Queijos de leite cru precisam ser preparados em condições de higiene rigorosas -  (crédito: Victor Schwaner/Divulgação)

Queijos de leite cru precisam ser preparados em condições de higiene rigorosas

crédito: Victor Schwaner/Divulgação
Símbolo de Minas Gerais, o queijo é produzido há 300 anos em praticamente todo o estado. Porém, muita gente nem sabe que produtos mais tradicionais, à base de leite cru, feitos por meio de uma técnica artesanal e centenária, estavam, aos poucos, desaparecendo. E, isso, devido à Lei 1.283, de 18 de dezembro de 1950, que, na prática, proibiu a comercialização de laticínios  não-pasteurizados. O texto, que, supostamente, tinha objetivos sanitários, acabou, na prática, obrigando os criadores de vacas a vender o leite para cooperativas ou grandes empresas, que, por sua vez, obtêm os derivados por meio de métodos industriais. 
 

 

Mas o caso é que alguns pequenos produtores se mantiveram fiéis à técnica tricentenária, visando o consumo familiar ou, não raro, a venda clandestina da iguaria. A Serra da Canastra e o entorno do Serro, são, possivelmente, os pólos de produção mais conhecidos; porém, nada menos que 10 regiões do estado preservam a tradição do Queijo Minas Artesanal (QMA). E, ao longo da última década, todas elas vêm resgatando essa história e transmitindo as técnicas de preparo, outrora ameaçadas, para mais pessoas. 

Quase 68 anos depois, em 14 de junho de 2018, a determinação de 1950 foi alterada pela Lei 13.680: enfim, a comercialização do QMA estava permitida e regulamentada. Agora, com o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade, da Unesco, os produtores vislumbram, definitivamente, oportunidades não apenas na venda da iguaria, mas também no agroturismo. O Estado de Minas embarcou em uma viagem ao Campo das Vertentes e a Ibitipoca, duas das áreas que conservam esse tipo de método de feitio: as demais, além da Serra da Canastra e do Serro, são Araxá, Cerrado (no Alto Paranaíba), Entre Serras (da Piedade ao Caraça), Serra do Salitre, Diamantina e Triângulo.
 

QMA nos Campos das Vertentes


Tal qual ocorreu na maioria das demais regiões produtoras, nos Campos das Vertentes o QMA perdeu espaço para os similares industrializados a partir de meados do século XX. Mas isso está mudando: nos últimos anos, cerca de 12 fazendas locais voltaram a fazer queijo de maneira artesanal, com leite cru, e vêm obtendo ótimos resultados. 

Cidade histórica de Tiradentes, em Minas Gerais

Tiradentes é o pólo turístico da Região de Campos das Vertentes

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Um dos produtores que resgataram o preparo artesanal é José Orlando Ferreira Júnior. Filho e neto de queijeiros, ele só começou a se dedicar à iguaria em 2012, após fazer um curso oferecido pela Empresa de  Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG). O artesão conta que, no início, teve dificuldades, mas, uma vez que dominou a técnica, não parou mais. De lá para cá, os queijos Bicas da Serra, que ele prepara na fazenda homônima, no município de Carrancas, já receberam prêmios em Minas Gerais, São Paulo e até na França.

Na Região de Campos das Vertentes, os queijos precisam de, pelo menos, 22 dias de maturação. Esse período garante que, além de sabor, o laticínio tenha perfeitas condições sanitárias para consumo. Afinal, durante a chamada cura, eventuais bactérias nocivas são naturalmente eliminadas. Porém, tal processo pode durar muito mais: no caso das iguarias preparadas por José Orlando Ferreira Júnior, ele chega a até 150 dias. 
 

Outra produtora que, cerca de 11 anos atrás, decidiu se dedicar ao resgate da técnica tricentenária de preparo foi Trindade Tarôco, do Sítio São Sebastião, em Colônia do Felizardo, no Município de São João Del Rei. A produção foi crescendo e logo precisou da ajuda de outra integrante da família: a filha Joelma Tarôco. No início, ela vendia o produto e capitaneava a administração do negócio, mas logo passou, literalmente, a colocar a mão na massa. Hoje, a família Tarôco comercializa até 40 kg de queijo artesanal por dia, o que corresponde a algo em torno de 40 unidades. 

