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O colapso visto por dentro: médicos de Manaus falam da luta contra o coronavírus

Profissionais que atuam na primeira capital a sofrer esgotamento do sistema de saúde relatam rotina de mortes, frustração e aprendizado em CTIs do Amazonas


09/06/2020 06:00 - atualizado 09/06/2020 15:29

Cemitério na capital do Amazonas: taxa de mortalidade por 100 mil habitantes associada ao novo coronavírus no estado é disparada a mais alta do país
Cemitério na capital do Amazonas: taxa de mortalidade por 100 mil habitantes associada ao novo coronavírus no estado é disparada a mais alta do país (foto: MICHAEL DANTAS/AFP)
“A gente é acostumado com um certo número de óbitos, normal de uma UTI, e não com essa loucura que virou isto aqui. É muita gente morrendo todo dia”, desabafa o médico intensivista Anfremon Monteiro Neto. “A gente via uma necessidade, uma vontade de salvar, de curar, e via a frustração do óbito, da morte em si”, acrescenta o fisioterapeuta intensivista João Paulo Ribeiro. Eles estão entre os profissionais de saúde há quase três meses mergulhados no caos do sistema de saúde em Manaus – o estado registrou até ontem 49.817 casos confirmados da doença e 2.271 pessoas morreram. É também, disparado, o que tem a maior taxa de mortalidade por 100 mil habitantes: 51,6, contra 15,5 no país (dados de 4/6).



Manaus foi a primeira capital brasileira a enfrentar o colapso do sistema de saúde em meio à pandemia da COVID-19. Um mês depois de o estado registrar o primeiro caso, em 13 de março, os prontos-socorros e unidades de terapia intensiva (UTI) já estavam lotados. Não havia mais leitos, faltavam insumos, equipamentos de trabalho e profissionais especializados. 

O intensivista Anfremon trabalha em dois hospitais de Manaus, um pú- blico e um privado. Sentiu na pele o poder de contágio do que estava enfrentando: foi, ele mesmo, um dos primeiros infectados pelo vírus. “Para mim foi especialmente complicado, porque adoeci muito cedo. Entrei de licença. Graças a Deus não foi nada grave, mas, quando voltei, o caos já estava instalado”, recorda o especialista em cardiologia e medicina intensiva.
(foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

"Tudo o que a gente havia aprendido, estudado, parecia que não dava, não valia para a doença"

João Paulo Ribeiro, terapeuta intensivista


De volta ao trabalho na segunda quinzena de abril, Anfremon acompanhou, na linha de frente, o momento crítico em duas esferas de atendimento. “No setor privado, a gente tinha seis leitos, esse número subiu para 17, mas houve um momento em que tinha cinco, seis pacientes espalhados pelo hospital. Eram pacientes de UTI, mas não havia leito”, conta. No Hospital Universitário Getúlio Vargas, onde coordena a UTI, o médico conta que o caos só não se instalou porque a entrada de doentes é controlada. “Nos prontos-socorros, que lidam diretamente com a comunidade, os relatos que tivemos foi de mortandade. As pessoas não chegarem a ter um atendimento digno. Morriam ali, na maca, esperando atendimento. Por falta de recurso mesmo”, comenta.

Quarenta e dois dias após o registro da primeira morte, em 5 de maio, o estado atingia um recorde: 102 óbitos em 24 horas. Trabalhando em três hospitais desde o início da pandemia, o fisioterapeuta intensivista João Paulo acompanhou a escalada da doença de dentro do furacão. Ele convive diariamente com o cansaço, saudade da família e vontade de salvar vidas. “Confesso que não sei onde a gente busca tanta força. Às vezes, saio de casa na segunda-feira e só vejo meus filhos e minha esposa na quinta. É uma rotina exaustiva, mas ao mesmo tempo prazerosa”, diz o profissional, mineiro de Passos (Sul de Minas), que trabalha há 10 anos na capital amazonense. 

