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Estado de Minas

Vagões do trem que transportava passageiros de BH para o Rio estão abandonados


postado em 12/11/2012 07:14

Em Santos Dumont, na Zona da Mata, vagões abandonados do Vera Cruz se misturam aos do também extinto Trem de Prata(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Em Santos Dumont, na Zona da Mata, vagões abandonados do Vera Cruz se misturam aos do também extinto Trem de Prata (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Juiz de Fora e Santos Dumont – Houve um tempo em que era possível dormir cortando o Vale do Paraopeba ou jantar à luz de abajures cruzando a Serra da Mantiqueira. Tudo na mesma viagem, saindo de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro. As paisagens eram rasgadas do anoitecer ao amanhecer por um colosso prateado que corria sobre trilhos. Era o Vera Cruz, o trem de luxo que por aproximadamente 35 anos, até 1990, fez o transporte de passageiros entre as duas capitais, um percurso de 640 quilômetros. Poderia continuar rodando, mas foi condenado a ter seus vagões separados e colocados a apodrecer exatamente ao longo do trecho em que reluziu. Partes da composição estão hoje em pátios ferroviários de Belo Horizonte, Santos Dumont e Juiz de Fora, ambas cidades na Zona da Mata, com os vidros das janelas quebrados, o assoalho trincado e os poucos móveis restantes se esforçando para dizer o que já foram.

O Vera Cruz partia às sextas-feiras e domingos de Belo Horizonte, da Estação Central, e do Rio de Janeiro, da Central do Brasil, às 20h15. A composição era formada por sete ou oito vagões, dependendo do volume de venda dos bilhetes. Na configuração básica, o trem viajava com um vagão para transporte de correspondência, um para bagagens, dois com poltronas para 76 passageiros cada, um em que funcionava o restaurante e dois com cabines para até quatro pessoas. Um vagão conhecido como salão-cauda, para 44 pessoas, poderia ser acoplado à composição.

A última viagem do Vera Cruz ocorreu em março de 1990. Antes de serem transferidos para pátios de Minas Gerais, os vagões do trem ficaram estacionados em trilhos da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, onde começaram a se deteriorar. Em 1996, com a privatização da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), a União iniciou a divisão da responsabilidade sobre os chamados ativos fixos (as estradas de ferro) e rodantes (trens e vagões). Todo o sistema foi repassado às concessionárias que venceram leilão realizado pelo governo federal. Quatro dos vagões do Vera Cruz foram transferidos para o pátio da empresa MRS Logística no Bairro Horto, em Belo Horizonte. “Estamos à espera de apoio da União para determinar o que será feito com o material”, diz o responsável pela planta, Paulo Fonseca. Mesmo deteriorados, existe a possibilidade, conforme o funcionário da MRS, de os vagões voltarem a ser utilizados.

Em Santos Dumont, partes do Vera Cruz se misturam às de outra composição semelhante, o Trem de Prata, que fazia o transporte de passageiros entre São Paulo e Rio de Janeiro, e foi retirado de circulação em 1995. Os vagões imobilizados na cidade estão sob a guarda do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. O mesmo ocorre em Juiz de Fora, onde estão juntos, parados ao tempo, vagões do Vera Cruz e do Trem de Prata, também sob responsabilidade do Dnit e de concessionárias da malha ferroviária. Mesmo com todas as composições em mal estado de conservação, tanto em Belo Horizonte como em Santos Dumont e Juiz de Fora há um forte esquema de segurança armada para evitar a entrada de pessoas nos pátios onde elas estão. A contratação das equipes, no entanto, só ocorreu recentemente, depois de os vagões terem partes roubadas para serem vendidas como sucata.

REFORMA


O presidente da organização não-governamental (ONG) Amigos do Trem, Paulo Henrique do Nascimento, afirma que a associação tem interesse em reformar os vagões do Vera Cruz para utilização em linhas de trens turísticos a serem criadas. A ONG já conseguiu colocar em condições para circulação uma litorina (vagão com motor próprio), cedida pelo governo federal, que deverá fazer a ligação entre o município de Santos Dumont e a Fazenda Cabangu, onde nasceu Santos Dumont, o pai da aviação. O trecho entre a fazenda, transformada em museu, e o município tem aproximadamente 15 quilômetros. “O problema é que a burocracia atrapalha os nossos projetos”, diz Nascimento.

Em BH, cabines individuais dos vagões estão destruídas. Retrato do descaso com o patrimônio público(foto: Arquivo EM)
Em BH, cabines individuais dos vagões estão destruídas. Retrato do descaso com o patrimônio público (foto: Arquivo EM)
A extinção do Vera Cruz ocorreu com o aumento do movimento de transporte de minério de ferro pelas ferrovias que ligam Minas Gerais ao porto do Rio de Janeiro. O tempo da viagem entre as capitais, que oscilava entre 12 e 14 horas, ficou ainda maior por causa das paradas para passagem dos vagões de carga. A primeira viagem da composição foi em 29 de março de 1950, portanto, exatos 40 anos antes de sua saída de circulação. Durante o período, no entanto, houve interrupção no funcionamento da linha nos anos 1970, por curtos períodos, e entre 1976 e 1980, quando foi retomado para se aposentar novamente 10 anos mais tarde. A tração do Vera Cruz era feita com locomotivas diesel-elétricas.

Outros tempos

‘Numa noite fresca de abril’

Otacílio Lage

“Eu tinha exatamente 2 anos quando o Vera Cruz trafegou pela primeira vez. Vinte e três anos depois, eu faria a primeira viagem nele, entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro. Antes, já havia ido à capital fluminense, mas de ônibus, pela Viação Cometa, da qual os belo-horizontinos, então, eram reféns. Era início de abril e a noite estava fresca. Viajei em um carro de 76 poltronas, nem todas ocupadas. A composição oferecia carro-leito, com cabines individuais, mas o dinheiro era curto para tanto conforto.

Restaurante do Vera Cruz repleto de passageiros nos tempos áureos e o vagão de refeições do Trem de Prata, tomado pelo lixo e abandono (foto: Gladyston Rodrigues/EM DA Press)
Restaurante do Vera Cruz repleto de passageiros nos tempos áureos e o vagão de refeições do Trem de Prata, tomado pelo lixo e abandono (foto: Gladyston Rodrigues/EM DA Press)
Tão logo embarquei, fui para o carro-restaurante tomar cerveja e jantar. Havia muitos casais, poucos solteiros, mas deu para entrosar. Por serpentear muito entre as montanhas de Minas e ter de cruzar as serras da Mantiqueira e do Mar, o Vera Cruz gastava 14 horas para fazer a viagem de 640 quilômetros – por rodovia eram, à época, 445, percorridos em sete horas. Confesso que desembarquei na Estação Dom Pedro II, no Rio, meio mareado. Mais tarde, ajudei a noticiar as sucessivas interrupções do Vera Cruz, que em 15 de março de 1990 foi aposentado de vez. Contudo, aquela viagem, em 8 de abril de 1973, ficou para sempre na minha lembrança.”


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