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Estado de Minas

No Coração Quente da África

Jornalista do EM relata experiência emocionante que presenciou no campo de Dzaleka, onde vivem 40 mil refugiados, no centro de Malawi


postado em 04/08/2019 04:08

Pelas ruas e becos dos campos de refugiados e Dzaleka, Malawi, não se vê árvores nem animais. Mas onde falta de tudo ainda se encontra esperança(foto: Patrícia Espírito Santo/arquivo pessoal)
Pelas ruas e becos dos campos de refugiados e Dzaleka, Malawi, não se vê árvores nem animais. Mas onde falta de tudo ainda se encontra esperança (foto: Patrícia Espírito Santo/arquivo pessoal)


Desembarcamos no aeroporto internacional do Malawi, na capital Lilongwe, por volta das 14h da tarde de segunda, 8 de julho. O aeroporto fica afastando da cidade assim como do campo de refugiados de Dzaleka. Foram cerca de 30 minutos de micro-ônibus até que descemos no centro de acolhimento da Fraternidade Sem Fronteiras – FSF, bem ao lado do campo. O que vimos pelo caminho, uma rodovia estreita necessitando urgentemente de reparos, já indicava o que teríamos mais adiante. Casas paupérrimas, nenhuma cerca ou muro entre elas, solo seco, poeira, pouca vegetação e muita criança solta.
 
Pelo acostamento, algumas bicicletas velhas e mulheres equilibrando grandes trouxas na cabeça enquanto carregavam outros objetos nas mãos. Poucos carros, pequenos e populares. Uma vila aqui, outra ali, com casas esparsas. Sorrisos e acenos de mão, que a princípio pareciam nos dar boas-vindas, eram nada mais que o cumprimento de quem é conhecido por sua alegria. O país recebeu o apelido de Coração Quente da África devido à hospitalidade do seu povo, mas infelizmente esta acolhida não se estende aos refugiados que fogem de suas pátrias devido a perseguições relacionadas à etnia, religião, tribo, grupo social, conflitos armados, posição política e todo tipo de violência possível.
 
Não demoraria muito para percebermos o quanto o campo de Dzaleka é indesejado pelos malawianos. Não porque os nativos sentem a pouca oferta de emprego ameaçada ou temem algum tipo de violência por parte dos forasteiros vindos basicamente do Congo (a maioria), de Burundi e de Ruanda, localizados na África sub-saariana, uma das regiões mais pobres do planeta. Os que vivem em Dzaleka são proibidos de deixar o campo, assim como de trabalhar, de frequentar escolas ou qualquer ambiente fora de seus domínios, com exceção de hospitais quando há enorme gravidade e risco de morte iminente.
 
Por que tanta aversão? Não há população que aceite bem a entrada de pessoas que só trazem pobreza, necessidades e fome, mesmo que sejam impedidas de se misturar aos nativos. No caso do Malawi, questões culturais, diferenças entre tribos, políticas públicas, a começar pelo atual presidente, que acabou de ser reeleito e não perde a chance de ameaçar fechar o campo. Sim, ele tem o direito de fazer isso de um dia para o outro sem dar nada em troca.
 
Imagine uma população de quase 40 mil pessoas vivendo confinadas e “presas” num campo sem cerca. Por que não se aventuram a sair? Há polícia armada por toda a extensão da rodovia, de olho em quem passa. Ir para onde? Ninguém os deseja por perto. Ao menos no campo eles têm garantia de receber do Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) uma lona que lhes sirva de teto, até três metros quadrados para construir uma casa para toda a família e uma porção mensal de comida que, para os adultos, se resume a seis quilos de farinha de milho, um quilo de farinha de soja, com a qual fazem o mingau que comem ao acordar, um punhado de sal, 200ml de óleo, duas pastilhas de uma espécie de apresuntado e um quilo de feijão. Para as crianças, a “ração” é ainda mais reduzida. E como se vive só com isso? Sobrevive–se apenas. Fome é um estado constante, assim como dor de dente e outros males. Acostuma–se ou morre-se, ao menos é o que parece, pois não há  a quem pedir esmola, a quem implorar por sobra de comida, nem lixo para revirar atrás do desperdício do vizinho.
 