"Quando comecei, não sabia se iria dar certo. Eu faço com muito amor", diz, orgulhosa, D. Trindade, com a segurança de quem dominou a técnica artesanal. Já Joelma destaca que a redescoberta do queijo à base de leite cru permitiu a criação de uma rota de agroturismo na região, que tem beneficiado não só os produtores diretos, mas também outros setores da economia. "A gente recebe turistas do mundo inteiro. São pessoas que gostam de uma boa gastronomia, principalmente por estarem em Minas Gerais, onde a nossa comida é maravilhosa. E o queijo é o personagem principal da nossa história", sintetiza.
 
O agroturismo também vem trazendo ótimos resultados para Marciel Ramos de Moraes, que faz o queijo Matuto no Sítio Água no Pote, no município vizinho de Prados. Ele se desdobra para conciliar a produção do laticínio com o acolhimento a turistas e visitantes e à participação em feiras e em outros eventos de divulgação. O queijeiro lembra que chegou a praticar outras atividades na propriedade rural, mas, após um início difícil, quando o produto feito com leite cru ainda não era tão valorizado, os bons resultados acabaram surgindo. "O queijo vem depois da agroecologia, da homeopatia no gado", afirma.
 

Em uma história que se repete na região, a Fazenda Fortaleza também investiu no ressurgimento da técnica artesanal, após passar anos vendendo leite unicamente para cooperativas e laticínios, que produzem laticínios pasteurizados. Para isso, trouxe um mestre queijeiro da Região da Canastra. Sem esconder o orgulho, Roberto Carlos Soares, o Robertinho, conta detalhes sobre os produtos Fazfor, feitos no local, fala sobre os prêmios que já ganhou e mostra um queijo gigantesco, que demandou cerca de 630 litros de leite. "Eu ainda não pesei esse queijo, mas ele deve ter entre 40 e 50 quilos", avalia.

O único produtor da região que já fazia queijos com leite cru antes dos estímulos da Emater e de outros artesãos é João Dutra. Referência nos municípios dos Campos das Vertentes, ele prepara o queijo Catauá na Fazenda Venda Nova, em Coronel Xavier Chaves, há cerca de 45 anos. A família se dedica ao feitio da iguaria há pelo menos 200 anos. Ao longo de oito gerações, apenas a do genitor dele exerceu outra atividade. "Meu pai era um intelectual, advogado; ele foi para Belo Horizonte e ficou lá a vida inteira. Aí, eu retomei, depois, a produção, inspirado no sistema do meu avô, pai dele, que fazia queijo coatiara", explica. 
 
Produção de Queijo Minas Artesanal (QMA) na região de Campos das Vertentes, em Minas Gerais

Iguaria atrai turistas até de outros continentes

Victor Schwaner/Divulgação

Ele compara a pasteurização a um rolo compressor, que mata tanto os microorganismos nocivos quanto os benignos, e ainda torna o sabor do produto menos intenso. "Esse queijo é um queijo que continua vivo. A microbiota dele é riquíssima", pontua. No entanto, Dutra ressalva que, para utilizar leite cru como base para a iguaria, o produtor tem a obrigação de redobrar os cuidados não apenas com a higiene, mas com todo o processo, que envolve a criação do rebanho. "Como a gente não usa antibiótico, não usa hormônios, a gente tem um leite com alto valor biológico", salienta. 

QMA no Ibitipoca


Na Região de Ibitipoca, onde o período mínimo de maturação também é de 22 dias, a queijaria visitada foi a do casal Jorge Luiz Bezerra e Elisa Almeida. Eles vieram do Rio de Janeiro para a cidade de Lima Duarte há cerca de 10 anos, em busca de uma vida mais tranquila, embora, na época, já frequentassem o local há pelo menos duas décadas. Os dois logo aprenderam as técnicas, mas tiveram que investir em várias adequações para conseguir a certificação do produto. "Esse título era uma questão de honra", diz D. Elisa.

Diante das rigorosas exigências sanitárias e também da necessidade de readequar toda a metodologia de preparo, muitos criadores de vacas acabam não se interessando pelo fornecimento de QMA. O casal estima que, no Ibitipoca, aproximadamente 11 propriedades se dedicam à iguaria artesanal. No sítio Primavera, eles confeccionam, além dessa iguaria, o queijo do reino, que é outra tradição local. E o negócio não para no preparo de queijos, já que a sede do sítio é uma bucólica pousada rural, que conta com cinco aposentos, piscina e sauna.
 
