Vista aérea feita por drone do conjunto IAPI, no São Cristóvão -  (crédito: @estev4m/Esp. EM)

Vista aérea feita por drone do conjunto IAPI, no São Cristóvão

crédito: @estev4m/Esp. EM

O Conjunto do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), localizado na Avenida Antônio Carlos, Bairro São Cristóvão, Região Noroeste de Belo Horizonte, começou a ser construído em 13 de maio de 1944. Projetado pelo arquiteto White Lírio Martins, o empreendimento foi o primeiro conjunto habitacional vertical do Brasil.  


No dia seguinte, o Estado de Minas noticiava os primeiros passos do empreendimento que era descrito como “uma das maiores realizações para o progresso de Belo Horizonte”. Passados 80 anos do início das obras, o conjunto tombado como patrimônio cultural do município, em 2007, enfrenta o desafio de continuar sendo uma referência para a história da capital e se adaptar às necessidades de seus moradores. Entre as reclamações apresentadas por eles estão a falta de critérios para a fachada e maior acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida.

 

 

O arquiteto e professor do Centro Universitário UNA, Guilherme Maciel Araújo, afirma que a data é significativa, pois o conjunto nasce dos esforços do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários. Araújo, que também é pesquisador de patrimônio cultural, lembra que, durante a década de 1940, a entidade teve ação importante na produção de habitações. “Não apenas de toda a assistência que se dava aos trabalhadores, mas também passou a incumbir-se desse papel de produção de habitação para esses trabalhadores.”


Para o arquiteto, a inauguração do empreendimento foi um marco para a capital. “Era também a primeira experiência de habitação social desse porte na cidade. Até então se tinha pequenas vilas de casas, conjuntos de casas que visavam atender a população de baixa renda.” 

 

Fotos antigas, das décadas de 1940, que mostram a construção do conjunto IAPI, no São Cristóvão

O prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, e demais autoridades, no lançamento da pedra fundamental do IAPI, em 13 de maio de 1944

Arquivo EM - 13/5/1944

 

Segundo ele, Belo Horizonte, na década de 1940, já apresentava um déficit habitacional. “A gente já via movimentos de formação de comunidades, pequenos aglomerados também no entorno da cidade. Já demonstrava essa necessidade de uma ação mais articulada e mais assertiva do poder público. Parece que Juscelino Kubitschek, o prefeito naquele momento, acertou bastante. Tinha sensibilidade com relação a essa necessidade, de se criar habitação e, principalmente, de se criar habilitação dentro da cidade. Estamos em uma área central de Belo Horizonte, toda servida de infraestrutura e serviços públicos”, ressalta.


Um bairro dentro do bairro

Para a construção do empreendimento, o arquiteto lembra que os responsáveis tinham algumas preocupações centrais, entre elas, a redução de custos. “Até hoje, o grande problema que temos, com relação ao déficit habitacional, é reduzir os custos e garantir a qualidade. Buscavam inovações tipológicas, ou seja, a maneira de construir era baseada em inovações, além da preocupação de como organizar e criar esses conjuntos de uma maneira nova. Era difícil responder a essa demanda apenas com a produção de casas, que era o usual.”

 

 

O Conjunto IAPI da capital é composto por 928 apartamentos e abriga 5.400 moradores. O  projeto original previa a construção de 11 blocos, mas apenas nove foram feitos. “São blocos com alturas variadas porque também tem a importância da questão topográfica aqui. Eles são dispostos numa área de uso comum, com uma área central. Depois, o local recebeu a Igreja de São Cristóvão e a Escola Municipal Honorina de Barros. Em seguida, vieram a praça e as quadras.”


Araújo afirma que é importante observar a inovação urbanística que o empreendimento trouxe para a época. “Ao invés de casas com lotes, estamos falando de um conjunto que se instala em áreas públicas. Isso era uma novidade muito grande. Estamos falando de unidades que estão inseridas dentro de uma área de uso comum. Em relação aos aspectos arquitetônicos, é importante observar também que os blocos têm uma característica muito clara dessa arquitetura intitulada moderna para a época, que são essas linhas retas, esses volumes curvos, esses jogos de volumes retos e curvos que dão esse ar também modernizante dessa arquitetura.”