Para profissionais da saúde como João Paulo, na linha de frente, os primeiros contatos com a doença foram desafiadores. “O início foi muito difícil. Tudo o que a gente havia aprendido, estudado, parecia que não dava, não valia para a doença”, conta. A imprevisibilidade da COVID-19 surpreendeu muitos outros. “São doentes muito complexos. Às vezes, você melhora o pulmão, e quando você vê, eles pioram da parte cardíaca. Quando você corrige a parte cardíaca, eles pioram do rim. Quando você vê, está tudo ruim, não consegue mais recuperar as pessoas”, explica Anfremon. Contudo, a experiência de meses intensos de luta trouxe aprendizado. 

"As pessoas não chegarem a ter um atendimento digno. Morriam ali, na maca, esperando"

Anfremon Monteiro Neto, médico intensivista


“No momento do colapso foi muito dramático, porque a gente tinha que improvisar muito, mas fomos nos adaptando. E a gente tem conseguido bons resultados pelo pouco tempo que tivemos para nos preparar para isso, levando em conta o nosso desconhecimento, em termos mundiais, da doença”, avalia Anfremon. O médico diz que a melhora no prognóstico da doença veio por meio de tentativas, erros e acertos. “Só que, nesse meio tempo, muita gente se foi, sem que a gente pudesse oferecer o melhor atendimento possível, infelizmente.” lamenta.

Para João Paulo, a palavra-chave da evolução na linha de tratamento contra o novo coronavírus está no trabalho, no esforço integrado entre equipes. “É o enfermeiro, é o médico, é o fisioterapeuta, é o técnico em enfermagem, é o psicólogo, é o assistente social, é o nutricionista, é o fonoaudiólogo, é o serviço geral... Uma equipe toda buscando o sucesso contra essa pandemia”, afirma.

Se para quem trabalha dentro dos hospitais de Manaus a sensação é de relativo controle, com a queda no número de casos na capital, os boletins diários da COVID-19 demonstram que a situação segue crítica, e que ainda não é momento de relaxar. Depois de atingir o pico na capital, a doença começou a se espalhar pelo interior do estado.

Roberta Lins Gonçalves, doutora em ciências biológicas, professora, pesquisadora e integrante do Comitê de Enfrentamento à COVID-19 da Universidade Federal do Amazonas
Roberta Lins Gonçalves, doutora em ciências biológicas, professora, pesquisadora e integrante do Comitê de Enfrentamento à COVID-19 da Universidade Federal do Amazonas (foto: Arquivo pessoal)
Para Roberta Lins Gonçalves, doutora em ciências biológicas, professora, pesquisadora e integrante do Comitê de Enfrentamento à COVID-19 da Universidade Federal do Amazonas, essa nova configuração de alastramento do vírus é fator de preocupação, já que os municípios do interior amazonense não dispõem de estrutura nem profissionais qualificados. “O sistema de saúde do Amazonas é peculiar, porque terapia intensiva, por exemplo, só existe na capital. Então, isso gera uma demanda muito grande”, comenta a pesquisadora. “A gente imagina que a mortalidade pode ficar maior, porque esses indivíduos do interior vão ter menos acesso, principalmente à atenção terceirizada, que é a ventilação mecânica, leitos de UTI e profissionais de qualidade”, avalia.

Além das questões geográficas, ela destaca como fator de desvantagem no combate à pandemia os problemas crônicos da saúde no estado. “Se a gente pensar que a média de leitos de UTI no país, que já era muito baixa, era em torno de 12 para cada 100 mil habitantes, no Amazonas, é cerca de seis para cada 100 mil. E o estado ainda sofre com a falta de profissionais qualificados, em todas as especialidade”, comenta.

“É muito triste. Eu perdi parente, perdi um tio. Perdi amigos de turma, perdi colegas de trabalho. A doença é real, ela existe e é muito ruim”, desabafa o intensivista Anfremon. “A realidade é essa que está sendo passada na mídia. É essa que está passando na televisão, não tem outra realidade”, conclui o fisioterapeuta João Paulo.

Tanto que o Brasil chegou à condição de segundo país com mais casos de COVID-19 no mundo, tendo se tornado, na quinta-feira, o terceiro em número de mortes. A única forma de conter o avanço do vírus continua sendo o isolamento. Para quem vive a rotina de trabalhar na linha de frente do combate à doença, como os médicos do Amazonas, “ficar em casa” é mais que uma recomendação – é um pedido de socorro.

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