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Estado de Minas ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

O atraso nas normas sociais de gênero: Brasil marca mais um gol contra

De dentro da 'minha bolha', essencialmente composta por mulheres independentes e donas de seus passos, deparei-me com esse relatório do Pnud


20/06/2023 06:00 - atualizado 19/06/2023 22:30
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Mulheres brasileiras em protesto contra a violência e a desigualdade de gênero
O Brasil destaca-se negativamente enquanto nação que permite e reforça a violência emocional e a falta de igualdade de oportunidades em um jogo dissimulado de busca por espaços iguais (foto: Nelson Almeida/AFP)
Em muitas das minhas crenças ilusórias, chego a pensar que as relações intergêneros estejam em contínua evolução social. Ledo engano! Aqui cabe parênteses para a definição de gênero, que utilizo ainda no sentido binário. A pandemia da Covid-19 passou por todas as sociedades e deixou vários sinais de retrocesso, inclusive na crença sobre igualdade de gênero em relação a direitos e capacidades. Esse desalentador cenário é revelado pela segunda edição do Índice de Normas Sociais de Gênero (INSG) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado em maio último. 

O Índice de Normas Sociais de Gênero (INSG) pode ser considerado um indicador subjetivo da percepção de homens e mulheres sobre igualdade social. Na prática, mede a distorção (preconceito) na visão, tanto de homens quanto de mulheres, sobre o papel e a igualdade de oportunidades entre gêneros. O INSG é captado em perguntas definidas em quatro dimensões: política, educacional, econômica e integridade física. À exceção da dimensão educação, com somente uma pergunta, as outras três são caracterizadas por duas indagações. 

Muito interessante conhecer as perguntas para desvendar os preconceitos e crenças tanto de homens quanto de mulheres. Na dimensão política, as questões são “se os direitos iguais entre homens e mulheres é essencial para a democracia” e “se homens exercem melhor a liderança política que mulheres”. Na dimensão educação, a questão posta é “se a universidade é mais importante para homens do que para mulheres”. Na dimensão econômica, indaga-se “se homens deveriam ter mais direitos a trabalho do que mulheres” e se “homens são melhores executivos que mulheres”. 

Por fim, na dimensão integridade física, são apresentadas duas medidas de “aproximação”: uma para violência íntima do parceiro e outra para direitos reprodutivos – essa última dimensão considerada, entre todas, a mais perigosa.

Afinal, normas sociais que permitem violência física são, no mínimo, perversas e inibidoras de denúncias de abusos. E o Brasil caprichou vergonhosamente no seu resultado, aproximando-se de países do continente africano e asiático cujas práticas contra direitos iguais são vastamente disseminadas.

A segunda edição do INSG capta percepções entre os anos de 2017 a 2022, enquanto a primeira inclui os anos de 2010 a 2014. Os dados foram coletados em 80 países e territórios, que correspondem a 85% da população mundial, mas a comparação intertemporal só pode ser feita em 38 desses – representativo de cerca de 47% da população mundial. Passados 12 anos entre o início da apuração da primeira edição e o final da segunda, os resultados são desalentadores. 

Em outras palavras, pode-se inferir que as sociedades praticamente não evoluíram na ruptura de seus preconceitos e vieses em relação à igualdade social entre gêneros.

Muito pior do que isso, essa estagnação atinge tanto homens quanto mulheres. Para ilustrar esse resultado, no INSG-2023, relativo aos anos de 2017 a 2022, 83% das mulheres tinham ao menos uma distorção em relação à noção de igualdade de gênero, sendo que entre os homens esse percentual era ligeiramente superior - 86,5%. Para agravar esse comportamento social, entre as duas edições, a queda da distorção foi maior entre homens do que entre mulheres. 

E como fica o Brasil nessa lastimável perspectiva história? Dentre os 27 países que apresentaram alguma melhoria na redução da visão distorcida sobre igualdade social de gênero, o Brasil ocupou o 10º lugar, porém com redução bem menos expressiva que outros, como Alemanha, Uruguai, Nova Zelândia, Singapura, Japão, Austrália, Hong Kong, Holanda e Estados Unidos. Chile, Coréia do Norte, México, Rússia são os líderes dos maiores retrocessos, nessa ordem. 

Somente em seis países mais de 50% das pessoas não “carregam” nenhum tipo de viés em relação às questões abordadas nas quatro dimensões do INSG: Nova Zelândia, com 72,6% da população; Holanda, com 69,4%; Austrália, com 65,2%; Alemanha, com 62,5%; Canadá, com 58,9%; e Andorra, com 57,5%. 

No Brasil, as coisas caminham de forma bem diferente: somente 15,5% das pessoas não carregam nenhum tipo de distorção na visão igualitária de gênero, sendo que 84,4% carregam ao menos um e quase 50% da população carrega ao menos dois preconceitos. Para piorar, desagregadamente, a dimensão integridade física é a que apresenta o pior resultado para o INSG-Brasil: 75,7% das pessoas têm algum preconceito contra a integridade física, sendo que esse valor é ainda maior para as mulheres do que para os homens, e ambos estão acima da média mundial.

Nas demais dimensões, as mulheres apresentam comportamento ligeiramente menos enviesado que os homens. Trocando em miúdos, sentem-se em condições mais igualitárias socialmente que os homens, embora ambos carreguem níveis nada desprezíveis de viés social. A dimensão política é a segunda com maior visão distorcida da igualdade de gênero, o que reforça e piora a capacidade de mudança social. 

Enfim, se o mundo ainda precisa enfrentar uma agenda social de combate às distorções entre gêneros que, por sua vez, atuam como coibidores da expansão dos direitos das mulheres, o Brasil destaca-se negativamente enquanto nação que permite e reforça a violência emocional e a falta de igualdade de oportunidades em um jogo dissimulado de busca por espaços iguais. 

Enquanto 76% das mulheres continuarem defendendo posições que não as colocam como iguais - física, cognitiva, emocional e mentalmente – aos homens, o retrógrado modelo tradicional de sociedade encontrará eco junto a dinâmicas de violência e abuso, de reforço da baixa autoestima e da exploração, inclusive sexual. 

De dentro da “minha bolha”, essencialmente composta por mulheres independentes e donas de seus passos, deparei-me com esse relatório do Pnud. Não imaginava que os números fossem tão alarmantes. No entanto, quando percebo que continuamos assistindo, corriqueiramente, (i) a casos de alienação parental em que o abusador é protegido por lei; (ii) a toda sorte de banalização da violência contra crianças, em especial meninas, e contra mulheres; e (iii) a diversas formas de desigualdade de oportunidades, só consigo pensar que a sociedade brasileira insiste em ser secularmente arcaica. Daí o papel heroico de brasileiras parlamentares, ativistas, jornalistas e mobilizadoras sociais - verdadeiras guerreiras nessa selva humana!

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