A recepção calorosa no Centro de Acolhimento da FSF levantou nosso astral, abalado pela pobreza do caminho, até porque ainda estávamos com a adrenalina alta , típica do início de uma viagem. Homens e jovens de Burundi tocavam batuques típicos da cultura deste pequeno país africano. Os tambores pareciam extensão de seus corpos que rodopiavam em torno dos instrumentos através do jogo de pernas e braços. E quanta alegria expressavam em seus rostos! A chance de divulgar um pouco de sua arte e cultura me pareceu fazê-los reconectar com a parte boa da vida que deixaram para trás.
 
As crianças atraídas pela festa se penduravam aos braços dos 36 caravaneiros. Não houve uma única pessoa que não se encantasse com os olhos brilhantes e os sorrisos abertos delas, mesmo que estivessem escondidas atrás da poeira que embaçava suas peles e roupas, que definitivamente não foram feitas para elas. Ou eram enormes ou estavam a ponto de se desfazer de tão apertadas.
 
Ficamos hospedados nas salas de aulas que receberão a partir de outubro parte das nove mil crianças que vivem no campo e não têm acesso à escola. Cada sala abrigou cerca de 15 caravaneiros. Colchão no chão, mosquiteiro por cima, edredons e cobertores para dar conta do frio que nos fazia tremer do final do dia ao início da manhã seguinte. Banho de caneco com água bem quente trazida dos grandes fogões instalados na cozinha. Ao contrário do que desconfiávamos, o banho se revelou prazeroso.
 
Na maior parte das vezes, a preparação de nossos baldes era feito pela Sheila, uma congolesa jovem que mais do que água, distribuía uma alegria irradiante através de seus cumprimentos, cantos, abraços e das batidas nas portas daquelas que se aventuravam a estender o banho por um pouco mais de tempo. Sheila se tornou uma de nossas personagens preferidas quando nos refugiávamos nos exemplos de pessoas que conseguem ter bom humor quando tudo ao entorno as remete à depressão e nos fez rir mais ainda quando descobrimos que seu verdadeiro nome era outro. Com certeza, ela se divertiu em nos fazer de bobos. Que bom!
 
 
Entrando em Dzaleka
 
Na manhã de terça-feira, nos reunimos para ouvir um pouco sobre as características do campo de Dzaleka e nos preparar para conhecer onde os profissionais de saúde iriam atender e que tipo de público os aguardava. As informações eram, em sua maioria, desanimadoras. Poucos são os que têm status de refugiados. Quem é oficialmente reconhecido como tal tem os mesmos direitos e deveres de qualquer outro estrangeiro que resida no país. Ou seja, pode se deslocar, trabalhar, inclusive viajar pelo mundo. Só que, no caso dos que vivem em Dzaleka, esse status, que na teoria não pode ser vendido, custa muito caro.
A maioria das pessoas vive lá como solicitante de refúgio, algumas chegaram há 24 anos, quando o campo foi aberto em caráter emergencial. Era para durar dois anos. Esperam que o governo do Malawi avalie seus pedidos e lhes conceda o tão sonhado status de refugiado. Para quê? Acreditam que os países europeus, abrirão suas portas para recebê-los.
Avistamos as moradias de longe. Marrom acinzentado, cor de poeira e de barro, palha seca sobre a lona na altura de nossas testas, tijolos que esfarelam feitos com a terra do lugar. Não há lugar onde se possa plantar, o máximo que alguns conseguem fazer é criar galinhas soltas, meia dúzia de cabritos e vacas que são mortos ali mesmo no meio da rua, onde são vendidos.
E quem tem como comprar? Aqueles que conseguiram trazer algum dinheiro de seu país de origem ou recebem ajuda dos familiares que escaparam para lugares de maior sorte. Onde estão os outros animais? Pássaros, borboletas, formigas, baratas e até os temidos mosquitos transmissores de doenças? Em 10 dias por lá vi apenas dois cachorros. Os outros bichos, se estiveram por lá algum dia, há muito se foram ou viraram comida.
 
