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Estado de Minas ENTREVISTA CARLOS STARLING

'Situação epidemiológica de BH é pouco confortável', diz infectologista

Médico diz que próximos dias determinam se cidade se fecha ou libera mais setores, defende prioridade para vacinar professores e debate para reabrir escolas


28/12/2020 04:00 - atualizado 28/12/2020 07:01

(foto: Fotos: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
(foto: Fotos: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Com o alerta ligado devido às festas de fim de ano, as consequências dos próximos dias serão decisivas para Belo Horizonte. Em um cenário considerado pelas autoridades sanitárias pouco confortável do ponto de vista epidemiológico, o período se anuncia como prova de fogo no controle da COVID-19.

Se a cidade passar no teste, é considerada até mesmo a recomendação de reabertura das escolas, fechadas há nove meses por força da pandemia, no primeiro trimestre de 2021. Caso contrário, a cidade pode pôr em ação novamente o endurecimento das medidas de flexibilização, com possibilidade desta vez de intervenções “cirúrgicas”, voltadas a grupos específicos da população, como relata o infectologista Carlos Starling, integrante do comitê científico que dá a base para tomada de decisões na capital. Entre elas, considera-se mesmo passar os professores na frente na fila prioritária da vacinação. “Temos absoluta consciência da importância de abrir (escolas), mas estamos atentos à dinâmica. Podemos até cometer erros, mas negligenciar, jamais”, afirma o médico em entrevista ao Estado de Minas.

A situação em BH está se degradando?
Levamos em consideração três parâmetros: o Rt (taxa de transmissão), o número de internações em terapia intensiva (ocupação de leitos) e a ocupação de enfermarias. Se tivermos dois deles em vermelho, é alerta máximo. Rt acima de 1,2 e ocupação de leitos acima de 80% é situação insuportável, de risco, e que deve nos levar a decisões que significam restrição de mobilidade social, a única maneira de se controlar a epidemia. A situação hoje deve estar em torno de 1,1, e tem se mantido, com tendência de aumento. A ocupação de leitos em hospitais privados está no limite crítico, aumentando progressivamente, assim como a ocupação de enfermarias. É pouco confortável a situação do ponto de vista epidemiológico. Dependendo da fonte de informação, estamos variando entre 100 e 150 casos por 100 mil habitantes. É melhor que São Paulo ou Rio, que estão com mais de 300, 500 casos. Mas estávamos com 40 casos por 100 mil habitantes há cerca de dois meses e voltou a subir progressivamente, à medida que as pessoas começaram a banalizar os cuidados.

Muita gente acha que com o verão e o calor o vírus desaparece. O que dizer sobre isso e quais as recomendações para as festas de fim do ano?
O vírus não entra de férias, não importa se é verão ou inverno, circula da mesma forma. Há gente muito vulnerável entre a população e é alta a transmissão que se dá por via área e contato entre as pessoas. A disseminação do vírus é muito rápida. Numa semana está boa (a situação) e em outra acelera rapidamente. Tem progressão e aumento geométrico. Nós (do conselho científico) estamos enfatizando para que sejam evitadas festas durante esta época, que é tradicionalmente festiva, mas neste ano, não. A recomendação é o contrário: ficar em casa, com o núcleo familiar. Não é ano para mistura de grupos.

Se depois das festas as condições sanitárias piorarem, quais medidas são consideradas?
Tudo o que já foi feito anteriormente e que está planejado desde o início da pandemia. A novidade é que podemos hoje ser mais “cirúrgicos” nas intervenções do que fomos quando não tínhamos estrutura assistencial organizada e, por isso, as medidas foram mais duras. Em março e abril, quando fizemos a primeira tentativa de flexibilização, não tínhamos equipamentos de proteção individual em quantidade suficiente para profissionais de saúde, não tínhamos conhecimento fisiopatológico da doença. Mas continuamos não tendo tratamento precoce nem antiviral efetivo disponível. Ao contrário do que determinados grupos preconizam, não temos evidências científicas de drogas eficazes para fazer profilaxia ou tratamentos em fase inicial, embora achemos que o monitoramento precoce é vital. No tratamento de pacientes graves os protocolos são muito mais ajustados. Temos estrutura para atender pacientes adultos que está funcionando e a menor mortalidade do país, com cidade de mais de 1 milhão de habitantes. Esses fatores fazem com que possamos ser mais objetivos nas intervenções. Temos cidade inteira mapeada: sabemos onde a epidemia mais avança, quem obedece e não obedece às regras.

A partir de quantos casos por 100 mil habitantes os protocolos podem mudar?
Não tem uma quantidade mínima, pois o que conta são os parâmetros sobre os quais falei. Se tivermos menos de 100 casos, mas com leitos e enfermarias sobrecarregados, muda. Porque tanto o impacto do aumento quanto o da queda ocorrem alguns dias depois nas enfermarias e leitos. Quando cai (a taxa de transmissão) na comunidade, o paciente fica ainda 15 dias na UTI. Quando se acelera na comunidade, superlota as unidades, que demoram para esvaziar. É um equilíbrio muito tênue, às vezes difícil de a população entender. Há um hiato entre ocupação de leitos e flutuação epidemiológica.