Horizonte com várias montanhas, em um dos panoramas do Parque Estadual do Ibitipoca

Entorno da Serra do Ibitipoca, que abriga parque estadual, é uma das 10 regiões produtoras de Queijo Minas Artesanal

Alexandre Carneiro/EM/D.A.Press
 
 
Tal qual outros produtores, os dois celebram, além do título de Patrimônio Imaterial da Humanidade, a legalização e a certificação, que permitiram não só a sobrevivência, mas também a valorização do QMA. Dona Elisa pontua que "68 anos (o tempo em que a venda da iguaria permaneceu proibida) são 3 gerações" e, junto com o marido, espera que o ecoturismo se potencialize ainda mais como fonte de renda e desenvolvimento para a região.

Processo de produção do queijo


A técnica de preparo do Queijo Minas Artesanal é, grosso modo, a mesma: ao leite fresco, adiciona-se coalho e o chamado pingo, um fermento natural obtido do soro do próprio leite. A partir daí, vêm as fases de coagulação, corte da coalhada, mexedura, dessoragem, enformagem, prensagem manual, salga seca e, por fim, a maturação. Nas duas últimas dessas etapas, o produtor precisa virar o queijo uma vez por dia.
 

Durante a maturação, ou simplesmente cura, os queijos descansam em prateleiras de madeira, em recintos climatizados ou arejados: nesse segundo caso, telas instaladas nas janelas e portas duplas impedem que insetos ou outros vetores contaminem os laticínios. Cada região produtora de Minas tem um tempo mínimo de maturação, estabelecido por pesquisas feitas com órgãos governamentais.
 
Embora a metodologia seja a mesma, diversos fatores fazem com que o sabor de cada queijo seja único. A raça e o tipo de alimentação do rebanho são determinantes, mas, nesse caso, os produtores têm liberdade. Alguns misturam, sem problema algum, leite de vacas de diferentes raças, enquanto outros se mantêm rigorosamente fiéis a animais com determinadas características. 
 
Produção de Queijo Minas Artesanal (QMA) na região de Campos das Vertentes, em Minas Gerais

Tempo de cura do QMA varia de acordo com a região

Victor Schwaner/Divulgação

O que todos os queijeiros fazem questão de destacar é o cuidado na lida com os bovinos e a responsabilidade com o controle de doenças veterinárias. Para vender o QMA de maneira legal, o produtor precisa ter, entre outros documentos, os certificados de livre tuberculose e brucelose, além de instalações construídas de acordo com as regras sanitárias.

Como fazer a visitação aos produtores?


Já existem empresas de turismo que oferecem visitas a fazendas produtoras de Queijo Minas Artesanal, com horário marcado e roteiro organizado. Porém, também é possível ir por conta própria. Nesse caso, entretanto, é recomendável pesquisar as propriedades de interesse e entrar em contato de maneira prévia. É que, embora algumas fazendas já ofereçam infraestrutura completa, com direito até a loja, outras mantêm operações mais enxutas: muitas vezes, o proprietário participa diretamente no preparo da iguaria, além de desempenhar outras atividades rurais. Cabe destacar que nem todos os produtores abrem as portas ao público.

Sobre a Região de Campos das Vertentes


Encravada entre as serras da Mantiqueira e do Espinhaço e banhada pelos rios Grande, das Mortes e Capivari, os Campos das Vertentes situam-se entre o Sul de Minas e a Zona da Mata. Cerca de 700 mil pessoas vivem nos 50 municípios que integram a região, dos quais os mais populosos são Barbacena, Lavras e São João del Rei; porém, o mais visitado é Tiradentes.

Sobre a Região do Ibitipoca


A região, que desenvolveu-se aos pés da serra homônima, tem cerca de 15 municípios, somente, entre os quais Lima Duarte e Andrelândia: somada, a população de todos eles não chega a 100 mil pessoas. Em 2018, além do próprio Ibitipoca, outro Parque Estadual foi criado ali: o Serra Negra da Mantiqueira, que ainda está desprovido de infraestrutura para visitação.