Condomínios independentes

Outra característica destacada pelo arquiteto é que cada um dos blocos tem um pátio interno. “Hoje, esses pátios foram modificados porque têm sua independência de gestão dos condomínios. Mas eles guardam, em essência, essa ideia do pátio interno que garante luminosidade e uma ventilação adequada. Os edifícios também são resolvidos pelas circulações verticais que são as escadas.” 


Não há elevadores no local. Nas partes internas de cada bloco ficam as escadas. “Chama atenção também a passarela que articula todos os blocos. A ideia era, tendo em vista essa ausência dos elevadores, garantir uma melhor circulação, com as pessoas podendo passar de um bloco para o outro. Facilitaria muito também a questão da acessibilidade.”


Vista do conjunto habitacional IAPI, no São Cristóvão

Vista do conjunto habitacional IAPI, no São Cristóvão

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

De acordo com ele, hoje, por questão de segurança, o acesso às passarelas é limitado. Outro ponto que chama atenção é que, para tentar reduzir custos, muitos materiais, como pisos e elementos construtivos eram produzidos no próprio local. 


Os blocos, inicialmente, foram pensados para permitir maior variedade de tipologias. Por isso, foram construídos apartamentos de um, dois e três quartos misturados em cada andar. “Assim você tinha uma diversidade muito grande de tipos de habitação. Hoje, sabemos que aqui existem apartamentos de um a quatro quartos porque houve modificações internas. Inclusive há alguns casos até de apartamentos duplex. São modificações que foram feitas há muitos anos, em função das necessidades da comunidade, ao longo dos anos.”


Lembranças 

A aposentada Geslane Said, de 78 anos, foi morar no IAPI em 1973, quando tinha cinco anos. Ela conta que o pai era industriário e trabalhava em uma mina na cidade de Mariana, na Região Central do estado. Depois, veio para a capital trabalhar em um escritório de contabilidade, no Edifício Guimarães, no Centro. 


Como industriário, ele tinha direito a ocupar um apartamento no local. Geslane diz que passar a infância no conjunto foi uma experiência muito boa. “Era um lugar muito respeitado. Tinha uma espécie de parque de diversões, com pessoas que contavam histórias para as crianças, tinham brinquedos. Era como se fosse uma escola. Os pais levavam a gente de manhã. Na hora do almoço buscavam, íamos à tarde também. Era um lugar de lazer, onde hoje está a igreja de São Cristóvão.”


Geslane Said, moradora do conjunto IAPI

Geslane Said, moradora do conjunto IAPI

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

De acordo com a aposentada, apesar das crianças se conhecerem e brincarem juntas, a mãe dela não a deixava descer sozinha para encontrar os amigos. “A gente se divertia muito em todos os sentidos.”


Ela diz que sempre gostou de morar no local. “Me mudei quando casei, mas fiquei fora por pouco tempo. Logo engravidei e tinha que ficar perto da minha mãe porque era uma gravidez de gêmeos, precisei ficar em repouso absoluto.”


Depois disso, Geslane morou em outros apartamentos no conjunto. Quando a mãe faleceu, voltou para o imóvel da família para cuidar do pai. Até hoje ela vive no IAPI. Ao longo de todos esses anos, a aposentada viu o conjunto passar por transformações. “A gente foi vendo um pouco de invasão, começou a entrar muita droga, muitas pessoas foram influenciadas por influências que não eram positivas. Teve um tempo bem bravo.”


Continuo gostando daqui

Atualmente, ela afirma que as coisas no IAPI melhoraram. “Está havendo um cuidado maior, o atual presidente da associação dos moradores tem feito um bom trabalho. E eu continuo gostando daqui do mesmo jeito”, confidencia. 


Geslane não pensa em se mudar do conjunto onde passou a maior parte da vida. “Acho que é o apego. Estou apegada demais a esse lugar. Chego lá fora, converso com uma pessoa, com outra. Não me sinto sozinha aqui. Tem muita gente boa e acolhedora. Gosto demais desse aconchego, dessa coisa interiorana”, relata.


Cinco décadas no IAPI

Carlos Alberto Pinheiro, morador do conjunto IAPI

Carlos Alberto Pinheiro, morador do conjunto IAPI

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

O presidente da Associação dos Moradores do IAPI, Carlos Alberto Pinheiro de Mendonça Júnior, mais conhecido como Juninho do IAPI, é outro que foi criado no conjunto. Ele mora no local há 50 anos. 


Em 2009, viveu sua primeira experiência à frente da entidade. “Fiquei durante seis anos. Conseguimos resolver muitas coisas, uma das grandes vitórias foi a pintura do conjunto.”