Todos ficam de fora de casa, pois é onde lhes cabe esticar as costas e os braços, trocar uma ideia com o vizinho ou nos cumprimentar com a esperança de que enfim chegaram aqueles que podem salvá-los da própria história que até aquele momento só lhes trouxe sofrimento.
Médicos são vistos como deuses, não apenas porque têm o dom de diminuir-lhes as dores físicas, mas também porque acreditam que eles descobrirão uma doença capaz de convencer os países ricos a recebê-los e curá-los em seus grandes centros de pesquisa. Ou, nas palavras de minha intérprete, quando olhamos para um musungo, como chamam os brancos, enxergamos dinheiro. 
 
Pudemos ver o esforço das mulheres e crianças para tirar água dos poucos poços artesianos espalhados pelo campo.  Tarefa que compete às mulheres, assim como as obrigações domésticas, como olhar os filhos.
 
Conseguimos entrar em uma casa típica. Como cabe aqui dentro uma família de oito? Não saberia responder. Onde estão os pertences como roupas, utensílios de cozinha? Não há. Muitas crianças, nenhum brinquedo. Em 10 dias vi uma única bola feita de pedaços de sacolas plásticas emboladas. E o menino usava uma camiseta tendo às costas o número 7 – Ronaldo.
Não vi uma única boneca, nenhum carrinho. De que brincam as crianças? De correr atrás dos adultos, de carregar garrafões de água, de catar restos de amendoim nas cascas que encontram ao lado dos debulhadores de uma empresa que lhes explora a mão de obra. Quem sabe ali encontram ao menos um vago sinal do sabor daquele grão capaz de disfarçar a fome por um tempo?
 
Reparei o esgoto a céu aberto, são como pequenos córregos ao longo dos becos. Cheira mal, claro. Mas cadê o lixo? Não há, pois não há o que jogar fora. Não vi uma única torneira, nem poste e fios nele embolados. O país todo só tem energia elétrica por seis horas diárias e ela só chega a quem tem como pagar. E não é o caso de grande parte daquele lugar. No centro de acolhimento temos energia extra às custas das poucas placas solares e baterias que conseguimos arrecadar através de campanha. Foram elas que tornaram viável a instalação da tão sonhada oficina de costura. 
 
 
Descaso X esperança 
 
 
Naquela noite, tive que ouvir as histórias que se passavam no hospital para onde as emergências do campo são levadas. Dias antes de chegarmos, um menino de 7 anos fora esfaqueado no rosto pelo pai alcoólatra. No hospital, colocaram apenas uma gaze sobre o corte e o enviaram para casa. Corte feito com uma faca imunda, poeira, sangue e gaze, uma mistura perigosa. Uma de nossas pediatras precisou de tempo e firmeza emocional para remover esta massa e todo o pus que escondia a ferida, que foi tratada por dias.
No domingo, poucos dias antes de nos prepararmos para o retorno ao Brasil, Olive, a congolesa me levou até o campo para comprar capulanas, os belos tecidos típicos africanos estampados e bem coloridos. Passei uma instrução aos alunos, cortar e costurar quadrados de retalhos para confeccionarem bolsas que seriam vendidas aos caravaneiros. A ideia era comprar mais material com o dinheiro arrecadado, assim como dar a eles uma esperança de que terão clientela no futuro.
 
Descobri que era jornalista no Congo. Tem 37 anos, é solteira, não tem filhos. Conquistou posição de pastora da Assembleia de Deus e, pela quantidade de gente que a cumprimentou, vi o quanto é querida e respeitada.
 
