A escritora Eliane Robert Moraes, de perfil

A escritora Eliane Robert Moraes, organizadora da coletânea

Renato Parada/Divulgação

O lançamento em Belo Horizonte do livro “O corpo desvelado - Contos eróticos brasileiros (1922-2022)”, organizado pela escritora, pesquisadora e professora da Universidade de São Paulo (USP) Eliane Robert Moraes, marca a estreia do projeto República Jenipapo, nesta terça-feira (28/3). Trata-se de uma parceria da Livraria Jenipapo com o Projeto República, da UFMG, coordenado pela professora Heloísa Starling.

O evento, marcado para as 19h, na praça em frente à Livraria Jenipapo, na esquina da Rua Fernandes Tourinho com Avenida Getúlio Vargas, é o primeiro de uma série de encontros mensais com escritoras, escritores e intelectuais de diversas áreas. O propósito é discutir assuntos ligados à história do Brasil, da proclamação da República até os dias atuais, sempre tendo como esteio lançamentos literários.

No que ocorre hoje, estarão presentes a organizadora do livro, o editor do “Suplemento Pernambuco” – jornal literário da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), que chancela “O corpo desvelado” –, Schneider Carpeggiani, e a historiadora Heloísa Starling. Para o editor, a obra lança luzes sobre zonas cinzentas da história da República brasileira, ao observar como autores trataram a questão do corpo e da sexualidade ao longo do tempo.
“O corpo desvelado” dá sequência a uma outra coletânea, “O corpo descoberto – Contos eróticos brasileiros (1852-1922)”, também organizada por Eliane, lançada em 2018. Ela explica que os dois volumes derivam de uma antologia da poesia erótica brasileira, que capitaneou em 2015. Foram trabalhos que se impuseram, segundo a pesquisadora, pela necessidade de se preencher uma lacuna.

Organização

Eliane conta que trabalhou durante anos com literatura francesa e europeia, de um modo geral, estudando Marquês de Sade e Georges Bataille, entre outros. Quando resolveu pesquisar a literatura brasileira, a partir da obra pornográfica de Hilda Hilst, se deu conta de que não havia fontes de pesquisa organizadas.

“Eu me vi na incumbência de organizar a antologia poética. Nunca tive o projeto de ser uma pesquisadora, sempre me coloquei como uma intérprete de literatura, mas, para ler, pensar e interpretar a erótica brasileira, tive eu mesma que fazer o trabalho de pesquisa, porque ninguém havia feito ainda”, diz.

Ela explica que acabou conduzido a realização da antologia poética e dos dois volumes de contos movida pelo desejo de refletir sobre a literatura erótica brasileira. Isso demandou uma organização prévia, conforme aponta. “Em um texto de 1926, Mário de Andrade diz que os franceses, indianos e alemães têm uma pornografia organizada e que a nossa não, é desorganizada. Achei que me cabia cuidar um pouco dessa organização”, afirma.

Para o senso comum, o erótico seria o velado e o pornográfico o desvelado, o escancarado, mas isso é um critério moral que não cabe na esfera da literatura. Os maiores escritores eróticos eram extremamente obscenos, como Sade ou Bataille. Ao mesmo tempo, há livros eróticos muito castos em termos de vocabulário, como o 'Lolita', de Nabokov

Eliane Robert Moraes,organizadora da coletânea


Recorte temporal

O recorte temporal que os dois volumes de contos estabelecem – de 1852 a 1922 e de 1922 a 2022 – foi pensado como forma de abarcar o maior número possível de textos, segundo Eliane. “É praticamente zero o que se tem de literatura brasileira na primeira metade do século 19; era algo muito acomodado aos modelos lusitanos, portanto algo indistinto”, observa, referindo-se ao marco inicial de sua pesquisa.

“A partir de meados do século 19 é que a literatura brasileira começa a ter uma foto na carteira de identidade e, no caso da erótica, isso é ainda mais evidente. O olhar para a escrita erótica aparece no romantismo, com ‘Noite na taverna’, de Álvares de Azevedo, uma obra fundante, em que realmente essa marca reconhecível do erótico aparece. E ele morreu precisamente em 1852”, assinala.

A organizadora conta que, tomando como ponto de partida aquele ano, encontrou muito material, tanto que não caberia em um livro só, daí a opção por lançar dois volumes, entendendo que 1922 representa uma demarcação muito nítida para esse tipo de produção. “Antes, a erótica era muito alusiva, na prosa, sobretudo”, diz.

A partir de 1922 é que começa a haver uma maior abertura, muito por influência da vanguarda europeia, segundo a organizadora. “Claro que o modernismo não nasce em 1922, isso são demarcações que ajudam a gente a dar aula. No chamado pré-modernismo, a questão erótica já era abordada mais de frente, ganhava em riqueza”, pontua.

Ainda assim, com alguns parâmetros estabelecidos, a seleção dos textos foi muito difícil, segundo Eliane. Ela diz que, mesmo com a peneira da qualidade literária – principal critério levado em consideração –, restava muito material. “Mário de Andrade tinha toda razão, a erótica brasileira estava muito desorganizada”, observa.

