O “ombro amigo” amparou o desabafo: perdas, tristeza, falta de perspectiva. Mas logo o “braço amigo” se ergueu e deu apoio: “Pode contar comigo. Somos amigos de infância. Vou te ajudar no que puder”. A cena se passou na manhã de quinta-feira, na Rua João Hamacek, no Bairro Praia dos Bandeirantes, em Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Como protagonistas, o aposentado Eustáquio Dantas, de 59 anos, que raspava a lama acumulada na garagem de casa, e João Apóstolo Leão Filho, de 64.
“Só não perdi a vida”, confessou João Apóstolo, sentado na bicicleta, com os olhos fundos e marcados pela última semana do janeiro, quando as águas dos rios Sabará e das Velhas, dilatados pelas chuvas torrenciais, deixaram um rastro de destruição na turística cidade, uma das primeiras vilas do ouro, com mais de 300 anos de história. “Não tenho muito, mas o momento é de ajudar. As pessoas vão recomeçar do zero”, tranquilizou Eustáquio, para alegria do amigo.
Flagrantes como esse dão um toque de emoção à cidade de 130 mil habitantes, que registrou um óbito por afogamento em decorrência das chuvas, teve 25 bairros atingidos, e contabiliza centenas de desabrigados desalojados. Se a paisagem urbana se tingiu de marrom, cobrindo até o monumento ao bandeirante que dá as boas-vindas aos visitantes na entrada da cidade, a etapa da reconstrução já se mostra presente em vários bairros, mesmo com o caos instalado.
Também morador da Rua João Hamacek, o motorista de transporte escolar Robson Geraldo do Nascimento, casado e com um filho, não teve como esperar. Ao perceber um vazamento no telhado, causado pelo destelhamento, subiu ao topo do segundo pavimento e fez o conserto. “Vamos esperar a chuvarada passar e fazer uma revisão. Agora, estou sem dinheiro, e recomeçar sem dinheiro é complicado demais”, contou o motorista. Além do lamaçal no qual se tornou a cidade, e que tem um batalhão de funcionários da prefeitura e voluntários para retirar, há outro problema a incomodar. “O cheiro está muito forte. Com a poeira que está subindo, a gente tem que usar máscara.”
Com a recém-restaurada Igreja Nossa Senhora da Conceição no ponto mais alto, e considerada uma das primeiras de Minas, Raposos é dos municípios mais afetados pelos temporais e consequente cheia do Rio das Velhas. Embora não registre óbitos, a cidade tem metros de lama nas ruas e, nestes dias em que o sol dá o ar da graça, a poeira também sobe em meio ao maquinário que faz a faxina geral. Impossível fechar os ouvidos para as queixas dos moradores: “Entrou água lá em casa”, “perdi tudo” e “felizmente, não perdi a vida”.
Comerciante há 60 anos, José Otácio de Souza, de 84, conhecido como José Branco e à frente, com os filhos, da Casa de Carne Modelo, tem bem fortes na memória as cenas da enchente de 1997, quando muitas das mercadorias desceram na correnteza ou estragaram. Desta vez, a chuvarada atingiu o negócio, mas, previdente, os donos do empreendimento levaram os produtos para outra unidade, mais longe do Rio das Ve- lhas. “Recomeçar não é fácil, te falo. Mas, aqui, estamos todos no mesmo barco, meio à deriva, é verdade.” O porto seguro, sem dúvida, está num gesto de determinação: arregaçar as mangas e seguir no rumo do trabalho, sem desanimar.
Comandando a obra, José Branco conta que, no pior dia desta chuva de janeiro, a água subiu tanto que quase atingiu o teto. “Ficou a 25 centímetros do forro.” Para não deixar o serviço acumular, nem esperar por mais surpresas tenebrosas, o comerciante mandou consertar a parte elétrica e mudar o balcão do caixa de lado. “Tudo como prevenção. Vamos em frente”.
Para encontrar pessoas que sofreram com as chuvas, bastou seguir a Rua Herval Silva, no Centro. E chegar à frente da casa dos tios do engenheiro de computação Armando Augusto Gomes Neto, de 26, era ficar impressionado com a altura do barro. “É muita tristeza, mas precisamos recomeçar”, afirmou o jovem, que, de máscara e enxada, puxava a massa escura. Armando contou com o auxílio generoso de amigos, também sem demonstrar cansaço na tarefa exaustiva no cabo da enxada. Estavam lá para ajudar os amigos Edson Rodrigues, Nádia Franciely e Leonardo de Oliveira. “Com ajuda, fica mais fácil”, disse o engenheiro de computação. “Me falaram que estavam precisando, então vim aqui”, explicou Nádia, com a voz suave e o sorriso sincero que tiravam um pouco do peso do cenário.