Me levou na única estação de rádio do campo de refugiados, chamada Yetu, que significa nossa. É mantida por um grupo de jornalistas que vive ali. Lá conheci Raphael. O principal objetivo deles é manter as pessoas vivas e unidas, através da divulgação de informações verdadeiras sobre tudo aquilo que foram obrigados a deixar para trás, esclarecendo as fake news que insistem em rondar por ali como em qualquer outro lugar do mundo. Na programação, educação infantil, para jovens, sobre saúde, musicais, palavras que buscam dar esperanças para quem os ouve.
 
Dali seguimos para as poucas lojinhas que vendem os tecidos que comprei para que o grupo de costureiras, do qual faço parte aqui no Brasil, possa confeccionar roupas para serem vendidas e o dinheiro ser aplicado na oficina de costura.

ARTE No último dia, assistimos a uma peça de teatro encenada por jovens do grupo The Branches, que significa ramos ou galhos em português. Foram descobertos pela turma da psicologia, que enxergou no movimento deles uma ótima de maneira de promover nas novas gerações a autoestima, a autoconfiança e a possibilidade real de uma vida melhor. Muitos deles nascidos ali, nunca conheceram outra vida, nem outro lugar. Através de todo tipo de manifestação artística promovem a esperança. 
The Branches querem ser diferentes das gerações que os antecederam no campo, por isso pregam que, independentemente de onde estiverem, precisam procurar uma razão para suas vidas, a partir do agora. Querem ensinar inglês aos jovens e participar e oferecer oficinas. Penso em levar uma oficina de bijus e acessórios feitos com as capulanas. Para isso, já conto com a adesão incondicional de minha amiga Mary Arantes (Mary Design), que começou a se concentrar numa coleção criada especialmente para eles produzirem. Um exemplo de como podemos ajudar.

PODEMOS AJUDAR Como presente, ganhamos em nossa última noite o eclipse parcial da Lua. Nunca havia visto um céu tão lindo quando o do Malawi, a começar pelo nascer e o pôr do sol que nos impressionavam todo dia. Preparados para ir embora, muitas lágrimas de gratidão e de esperança. 
 
Em julho, as temperaturas no Malawi chegam a cinco graus pela madrugada. Como tudo por lá, acostuma-se também com o frio, assim como com o calor insuportável no verão. Não há lenha para cozinhar ou ser queimada para esquentar. No fim do ano passado, a FSF montou uma oficina de biocarvão produzido através de restos de lixo orgânico. A atividade remunera seus trabalhadores, que podem experimentar a dignidade de ter uma ocupação.
A cada dia chegam ao escritório da FSF ao menos 20 currículos de refugiados oferecendo todo tipo de serviço, de médicos a pedreiros. Não aproveitam porque o governo do Malawi exige que médicos estrangeiros paguem 200 dólares para exercer a profissão no país. Quem não tem o que comer, não consegue comprar este passe e se conseguisse não teria pacientes capazes de pagá-lo pelo serviço.
 
Precisamos de US$ 11 mil para colocar em funcionamento, inicialmente, além da oficina de costura, uma marcenaria, uma carpintaria, a oficina de artes para o grupo de jovens Branches e também uma padaria. Participar desta campanha é uma maneira de aproximar as quase 40 mil pessoas, e todas as que chegam lá diariamente, do resgate da dignidade através do trabalho e da ocupação do tempo e da mente, hoje preenchidas pela dor da fome e da sede em seu mais profundo significado. Acesse as redes sociais da Fraternidade sem Fronteiras. Se quiser doar especificamente para a Nação Ubuntu, faça seu depósito e encaminhe o comprovante direcionando sua contribuição para oficinas do Malawi. Você pode também apadrinhar uma criança acolhida pela Nação Ubuntu ou pelos os outros projetos da FSF na África e no Brasil, através da contribuição de R$ 50 mensais. Vamos transformar não apenas a vida deles, mas também a nossa. Asante sana! Muito obrigada! 
 
