Jef Delgado/Divulgação
“Um disco de mim pra eu mesmo”. Assim Djonga define “Nu”, seu quinto álbum, lançado em 13 de março. Introspectivo, melancólico e angustiado, o “disco da pandemia” é a síntese do céu e inferno que o rapper mais importante do Brasil atualmente viveu no ano passado.

Único brasileiro indicado ao respeitado prêmio norte-americano BET-Hip-Hop Awards, destaque do “Jornal Nacional” em 13 de outubro e elogiado por Pedro Bial em seu programa de entrevistas em novembro, o mineiro bateu recordes nas redes sociais sociais em dezembro, depois da divulgação de seu show para uma multidão na periferia carioca, enquanto o Rio de Janeiro enfrentava o aumento de mortes e internações devido à COVID-19.

"A branquitude faz isso: o branco errou, é ato isolado; um preto errou, é porque todos os pretos são errados"

Djonga, rapper


Atacado por estimular aglomeração, defendido por fãs e “cancelado” por ex-admiradores, o rapper abandonou o Twitter e também fez silêncio no Instagram.

'Não tem essa de arrependimento'

Em “Nu”, Djonga “discute a relação” com Gustavo Pereira Marques. A linha é tênue entre o astro e o cidadão, afirma. Com oito faixas autorais inéditas, o repertório confessional começa por “Nós” e termina em “Eu”. Arrependido do polêmico show carioca? “Pra mim, não tem essa de arrependimento. Já foi feito”, responde.

Diz que preferiu o silêncio a desculpas demagógicas que celebridades costumam postar na internet após alguma lambança e da ameaça de cancelamento. “Pedem desculpas, mas amanhã fazem a mesma coisa”, comenta Djonga.

“A gente sabe do tamanho da grande responsa de ser figura pública 24 horas por dia”, argumenta o rapper mineiro, que conquistou crítica e público ao retratar dramas da periferia e lutar contra o racismo, a hipocrisia e a intolerância por meio de suas letras. “Não sou covarde, nunca vou correr da responsabilidade de ser tudo o que sou”, diz Gustavo. “Humano demais pra não acertar e assumir/ Humano demais, esse é o seu ídolo”, canta Djonga em “Eu”.

Cabeça numa bandeja

Na capa de “Nu”, o rapper entrega a cabeça numa bandeja de prata. No clipe de divulgação, é simplesmente decapitado. O disco, conta ele, é fruto de muita reflexão. “Durante o isolamento social, percebi o quanto tudo estava pesado. Minha vida era só turnê, dinheiro, preocupar com os meus, com o parente passando mal, tirar foto com fã”, revela. “Foi sofrido ficar longe do palco, não poder pular. Não fazer show me dói.” Na estrada desde os 20 anos, aos 26 desabafa: “Quero viver”. E rima: “Pra que tanto luxo e pouco prazer?”.

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Ano passado, durante live do coletivo mineiro Família de Rua, Djonga falou do “lado B” do sucesso, de seu inferno pessoal, da luta contra a síndrome de pânico e crises de ansiedade. “A música me salvou de mim mesmo”, resume.

O período sabático pandêmico o fez questionar a própria carreira. “'Nu' talvez seja meu último disco. Como artista, já passei a minha mensagem, talvez (meu projeto) tenha esgotado”, diz, enfatizando que não pretende se tornar repetitivo. “Não quero que vire responsabilidade lançar um álbum todo dia 13 de março.”

Inicialmente, a ideia era não soltar disco este mês, como ocorre desde 2017. Mas as canções surgiram após a polêmica sobre o show carioca e reflexões sobre a vida. “O repertório estava pronto, lancei”, conta, anunciando que vai dar um tempo, mas alguns feats sairão em breve.
Ele planeja se dedicar a singles em vez de álbuns, após conquistar crítica e público com “Heresia” (2017), “O menino que queria ser Deus” (2018), “Ladrão” (2019) e “Histórias da minha área” (2020). Aliás, foi com o single “Olho de tigre” (2017) e o potente refrão “Fogo nos racista” (sic) que conquistou o Brasil. Só no YouTube, essa canção tem 20,6 milhões de views.

O novo disco também mobiliza as redes sociais – há quem acuse Djonga de se repetir. De volta ao Instagram, ele mandou o recado: “Quem não gosta, não gosta. Não vai ter jeito”. Sábado passado, comemorou os 17 milhões de streamings do álbum “Nu” em apenas uma semana.

Djonga transforma as próprias contradições em rap. “Eu”, a faixa de encerramento, traz as vozes de Pedro Bial e William Bonner apresentando-o na Globo como destaque da música brasileira com sua obra antirracista, seguidas do áudio da notícia sobre a aglomeração no show carioca. “Sumi das rede, o pai nunca teve tão on/ Deitei na rede, olhei pro céu e agradeci/ Na boca do povo cê se acha o bala/ Mas foi no olhar das minhas criança onde eu me reconheci”, canta ele. 

Tropicalista

O disco termina com a voz do baiano Rogério Duarte (1939-2016), um dos pais da Tropicália. O designer, músico e escritor experimentou o inferno da tortura, viveu em hospitais psiquiátricos, tornou-se hinduísta, aprendeu sânscrito e traduziu “Baghavad Gita”, bíblia de espiritualistas.

