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Estado de Minas COMPORTAMENTO

Entre dois mundos

"Fiquei incumbida de despi-las para serem pesadas e medidas"


02/04/2023 04:00 - atualizado 02/04/2023 07:35

Crianças
(foto: JOSÉ LESOA / AFP)

 
Momento em que escrevo estas palavras me sinto arrasada. Até então acreditava que já tinha visto as piores condições de vida humana. Durante os primeiros dias de isolamento da pandemia, circulei pelas regiões mais carentes da Grande BH atrás daqueles que viviam em condições precárias. Ao menos uma vez por ano vou a um grande campo de refugiados de guerras no Centro da África, no Malawi, um dos países mais pobres do mundo.
 
Felizmente, estas experiências sempre me motivaram a continuar acreditando que, junto à condição social que ocupo, vem uma responsabilidade enorme. Ao invés de me considerar uma pessoa privilegiada, me considero uma pessoa responsabilizada.
 
E quando acreditava que já tinha visto o pior, no que se refere à miséria material e social e suas consequências, me deparo com uma triste realidade: há sempre algo ainda pior. Estou no Sul da ilha de Madagascar, África, em um centro de acolhimento da Fraternidade Sem Fronteiras. Minha missão principal dentro da ONG é montar oficinas de costura e capacitar pessoas nesse ofício.
 
Mas, curiosa que sou, hoje decidi acompanhar a equipe de saúde que foi pesar e medir crianças que vivem em uma comunidade a 20 quilômetros de nossa base. Sou conhecida por falar muito, brincar com todo mundo, falo alto, gesticulo muito. Ao final do trabalho, fui vítima da gozação do médico responsável pela clínica que, com ironia, me perguntou: “Está tudo bem com você? Nunca te vi calada e quieta por tanto tempo”.
 
Estava um caco. Cerca de 35% das crianças que passaram pelas minhas mãos sofrem de desnutrição grave. Eu fiquei incumbida de despi-las para serem pesadas e medidas. Depois os dados eram comparados com os da última consulta e as que precisavam eram medicados. Uma menina linda de um ano e seis meses, no colo da mãe grávida, pesou quatro quilos e 800. Outra de três anos de idade pesou nove quilos.
 
Minha maior dificuldade era conseguir despir as crianças sem machucá-las. Me recuso a dizer que elas usavam roupas, prefiro identificar aqueles pedaços de pano como trapos. Os trapos cobriam corpos há tanto tempo que mais pareciam  uma extensão deles. As cabeças cresceram e as blusas não passavam pelas cabeças. Os trapos imundos de tanta poeira, baba e secreção nasal arranhavam a pele dos rostos e puxavam as orelhas. E eram exatamente estes trapos que eles vestiam novamente. Calçado quando muito se resume a um um pé de chinelo ou a dois, cada um de um tamanho e modelo remendados.
 
Sempre dizemos que sobrevivemos à falta de energia, mas é impossível viver sem água. Agora percebo o quanto isso tem de verdade e ao mesmo tempo de mito. Aqui, onde a água é um bem raro, a capacidade de sobrevivência é sobrenatural. Chega a ser admirável a resistência do ser humano perante tanta adversidade e abominável desigualdade que insistimos em manter entre nós. 

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