 

Saiu por um período, voltou há dois anos e fica no cargo até 2026. “A intenção de voltar é porque o IAPI estava abandonado novamente. Foram sete anos de abandono. Estamos em um trabalho muito forte para poder resgatar o que construímos naqueles últimos seis.”


 

O problema, segundo ele, é a dependência do poder público para resolver algumas questões, já que o conjunto é tombado. “Infelizmente, o poder público não ajuda muito. A gente tem que, praticamente, mendigar para conseguir as coisas. E fica triste porque o IAPI é uma cidade há 10 minutos do centro de Belo Horizonte.”

 

Na praça interna, o mato está alto. Juninho diz que a associação contratou um dos moradores para fazer a capina por medo da dengue. A insegurança no local, segundo ele, também é muito grande. “Temos uma 'cracolândia' do nosso lado. O poder público não faz nada para nos ajudar. Conseguimos um movimento de reforma da quadra e da praça, desde o ano retrasado, quando assumimos a associação.”


Ele conta que a filha, de sete anos, é a quarta geração da família a morar no local. "Meu avô foi um dos primeiros moradores aqui do conjunto. A gente tem um amor muito grande, conhece todo mundo, é um bairro diferente dos outros. É uma pequena cidadezinha. Somos maiores que 162 municípios do estado de Minas Gerais, e 80% dos moradores se conhecem.”


Patrimônio cultural 

Em 22 de agosto de 2007, o Conjunto IAPI foi tombado como patrimônio cultural de Belo Horizonte. 


“Infelizmente, muitos que passam pela Avenida Antônio Carlos não têm a menor noção da importância desse conjunto. De certa maneira, a história do conjunto se confunde com a própria história da região em que ele está inserido, que é a região da Lagoinha. Uma região que tem uma história muito bonita, mas muito esquecida e até mesmo estigmatizada por alguns aspectos negativos. O conjunto IAPI, muitas vezes, é visto como uma área degradada. Ele não está degradado”, afirma o arquiteto Guilherme Maciel Araújo. 


Segundo ele, em 2006, teve início um movimento pela proteção do espaço como um patrimônio.


 

“Sabemos o desafio de preservar o patrimônio cultural, principalmente um patrimônio dessa natureza, com alto volume de moradores, de unidades e de blocos para serem tratados, que têm as suas necessidades. É um desafio muito grande.”


Ele pontua também as transformações que aconteceram no conjunto em função de questões de segurança. “A gente percebe, por exemplo, que alguns moradores já fecharam as varandas com janelas. Hoje, praticamente 100% das varandas são fechadas. Esse fechamento é anterior ao tombamento.”


A padronização das janelas é outro ponto levantado pelos moradores. “O IAPI foi tombado sem uma definição das grades das janelas. Hoje os moradores estão proibidos de trocar as janelas, não há uma definição de qual janela pode colocar. Estamos sujeitos a multa, respondendo no Ministério Público e numa ação civil por erro do patrimônio histórico”, destaca o presidente da Associação dos Moradores do IAPI. 


Segundo ele, é comum ver janelas caindo, sem vidro. “No próprio dossiê de tombamento e de intenção de tombamento, nós já tínhamos janela de ferro, alumínio e blindex.” Júnior afirma que já se encontrou com vários secretários e nada foi definido sobre um padrão para a troca de janelas. 


Acessibilidade

Outra questão que causa transtornos aos moradores é a falta de acessibilidade do conjunto. O casal de cadeirantes Adriana Pereira, de 49 anos, e Maurício Guedes da Silva, de 55, enfrenta dificuldades para se locomover dentro do complexo habitacional. Eles moram no local há três anos, no primeiro andar de um dos blocos.

 

Adriana Pereira, moradora do IAPI, precisou fazer rampa de acesso para entrar e sair do prédio

Adriana Pereira, moradora do IAPI, precisou fazer rampa de acesso para entrar e sair do prédio

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

“Os prédios não oferecem muita acessibilidade para o cadeirante. Digo de entrar e sair mesmo do prédio. Como eu sou dona de casa, às vezes para ir ao mercado tenho dificuldade. Vamos pelo passeio, mas no final não tem uma rampa de acesso. Se passa por dentro do conjunto também lá embaixo, na saída, é calçamento”, explica Adriana. 