 
A oficina de costura
 
Os profissionais de saúde seguiram para a clínica montada em tendas e eu fiquei, pois daria início à oficina de costura que me propus a levar até lá. Eram oito vagas para cada turno.
“Olá, como vão vocês?” Mas aqui tem 13 pessoas, pensei, o que faço? Olive, a congolesa responsável por registrar quem entra me colocou o problema. Apareceu mais gente do que esperávamos. “Deixe todos, vou ver como me viro.” Ouço uma sequência interminável de thank you, ilustrada por um olhar penetrante de gratidão e alívio.
 
Propus a confecção de pequenas sacolas de tecido, com forro e alça a tiracolo. Levei os tecidos do Brasil, assim como todo o resto – tesouras, linhas, alfinetes e etc. Mas, sem dúvida, as maiores atrações eram as máquinas de costura elétricas. Acho que nunca tinham visto uma. Custam uma fortuna no Malawi, cerca de 5 vezes mais que no Brasil. São mais fáceis de encontrar as movidas a pedal.
 
Vi muitas lágrimas nos olhos dos caravaneiros, ouvi histórias difíceis de acreditar. Quase todas as pessoas chegaram ali após presenciar pais, filhos, cônjuges serem mortos brutalmente, estuprados, violentados no corpo e dignidade, após passar fome, frio, sede e calor, caminhar meses, apanhar das patrulhas de fronteiras, carregando seus rebentos, descalços, doentes. As histórias se repetem. Quanta resistência e quanta resiliência!
E a perspectiva de futuro? Quem sabe um dia eu saio daqui, arrume um emprego, tome um banho, tenha uma roupa adequada para vestir, porque no momento o que importa é matar minha fome e da minha família.

Fome de quê? Alguns precisavam sair da fila do atendimento médico para ir para casa comer e se não têm o que comer, se deitam para esquecer. E nós, naquela noite, dormimos na dúvida se queríamos conversar mais ou se seria melhor nos calar, pois era difícil achar palavras para expressar o que sentíamos. Mas antes não escapamos de ouvir o relato do atendimento de uma criança de 2 anos bem inchada porque, ao menos durante um período do mês, a mãe a alimenta apenas com sal, por ser o único alimento à disposição.  
 
     Outro dia, vamos lá pessoal, vamos fazer a diferença. Ao nascer do sol, pouco antes das seis da manhã, ouve-se um canto lindo, misto de pranto e de louvor, vindo do campo de refugiados. Mas também temos o nosso momento de parar e pedir a Deus auxílio para mais aquele dia, que prometia não ser nada fácil. Nossa oração, em roda, vinha sempre com música, entoada por todos os nativos, tendo uma voz principal que depois fazia com muito fervor uma oração de agradecimento desejando que todos tivessem um bom dia. Fazem tudo cantando, varrem o chão, cozinham, costuram, caminham. Estilo de música preferido? O gospel em ritmo africano.  
 
    Enquanto ajeitava a sala de costura, chegavam as alunas do turno da manhã. A cada vez que eu me virava a sala estava mais cheia. 21 pessoas. Meu Deus! Pensei. Não tive coragem de dispensar ninguém. Rezei e mentalmente pedi socorro. Na teoria aqueles tinham certa noção da costura. Faríamos uma blusa básica de manga japonesa. Ajudei uma a uma a descobrir seu tamanho, a passar o molde para o tecido, a usar as máquinas.
 
       No final do dia minhas costas estavam me matando. Precisei ser medicada e massageada, mas dormi tranquila porque tinha a certeza de que iríamos conseguir. Afinal, os alunos e alunas nunca tiveram essa dúvida. E conseguiram. A costura, como qualquer outra ocupação, não serve apenas como profissionalização e forma de obter uma renda. Preenche o tempo e a mente. Os que têm tempo de sobra não conseguem parar de pensar nos horrores sofridos e ficam sonhando com um futuro melhor.
 
