Em um Brasil tecelado por fios de ancestralidade africana, indígena e europeia, as religiões de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda emergem como faróis de resistência cultural e espiritual. Essas tradições, nascidas do sincretismo forjado nas chamas da escravidão e da colonização, não rejeitam o calendário cristão, mas o reinterpretam através das lentes do axé – a força vital que pulsa no universo, conectando humanos, orixás e ancestrais.

Salve! Minas abraça, pelo segundo ano, a umbanda na semana santa

 Enquanto o Natal evoca o nascimento de Jesus Cristo para os cristãos, e o Ano Novo marca renovações globais, nessas religiões, essas datas se entrelaçam com rituais profundos de renovação, gratidão e harmonia cósmica. Mergulhamos nas tradições, na visão de Jesus Cristo e na espiritualidade que iluminam esses momentos, revelando como o sagrado africano dança com o cristianismo em um ritual de resiliência e amor.

O Natal: da Luz de Oxalá à essência do Axé

Exu é o orixá da comunicação. Mensageiro entre as divindades e os seres humanos. Guardião dos templos e das casas. Vigia ligado às encruzilhadas. Seu elemento é o fogo. Leva um ogó, instrumento de formato fálico com búzios, símbolo da vida. Também representado com um tridente, símbolo do poder e do universo. Algumas oferendas: mel, farinha e cachaça. Reprodução/@marcioheider
Oxumaré é o senhor da chuva e do arco-íris.Transporta a água entre o céu e a terra. Usa colar amarelo e verde. E tem como símbolo uma cobra de metal. Seu elemento é a água. Algumas oferendas: milho, acarajé, coco e ovos. Reprodução/@marcioheider
Ossaim é o Deus das folhas e ervas medicinais. Tem as matas como elemento.Usa um colar branco e verde. Seu símbolo é uma lança com pássaros e feixe de folhas. Algumas oferendas: feijão, arroz, milho vermelho e farofa Divulgação
Nanã é a Deusa da Lama e do fundo dos rios, a orixá mais velha. Regente da razão humana. Seu elemento é a terra. Carrega um ibiri, um cetro de palha com búzios. Algumas oferendas: milho, arroz, feijão, mel e dendê Divulgação
Oxóssi é o Deus da caça. As florestas são o seu elemento. Padroeiro da sabedoria. Retratado com rabo de cavalo e chifre de boi. Algumas oferendas: peixe e milho. Reproducao/Jerri D"Oxossi
O Dia de São Jorge é 23 de abril. E , na Umbanda, ele é Ogum, o orixá da guerra e da tecnologia. Tem a terra como elemento. Usa uma espada. E recebe algumas oferendas: farofa, feijão, inhame e aguardente. Reprodução
Iansã é a deusa dos ventos e das tempestades. Controla os raios e carrega uma espada. E tem o fogo como elemento. Algumas oferendas: milho, arroz, feijão e acarajé. Site Terreiro de Umbanda
Xangô é o orixá da justiça. Deus do trovão. O fogo é seu elemento. Carrega um machado de duas pontas. Algumas oferendas: velas brancas, vermelhas ou marrons. Cerveja escura e vinho. Quiabo, camarão e dendê. Rosane Soares/Flickr
Oxum é o orixá do amor e da fraternidade. A água é seu elemento. Tem como símbolo o abebê, um leque espelhado. Algumas oferendas: essências de rosa, champanhe, peixes de água doce e velas brancas, azuis ou amarelas. Stella Castro/Flickr
Iemanjá é a deusa dos mares e oceanos. Tem a água como elemento. Mãe dos orixás, símbolo da maternidade. Tem eapada, leque e espelho. Algumas oferendas: feijoada e inhame. Wikipedia Commons
Oxalá é o pai, que espalha a fé pelo mundo. Representado como Oxaguiã (jovem) e Oxulafã (velho). Usa um oparoxó (cajado com adornos). Seu elemento é o ar. Recebe, entre outras oferendas, velas brancas, xinxim de galinha, peixes de água doce. Olivio Cerqueira
Originalmente, existem mais de 400 orixás. Atualmente 12 deles são cultuados com bastante intensidade no dia a dia. Tereza Torres/Setur
Segundo a tradição, diferentemente de Olodumaré, os orixás gostam de receber oferendas. Alimentos, bebidas, velas, flores, pratos preparados conforme a "preferência" do orixá. Amanda/FLICKR
A mitologia iorubá diz que Olodumaré (ou Olorum) criou o mundo e deu aos orixás a tarefa de governá-lo. Como Deus Supremo, ele não aceita oferendas. Wikimedia Commons
O Candomblé usa cantos em línguas africanas (iorubá, quimbundo, etc.), acompanhados de atabaques A Umbanda usa pontos cantados em português e, às vezes, instrumentos mais simples, como palmas e atabaques. Pai Toinho - FLICKR
"Umbanda" significa "curandeiro" no idioma Kimbundo, uma das línguas de Angola (onde o português é oficial, mas grande parte da população mantém os idiomas bantos). Já a palavra candomblé, no quimbundo e no quicongo, faladas em Angola e no Congo, significa "dança com atabaques" ou "ritual religioso com música e dança". Wikimedia Commons
O Dia Nacional da Umbanda é festejado anualmente em 15 de novembro, desde 2012, quando a data foi instituída pela Lei Federal nº 12.644. O 15 de novembro foi escolhido por ser o dia em que o espírito do caboclo das Sete Encruzilhadas, em 1908, teria se manifestado no jovem médium Zélio Fernandino de Morais, anunciando que uma nova religião deveria ser fundada no Brasil. Adilscius1234/Wikimedia Commons
Na Umbanda o culto é mais flexível e sincrético. As entidades que se manifestam são espíritos como caboclos, pretos-velhos e crianças. Os orixás também são cultuados, mas geralmente de forma menos estruturada do que no Candomblé. Toninho Oliveira/ Prefeitura de Campinas
O Candomblé possui uma estrutura mais rígida e tradicional, com ritos específicos para iniciação, oferendas, cantos e danças para cada orixá. O culto é feito em terreiros, onde os orixás se manifestam nos médiuns por meio da incorporação. Toluaye - wikimedia commons
Os adeptos de ambas cultuam orixás como deuses que fazem a intermediação entre o Deus Supremo (Olodumaré) e os seres humanos. Nesta galeria, você vai conhecer os principais orixás que são cultuados pelos devotos. Tânia Rêgo/Agência Brasil
Já a umbanda é considerada uma religião brasileira que mistura elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e de ritos africanos e indígenas. Guilherme Lopes/FLICKR
O Candomblé é uma religião que tem raízes diretas nas tradições africanas, especialmente iorubá, fon e bantu. Os rituais mantêm muitas características originais das religiões africanas. Yanajin33 wikimedia commons