E as escolas? Quando se imagina uma reabertura?
Consideramos a escola uma prioridade. Ela não ficou de fora do processo de planejamento de discussão ao longo do período. Tivemos inúmeras discussões para planejamento de retorno e protocolos de retorno. Reuniões na Câmara, na Assembleia Legislativa, com pais... A preocupação é grande, porque é uma base complexa. A base de raciocínio que tivemos no início da pandemia era a influenza, mas o coronavírus se comporta de forma diferente. Só pudemos chegar à conclusão de que crianças se infectam pouco ao longo do tempo, com muitos trabalhos. Mas a dinâmica epidemiológica dentro da comunidade e de fluxos de casos que partem da comunidade, entram na escola e voltam para a comunidade está sendo estudada. Abrem-se escolas de formas diferentes mundo afora, com estratégias diferentes, dinâmica de funcionamento diferente, o que não necessariamente significa que tenhamos condições de fazer o que está sendo feito na Europa e nos Estados Unidos. E há lugares em que escolas continuam funcionando e em outros em que fecha tudo outra vez. Estamos olhando com bastante cuidado e carinho e posso dizer que tenho conflito de interesse, porque tenho minhas filhas pequenas também. É uma questão que tenho acompanhado muito de perto desde o princípio.
 

"Somos favoráveis à vacinação de profissionais de saúde e de professores, para que possam voltar em segurança, além dos grupos prioritários que estão em casa"

Carlos Starling

 
Como são feitos esses estudos?
Tem um grupo de pesquisadores que trabalham comigo e fazem revisão sistemática de literatura de todos os assuntos relacionados à pandemia, em diversas regiões do mundo, e nada se parece conosco. Na Coreia do Sul, por exemplo, a preconização é de 5 casos por milhão. Se formos tomá-los como base, não voltaremos nunca. Nos EUA, há várias faixas. São essas faixas de risco que com esse grupo de apoio analisamos aqui os 853 municípios de Minas e repassamos para a secretaria (de Saúde) como está a situação, se está na faixa de baixo, médio ou alto risco. Colocamos para o poder público e cada município vai correr o risco que está disposto a correr – de ocorrência de surtos na comunidade e nas escolas, assim como nas empresas. A decisão do tamanho do risco que cada um quer correr é política. Usamos a faixa do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA e a recomendação é para abrir com baixo risco: 20 casos por 100 mil habitantes.

Esse parâmetro pode mudar?
É uma discussão aberta, é sugestão e é o que temos usado. Podemos chegar à conclusão de que pode ser mudado. Numa epidemia, cravar que quero que abra tal dia, que faça isso ou aquilo, não é possível. Aí, tem que combinar com o vírus. E com a população inteira: qual o tamanho do sacrifício que a população está se impondo. Quando vai para baile funk, quer fazer festa, tem repercussão: na saúde, nos custos assistenciais, que vão bater no bolso de cada um, nas escolas, na formação dos filhos. A responsabilidade é coletiva e, infelizmente, no que se refere a isso o pior exemplo vem do governo federal. O que estamos tentando fazer é ter o menor número de óbitos possível, abrir escolas mais cedo, ter hospitais em condições de atender as pessoas. Se lá em cima eles dão péssimo exemplo, cá embaixo, parte significativa se comporta como o espelho que tem lá. E as responsabilidades que recaem sobre os municípios não isentam o governo federal de ter postura em relação à pandemia.

Então, a abertura está em discussão?
Estamos discutindo. Não podemos cravar data, mas algum momento no primeiro trimestre. Somos favoráveis à vacinação de profissionais de saúde e de professores, para que possam voltar em segurança, além dos grupos prioritários que estão em casa. Sou favorável a furar a fila para professor e profissional de saúde, se é que consideramos educação como prioridade.

E fechar o resto da cidade para abrir escola?
Tem sido considerado também, mas numa epidemia ninguém fica sem sofrer. Bares, restaurantes, comércio também sofreram muito ao longo da epidemia. Mas o fato de as escolas ficarem fechadas foi atitude, a princípio, de proteção da própria criança e da comunidade do entorno. Isso tem efeitos colaterais claros. Violência doméstica aumenta, isso tudo acontece, mas não há como (evitar). Todos sofrem. Nesta guerra, as crianças são, de certa forma, protegidas pelo vírus, mas seus pais, avós, tios, todo têm possibilidade de contraí-lo. Criança é prioridade numa sociedade, mas não tira o direito também dos mais velhos. Uma atitude e ensinamento importantes, pois nossa sociedade, sempre muito jovem, privilegia a juventude, o futuro. Se tem algo que temos de aprender e ensinar às crianças e jovens é o respeito à vida em todas as faixas etárias. É um sacrifício sendo feito em nome de quem ajudou a construir o que nós temos. É uma discussão filosófica extremamente importante, ética. Podemos até cometer erros, mas negligenciar, jamais. E é preciso dizer que 7,6% das crianças infectadas vão para terapia intensiva e 0,2% morre. Cerca de 3 mil crianças já morreram nos EUA.

Há muitas pessoas acreditando que no início do ano todos serão vacinados. Poderia explicar como é esse cenário?
Até que consigamos vacinar um contingente populacional que impeça ou dificulte a circulação viral, levaremos de seis meses a um ano. Não estamos contando que a vacina chegou e está resolvido. O vírus não veio passear, veio para ficar. É (missão) para maratonista. Tem que ir dosando esforços para chegar ao final com menos sofrimento. Não há quem corra uma maratona que não chegue ao final sem sofrimento, por mais bem preparado que o atleta esteja. Não é a primeira maratona nem será a última: é bom que nos preparemos para próximas, e elas virão. Teremos novas epidemias. A de hoje é fundamental para criar estrutura social capaz de enfrentar situações semelhantes no futuro. Os asiáticos aprenderam, e nós não. Estamos batendo cabeça. E essa bateção de cabeça está enterrando 200 mil brasileiros.
 


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