       Entre todos os casos que a equipe de psicologia contou naquela noite, um me chocou muito. Os albinos, em várias partes da África, são considerados portadores de sorte. E quem come a carne de um deles, transfere para si esta bênção. Nos relataram a história de uma albina de 30 anos que morava no campo de refugiados com os irmãos, os próprios filhos e os da irmã. Há três anos, ela fugiu do Congo com as oito crianças depois de presenciar o marido e o cunhado serem mortos violentamente e a irmã, também albina, ser esquartejada e comida. Em Dzaleka ela vive se escondendo e em constante alerta, com medo de ser atacada. Precisou inclusive raspar os cabelos, pois jovens com cabelos brancos também não são bem-vindos naquele meio.O que mais nos aguardava nos outros dias? A maioria das pessoas tem os dentes extremamente desgastados, pois fazem papel de faca e tesoura. Tudo é decepado com os dentes. São os dentes que descascam a mandioca, a cana, tudo o que precise ser cortado. O que mais a dentista fez foi extração de dentes em péssima situação e limpeza dos demais. Distribuiu escovas e orientou como usá-las. Havia outros problemas dentais? E muitos, mas as condições não permitiam investidas em outros tratamentos.
 
      A médica clínica geral que atendia as mulheres pôde ver os horrores que uma sociedade machista é capaz de produzir. Poucas as que nunca foram violentadas, poucas as que não são obrigadas a se submeter ao sexo anal com violência. Prazer sexual? O que isso significa? Contracepção? A religião não permite. Filhos em penca.  Foi apenas no quarto dia que chorei por poucos minutos. Não porque evitei fazê-lo e muito menos porque não me sensibilizei com as histórias. 
 
     Do contrário, assumi que precisava encontrar soluções práticas e razoáveis em vez de ficar lamentando a situação na qual aquelas pessoas se encontram. Sabia que se eu abrisse a torneira, teria muita dificuldade em fechá-la. A minha fragilidade era a última coisa que aquelas pessoas precisavam. Chorei porque fui obrigada a finalizar as turmas, depois que todos tivessem acabado as peças que lhes propus fazer. Selecionei quatro pessoas, três homens e uma mulher, que se destacaram. Eu precisava treiná-los para que fossem multiplicadores da arte da costura. Eu iria embora dali a poucos dias e não sabia quando poderia retornar.
 
     Precisava preparar quem fosse capaz dar continuidade ao trabalho. Vi a tristeza nos olhos dos que se despediam sem entender o porquê de eles não voltarem mais. Surpreendi-me com a capacidade da maioria de aprender e de reter o conhecimento. Têm pressa, se pudessem dispensavam os riscos nos tecidos, a colocação do alfinete, o alinhavo. Depois de cortar, queriam partir logo para a máquina. Encantaram-se com o zigue-zague.
 
FILOSOFIA UBUNTU A Fraternidade Sem Fronteiras deu ao projeto do Malawi o nome de Nação Ubuntu pensando exatamente em oferecer a estas pessoas sem terra, uma naçãopara chamar de sua e um pensamento a perseguir. Ubuntu é uma antiga filosofia africana que promove a união assim como o compartilhamento do pouco que se tem. Nelson Mandela foi um grande defensor do ubuntu enquanto vivia. Dividindo, sempre terá para todos. 
Alguns refugiados, sensibilizados pelas dificuldades pelas quais passam as famílias com filhos deficientes, montaram uma associação para recebê-los e passar um tempo com eles. A equipe de fisioterapia e terapia ocupacional da caravana passava lá todo o período da manhã ensinando os voluntários os melhores movimentos a serem feitos com cada uma das 50 crianças cadastradas. As fisioterapeutas conseguiram que a direção da FSF fornecesse comida para que todos ficassem até o fim do dia.
 
Foi com surpresa que souberam que da noite para o dia toda a comida havia desaparecido. Nossa tendência é acreditar que alguém a roubou. Não. Tudo foi preparado logo que chegou à associação e serviu para matar a fome de um enorme grupo que não comia há dias. A justificativa deles era que é inaceitável estocar comida enquanto pessoas bem ali ao lado morrem de fome. Compartilhar e dividir, ajudar o outro na sua dor é também uma questão de sobrevivência. Poderíamos aprender ao menos um pouco com isso. Ubuntu! 


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