A dona de casa conta que sua cadeira de rodas já quebrou nesse trajeto algumas vezes. “O passeio existe, mas nem pedestre passa nele. Realmente precisa de uma reforma muito grande, principalmente lá na saída do conjunto.” Para poder entrar e sair do prédio em que mora, ela mandou fazer uma rampa de acesso e teve que arcar com os custos. 


“A cadeira já quebrou na saída do conjunto. Aí eu tenho que parar, ligo para o Maurício e ele vai lá me socorrer. Tem que trocar peças, que são caras. A rampa também tive que fazer do meu bolso porque preciso entrar e sair do apartamento.”

 

Maurício Guedes da Silva, morador do IAPI, construiu rampa para poder entrar e sair do prédio

Maurício Guedes da Silva, morador do IAPI, construiu rampa para poder entrar e sair do prédio

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

De acordo com ela, alguns moradores implicaram com a intervenção, o que a deixa chateada. "Isso me dói muito porque mexe com a minha deficiência, com o meu pessoal e o meu íntimo. Disseram que iriam me denunciar, falam que a rampa está fora do padrão. Umas pessoas falam que a rampa ficou comprida demais, mas eu faço uso de cadeira de rodas motorizada. Então, a rampa quanto menor, mais íngreme e a cadeira não sobe. Se eu tentar subir ela vai virar. Vai acontecer um acidente, vou cair e me machucar, vai prejudicar a cadeira.” 


Já o marido de Adriana, o aposentado Maurício, foi atraído para o conjunto pela possibilidade de jogar basquete. "Aprendi basquete depois que fiquei deficiente. Vim pro IAPI por causa de uma quadra de basquete que tem aqui. Saía da minha casa e vinha aqui jogar sempre. Veio a pandemia, estava tudo fechado, o único lugar que tinha aberto para jogar basquete era no IAPI. Acabamos alugando um apartamento aqui.”


O casal acabou comprando o apartamento em que mora hoje. “O IAPI tem uma história muito linda. Mas tem que ter uma evolução. A gente não pode esquecer do passado. Mas temos também que evoluir, principalmente as pessoas com deficiência. A acessibilidade é muito reduzida aqui. Espero que o Patrimônio dê uma resposta para isso e mostre que os deficientes têm o direito de ir e vir.”


Modernização do patrimônio

Para o arquiteto Guilherme Maciel Araújo, o conjunto precisa passar por uma modernização. 


“Sabemos que o patrimônio precisa atender as necessidades atuais, porque esse é um dos princípios da preservação. Não adianta preservar um patrimônio que está congelado no passado. Vamos receber algo que foi feito numa outra época, com outras demandas, com outras cabeças e outras ideias. Essa necessidade de atualização é uma realidade. Não há impedimento que se faça isso. A grande questão é como fazer.”

 

“Sabemos que o patrimônio precisa atender as necessidades atuais, porque esse é um dos princípios da preservação"

Guilherme Macie Araújo, arquiteto

 

Ele diz esperar que se encontre uma solução adequada com a finalidade do empreendimento que é moradia. “Inclusive, respeitando até mesmo o perfil, que historicamente percebemos no IAPI, de uma população idosa. E que tem, inclusive, uma longa data de permanência, está aqui há muitos anos. Precisamos achar um caminho de equilíbrio entre as necessidades atuais e as características do patrimônio que queremos preservar.”


Diretrizes para intervenções

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) informou, em nota, que a Diretoria de Patrimônio Cultural (DIPC) não oferece serviço de elaboração de projeto, mas diretrizes para intervenções em bens tombados. “No caso específico das varandas e esquadrias do Conjunto Residencial IAPI, a Diretoria fez contato com representantes do condomínio e moradores no ano de 2023, ocasião em que foi solicitada anuência para projeto de cabeamento de fibra óptica e sistema de câmeras de segurança.”


A PBH disse ainda que a DIPC “elaborou orientações técnicas gerais para intervenções nas fachadas em projeto a ser apresentado e que aguardamos.” Afirma também que o órgão tem buscado recursos para viabilizar o projeto.


“A Diretoria ressalta que projetos de intervenção em bens tombados devem ser realizados por profissional devidamente registrado do Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo (CAU). O condomínio poderá também, por meio de contratação de escritório ou profissional, apresentar à DIPC uma proposta, cabendo à Diretoria a realização de orientação aos profissionais contratados em relação às diretrizes que devem ser observadas na elaboração do projeto.”