Para muitos adeptos do Candomblé, o Natal não é uma data litúrgica essencial, mas um espaço de pausa e convívio familiar, livre de rituais religiosos específicos. Essa religião, mais purista em suas raízes iorubás, nagôs e bantus, separa o sagrado africano das celebrações cristãs, mantendo "cada um no seu quadrado" – ou seja, sem misturas diretas.

No entanto, o período natalino é visto como um tempo de "axé-overload", uma sobrecarga de energia vital que inspira alegria, polidez e boa vontade. Praticantes podem erguer uma árvore de Natal para honrar memórias ancestrais, como a avó falecida, ou preparar quitutes como biscoitos e couve para prosperidade, transformando o cotidiano em um altar de afeto e cultura.



Na Umbanda, mais sincretista, o Natal ganha contornos mais próximos do cristianismo. Fundada em 1908 por Zélio Fernandino de Moraes, essa religião brasileira mescla elementos africanos, indígenas, espíritas e católicos, permitindo que seus fiéis se vejam como cristãos em certos contextos. Aqui no Brasil, o nascimento de Jesus é celebrado com reflexões sobre caridade e amor, inspiradas na figura de um mestre espiritual elevado.

Mas o coração dessa visão pulsa na sincretização de Jesus com Oxalá, o orixá criador, senhor da paz e da luz branca. Oxalá não é Jesus, mas suas qualidades se espelham: ambos representam criação, pureza e redenção. Em alguns terreiros, Jesus é visto como uma encarnação de Oxalá, o "Cristo-Oxalá", chefe supremo da Umbanda. Essa fusão, nascida da necessidade histórica de camuflar práticas africanas sob santos católicos, reflete uma espiritualidade profunda: a capacidade de transcender dogmas, unindo o divino em formas que curam feridas coloniais.

Espiritualmente, o Natal nessas religiões convida a uma meditação sobre a luz interior. Oxalá, sincretizado com Jesus, simboliza a criação do mundo e a harmonia universal – uma lição de que o axé flui em todos, independentemente de rótulos. É um chamado para honrar ancestrais, dançar com os orixás e espalhar bondade, transformando o fim de ano em um portal de renovação pessoal.



O Ano Novo: oferendas ao mar e renovação cíclica

Ritual da Umbanda com oferendas para a Iemanjá faz parte das celebrações do Réveillon

Ronaldo SCHEMIDT/AFP

Se o Natal é introspectivo, o Ano Novo explode em cores e rituais vibrantes, influenciando até as celebrações seculares do Brasil. No Candomblé, a virada do ano marca um ciclo de renovação vital, guiado por consultas aos búzios – conchas que revelam orientações dos orixás. Pode ser tempo de iniciações, obrigações rituais ou imersão religiosa, preparando o espírito para novos desafios. O dia da semana de 1º de janeiro pode indicar orixás regentes, como Xangô e Oyá em uma quarta-feira, mas o foco é na ancestralidade e na energia cósmica.

Na Umbanda, as tradições se entrelaçam com o folclore nacional, especialmente no culto a Iemanjá, a rainha do mar. Desde os anos 1950, fiéis se reúnem em praias como Copacabana para oferendas: flores brancas jogadas ao mar, pulos sobre sete ondas (simbolizando as sete linhas da Umbanda) e garrafas de champanhe estouradas em homenagem à "Mãe das Águas".

Vestir branco evoca a paz de Oxalá, enquanto o amarelo atrai a prosperidade de Oxum.  Esses rituais, herdados de religiões africanas, se popularizaram, tornando o Réveillon brasileiro um espetáculo de fé coletiva.

Jesus Cristo, nessa equação, permanece como inspiração de amor universal, mas o foco espiritual é na renovação cíclica: o mar como útero cósmico, lavando o velho para dar espaço ao novo. É uma espiritualidade que ensina resiliência – assim como os escravizados africanos adaptaram suas crenças para sobreviver, hoje esses rituais celebram a vitória da vida sobre a opressão.

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A espiritualidade que une mundos

Nas religiões de matriz africana, Natal e Ano Novo transcendem datas: são portais para o axé, onde Jesus e Oxalá coexistem em um sincretismo que cura divisões. Essa espiritualidade, profunda e criativa, nos lembra que a fé é fluida como o mar de Iemanjá – capaz de abraçar contradições, honrar ancestrais e forjar futuros luminosos. Que o axé nos guie, saravá!

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