “homem-massa”, um indivíduo desprovido de suas capacidades cognitivas e alienado em relação às suas próprias vontades, colocando em risco a estrutura dos sistemas políticos, das regras morais e, também, do gosto estético.


PESSOAS REFLEXIVAS NÃO PRATICAM O MAL?


Esse é um dos pontos mais controversos na teoria arendtiana. Herdeira do pensamento socrático, para quem “ninguém busca voluntariamente o mal, mas o faz por ignorância”, ela acredita que a reflexão seria o antidoto mais eficaz contra a prática do mal.


Quem dera fosse assim. Bastaria que as escolas e a própria cultura investissem em um processo de conscientização, educação para a reflexão e espaços de liberdade para a meditação individual que o mal se afastaria de determinado grupo social. Sabemos que não é bem assim. Talvez o problema do mal seja menos uma questão cognitiva e mais uma pulsão da vontade.


Saber que o conhecimento do bem não faz com que o indivíduo, automaticamente, queira praticá-lo é um dado da realidade. Dentre muitas coisas, temos consciência de que entre a razão e o coração existem mais coisas do que sonha nossa vã filosofia.