Admirado por Caetano e Gil, Rogério encerra a oitava faixa com um depoimento tocante sobre a alma humana.

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“Eu sei o quanto eu sou sujo, mesquinho, avarento, invejoso, irado, desconfiado. E qualquer coisa a mais que cê possa botar. Covarde, entendeu? Mentiroso. Eu conheço, acontece que eu não gosto (disso)”, confidenciou o baiano no documentário “Rogério Duarte, o tropikaoslista”, de José Walter Lima.

“Quando vi o filme, pensei: é isso. Encaixa em tudo o que estou sentindo”, revela Djonga.
Inicialmente, ele pensou em abrir seu álbum com o depoimento de Rogério, “um grande artista”. A faixa de abertura, “Nós”, vem acompanhada de videoclipe caprichado, em que Djonga mata Djonga, mas sempre volta à vida na cena seguinte.

“Quanto mais sucesso, menos divertido/ E eu não era assim, eu sou fruto do meio/ Meu coração parece um balde furado/ Acho que o vazio me pegou em cheio”, diz a letra do novo rap de Djonga.

'Saiu um pretinho atrás do outro'

No clipe de “Xapralá”, Djonga, que já se disse “deus” por levantar a autoestima dos pretos, perde a coroa dourada que um dia ostentou. É perseguido por ela, enquanto se ouve o refrão: “Fugindo de mim pra me encontrar”. Nesse rap, ele menciona o ator negro Lucas Penteado, que abandonou o “Big Brother Brasil 2021” depois de enfrentar a intolerância dos colegas na casa – entre eles os negros Karol Conká e Projota, rappers como ele.

“O lance do Lucas (na letra) é pelo Lucas, não para atacar Karol e Projota”, garante Djonga. O “BBB 2021”, aliás, tem tudo a ver com a contradição que norteia “Nu”. Antes do início do programa, especulava-se que os rappers usariam o espaço na Globo para defender bandeiras como o antirracismo e a tolerância. Mas o que se viu foi o “cancelamento” de Lucas estimulado por Karol e Projota.

Rejeição no BBB

Karol deixou o programa rejeitada por 99,17% dos votantes, enquanto Projota foi eliminado por 91,89% dos votos. “Saiu um pretinho atrás do outro”, observa Djonga, dizendo que “brancos e playboys” sempre adotaram posturas questionáveis no “BBB”, sem causar a comoção vista agora.

“A branquitude faz isso: o branco errou, é ato isolado; um preto errou, é porque todos os pretos são errados”, analisa o rapper. “A Globo montou sua estratégia, colocou os nossos lá, conseguiu criar conflito, as contradições dos nossos, o que enfraqueceu as nossas discussões.”

Haja contradição! Karol Conká e Projota no “BBB”, o polêmico show carioca de Djonga durante a pandemia, o fim da dupla mineira de rap Hot e Oreia, depois de Hot ser acusado pela ex-namorada grávida de submetê-la a um relacionamento abusivo, explicitaram a distância quilométrica entre as personas artísticas e as pessoas de carne e osso.

Vídeo explica o que é cultura do cancelamento e suas origens

Para Djonga, a contradição entre teoria e prática não marca apenas a geração dele. “Está acontecendo o mesmo que aconteceu com a geração dos nossos pais, avós etc. O lance é que agora tem internet, fake news e as coisas ficam expostas. Todos têm contradições, os veículos de comunicação, o ‘Estado de Minas’, os veículos mais à esquerda têm contradições”, diz.

De acordo com ele, “Nu” busca lidar com a complexidade humana de forma honesta, sem a hipocrisia condenatória disseminada pelas redes sociais e tribunais da internet. “Talvez olhar para dentro de nós, para a nossa verdade, seja o primeiro passo (para um novo momento). Quem sabe agindo assim as pessoas percebam melhor as coisas e tirem o Bolsonaro mais rápido?”, especula.

Djonga tem o rosto cansado nas fotos de divulgação de “Nu”, mas logo se anima ao falar de seu “novo normal”, apesar da angústia de ficar longe dos palcos. Durante o confinamento social, ele pôde conviver mais de perto com a mulher, Malu Tamietti, e os dois filhos pequenos, Jorge e Iolanda. “Tô vendo eles crescerem”, conta.

A rotina agitada das turnês fez com que a motocicleta ficasse parada na garagem. Agora, ele dá seus rolês de moto para curtir BH e revela que gosta de puxar papo com quem nunca ouviu falar dele. Adora boxe, planeja voltar ao ringue.

Entusiasmado, conta que sua produtora A Quadrilha “vai mexer com tudo: música, livro, arte, esporte”. Planeja lançar trabalhos dos cantores Doug Now, Marina Sena e Marcelo Tofani, além do ponte-novense Cigano, “que me ensinou tudo sobre arte”, entre outros mineiros. Quanto à música, tem ouvido forró: Mariana Aydar, Mestrinho, Trio Virgulino.

Quem sabe um rapper forrozeiro vem chegando por aí? 

“NU”

  • De Djonga
  • Álbum com oito faixas
  • Ceia
  • Com Coyote Beatz, Budah, Doug Now, Nagalli, MDN Beatz e Thiago Braga
  • Disponível nas plataformas digitais.