(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Moradores do Papagaio fazem teatro na Casa do Beco

Moradores do Papagaio, comunidade do Aglomerado Santa Lúcia (BH), se realizam fazendo teatro na Casa do Beco, instituição que nasceu da luta de um menino rebelde e idealista


postado em 23/11/2013 06:00 / atualizado em 23/11/2013 07:07

"A gente queria o morro nos cadernos de cultura e não nas páginas policiais. E, felizmente, as portas do mundo cultural se abriram" Nil César, de 37 anos, coordenador da Casa do Beco (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)

Maria do Carmo, Maria do Rosário, Cruzelina, Maurina e Geralda são donas de casa. Todos os dias elas fazem tudo igual, não necessariamente como na canção de Chico Buarque. Arrumam os quartos, varrem o chão, limpam o banheiro e a cozinha. Preparam o almoço e lavam a louça e as roupas da família. Seria justo que, depois de tudo isso, cruzassem os braços. Esperar pela monotonia? Que nada! Findas as tarefas domésticas, elas e outras mulheres descem os becos enladeirados do Morro do Papagaio, na Região Centro-Sul de BH, para aprender a arte e as técnicas do teatro.

Não são celebridades e não buscam fama. Não conhecem o lado glamouroso das artes cênicas e não fazem questão. O destino é a Casa do Beco, no pé do morro. Nas aulas, recitam temas que nem precisavam ser escritos. O texto é a realidade delas, da comunidade, as afrontas, as distorções e as conquistas sociais, as transformações que a sobrevivência exige. E o palco é a terapia, o lazer, a escada para a autoestima, uma janela aberta para além dos horizontes da solidão, do preconceito, da discriminação e da rejeição. Cidadania com arte. É no que elas acreditam, como diz a panfletagem da casa.

A Casa do Beco é um reduto cultural criado em 2003 pelo Grupo Beco. Sua história está intimamente ligada à de seu coordenador, Nil César, de 37 anos, nascido no Morro do Papagaio. Filho de pedreiro e de doméstica, começou a sentir que a vida lhe seria difícil antes mesmo de pôr os pés na rua. O consumo de bebida alcoólica fazia do pai um homem violento dentro de casa. Da mãe, também dependente de álcool e vítima de maus-tratos, é que vinha um pouco de afeto.

Nil saiu à rua para se matricular no ensino fundamental da Escola Estadual Paula Frassinetti, que funcionava dentro do Colégio Santa Doroteia. A escola foi outro desafio para ele. Franzino, tornou-se alvo de bullying dos colegas. Das disciplinas, a de que menos gostava era educação artística. “Detestava aquelas aulas em que o professor ou professora mandava os alunos desenhar florezinhas, bichinhos. Não havia preocupação com conteúdo, estética, qualidade.”

Ironicamente, Nil odiava teatro. “É verdade.” Mas foi o teatro que o convenceu a frequentar as aulas de educação artística. “Avisaram que faltar à aula resultava em bomba. E o professor, Eder Batista, havia introduzido o teatro na disciplina. Era tão meticuloso que ensaiava uma peça durante seis meses antes de encená-la. Quando entrei na sala, o teatro já estava avançado. E como havia faltado o menino que representava um moleque de rua, que no final se encontrava com Jesus, o professor me deu o papel.”

Nil não ganhou o papel porque o professor era bonzinho ou via nele uma promessa. “Fui indicado pelos colegas. É aquela história do bullying. Eu não havia ensaiado. Queriam que eu pagasse mico.” Mas ele se deu bem e o professor perguntou se ele queria continuar fazendo teatro. “Muito legal. Ele meu deu opção. Pela primeira vez podia escolher o que fazer.” A montagem do moleque que encontrava Jesus foi encenada em um encontro internacional da Congregação das Irmãs Doroteia. “Estreei para o mundo.”

ESCONDIDO
O pai não queria que Nil estudasse. E ele já participava até do grupo de jovens da Igreja Católica da comunidade. “Ele insistia para que eu trabalhasse. Claro, com mais dinheiro em casa sobraria para ele pagar a bebida. Se continuasse na escola seria expulso de casa.” Ele teve que estudar escondido, fingindo que trabalhava. Todos os dias, quando voltava das aulas, trocava de roupa na casa de um amigo vizinho. Usava roupa suja, como se tivesse acabado de sair de uma construção.

E assim seguiu. Para encurtar a história, Nil viveu intensos 20 dias no 27º Festival de Inverno de Ouro Preto. Ainda era adolescente. Aprendeu o máximo que pôde de artes cênicas. “Voltei outro.” Procurou o grupo de jovens para botar em prática o que aprendera. Montou uma peça quefoi levada apenas ao Morro do Papagaio. Montou uma companhia que, depois de duas ou três mudanças de nome, virou Grupo do Beco. Participação no projeto Arena da Cultura, da Prefeitura de BH, e oficinas com o Grupo Galpão elevaram os conhecimentos de Nil e seus colegas.

Para Nil César, que dirige cena com Maria do Carmo Fernandes Lino, teatro requer planejamento(foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
Para Nil César, que dirige cena com Maria do Carmo Fernandes Lino, teatro requer planejamento (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)


Teatro não é simplesmente a encenação de uma peça. Requer planejamento, busca de patrocínio, montagem, direção. Em 2003, o Beco fez sete montagens. “A gente queria o morro nos cadernos de cultura e não nas páginas policiais. E, felizmente, as portas do mundo cultural se abriram.” Mas o grupo precisava de uma sede. Não cabia mais no apertado quarto do barraco de Nil, onde ensaiavam. “Havia uma academia de dança afro em um imóvel de 500 metros quadrados no pé do morro que fechou as portas.” Fizeram campanha para arrecadar fundos e pagaram o preço pedido, R$ 30 mil, em três parcelas.

DESAFIO
Mas havia outro desafio adiante. O grupo foi mal recebido por uma gangue de traficantes que dominava a área. Parte da casa foi depredada. Nil conversou, negociou, explicou que seu trabalho era para o bem da comunidade, e nada. “Então, fizemos um espetáculo na rua com o pessoal do morro, e conseguimos convencê-los.” A Casa do Beco sobreviveu e vive de ações e parcerias. Hoje, 120 pessoas a frequentam.

As montagens percorrem outras cidades e a Casa do Beco virou referência e forma talentos, como Fernanda Carvalho, de 19 anos. Ela estuda ciências sociais na PUC Minas e tem uma peça montada, O morro do pássaro falante, texto de Nil César. “Realizei um sonho, que era fazer teatro. Sem a casa, com certeza eu seria outra pessoa. Aqui me encontrei”, diz a jovem. E abram caminho: lá vêm as Marias, a Cruzelina, a Maurina, a Geralda e tantas outras para se juntar a Fernanda em mais um ensaio. Pode ser até que encontrem na casa convite para um vídeo, um trabalho como figurante. Mas o bom mesmo é estar ali, perto de casa, feliz, fazendo teatro, sem medo do mundo.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)