Ela conta que visitou bibliotecas, sebos, coleções privadas e foi, inclusive, atrás de obras não publicadas. “O corpo desvelado - Contos eróticos brasileiros (1922-2022)” reúne textos de Aníbal Machado, Caio Fernando Abreu, Ferreira Gullar, Hilda Hilst, João Silvério Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Milton Hatoum, Nelson Rodrigues, Raduan Nassar, entre muitos outros.

Critério da diversidade

Segundo Eliane, para refinar a seleção, ela adotou como segundo critério a diversidade, geográfica inclusive, trazendo para a antologia autores do Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste do Brasil. O arco temporal que o volume abarca também foi observado, de forma que “O corpo desvelado” inclui desde autores modernistas de primeira hora até contemporâneos.

“A tônica não foi essa, mas existiu também uma atenção ao que as mulheres escreveram. Para elas, sempre foi mais difícil publicar. Neste livro, conforme você vai avançando no tempo, vai percebendo a figura feminina protagonizando mais, na literatura, de modo geral, e na literatura erótica, especificamente. Pensei em questões do momento, de raça, de gênero, de representatividade, geográficas e temporais”, ressalta.

Ela sublinha que não faz distinção entre erotismo e pornografia. “Para o senso comum, o erótico seria o velado e o pornográfico o desvelado, o escancarado, mas isso é um critério moral que não cabe na esfera da literatura. Os maiores escritores eróticos eram extremamente obscenos, como Sade ou Bataille. Ao mesmo tempo, há livros eróticos muito castos em termos de vocabulário, como o ‘Lolita’, de Nabokov”, aponta.

Olho clínico

O que caracteriza um texto – seja conto, romance ou poesia – como erótico é o escrutínio de um olhar treinado. “Há uma variedade de contos que você pode ler e não considerar eróticos, aí entre o olho clínico da organizadora. ‘O corpo desvelado’ traz um conto do Lúcio Cardoso, por exemplo, que você pode ler em duas chaves; se te cai a ficha de que é um conto erótico, isso salta aos olhos”, comenta.

Proprietário da Livraria Jenipapo, , ao lado de Tatiane Fontes, Fred Pinho explica que o projeto República Jenipapo nasceu a partir de conversas com Heloísa Starling. No ano passado, ela promoveu na livraria o lançamento de “Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá”. Foi esse evento que originou a ideia de mais debates balizados pela literatura.

“A gente vislumbrou a possibilidade de aproveitar a praça em frente à livraria para promover ali debates públicos voltados para questões da república, para a valorização da democracia, em interface com a literatura, abordando vários assuntos, do meio-ambiente ao erotismo, por exemplo. Essa conversa começou no ano passado, e a parceria se deu nesse sentido. Trata-se da criação de uma espécie de ágora”, diz ele.

Curso da história

O texto de apresentação do projeto República Jenipapo chama a atenção para o fato de que a história não segue um curso linear, está sujeita a avanços e recuos, e que é necessário levar em consideração uma velha máxima, tão cara aos historiadores, de que nenhuma conquista está assegurada para sempre.

Pinho adianta que o convidado do próximo mês será Franklin Martins, com o lançamento do livro “A música conta a história do Império e do começo da República”, da editora Kotter. Em maio, será a vez de Francisco Bosco vir a Belo Horizonte para mais uma edição do República Jenipapo.

República

Sobre a escolha de “O corpo desvelado” para abrir o projeto, ele destaca que se deveu a um conjunto de fatores.  “Primeiro tem a questão da agenda, porque é uma obra recém-lançada, que oferece um recorte interessante para se pensar a república. O editor, Schneider Carpeggiani, topou participar. Outra coisa é que o livro é muito bom, foi uma organização muito interessante”, ressalta.

Mas, afinal, que leitura da república é possível a partir de uma reunião de contos eróticos? “Acho que a mais produtiva – e também a mais solar – é a gente pensar que tanto o República Jenipapo quanto o projeto do livro exaltam a ideia de liberdade. Trata-se, no meu caso, de poder abrir essa pena e tirar o erotismo do estereótipo, da coisa suja, para trazer a erótica como pensamento, como reflexão e como elaboração”, aponta Eliane.

Ela diz que ficou muito contente com o convite, pela oportunidade de colocar em pauta a questão da liberdade – um assunto que, conforme aponta, se tornou muito visado. “Ainda estamos às voltas com moralismos do tipo ‘menina tem que vestir rosa e menino, azul’, esses absurdos que a gente viveu ao longo dos últimos quatro anos. Que possamos, agora, estar mais abertos para esse tipo de reflexão.”

“O corpo desvelado – Contos eróticos  brasileiros (1922-2022)”
• Lançamento do livro e estreia do projeto República Jenipapo, com debate entre a organizadora, Eliane Robert Moraes, o editor, Schneider Carpeggiani e a coordenadora do projeto, Heloísa Starling, nesta terça-feira (28/3), às 19h, na praça da Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi).