SENSIBILIDADE

Cego desde os 4 anos, MC se destaca em batalhas de hip hop

Jovem de 23 anos 'renasceu das cinzas' e passou a inspirar outras pessoas a não desistirem dos seus sonhos

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Cego desde os 4 anos por causa de um câncer na retina, Kaique Wesley, mais conhecido como Ike MC, vem se destacando nas batalhas de hip hop em Belo Horizonte desde o início de 2024. O jovem encontrou na rima uma forma de superar barreiras e desafiar estigmas. Hoje, aos 23 anos, o menino que “renasceu das cinzas” soma dezenas de títulos e inspira outras pessoas a não desistirem dos seus sonhos.

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A paixão pelo rap surgiu cedo. Aos 13 anos, aprendeu a rimar com o amigo Novak MC, que o apresentou ao freestyle. Durante anos, rimava apenas em rodas de amigos, mas sem coragem de se apresentar oficialmente. O empurrão veio do amigo, que no início de 2024 pediu ao Erick Moura organizador da Batalha Clandestina 031, que acontece aos domingos no Viaduto Santa Tereza, no Bairro Floresta, Região Leste da capital, uma chance para que Kaique mostrasse seu talento.

“Foi uma sensação incrível, apesar de ser um pouco assustadora também. Era como entrar num estádio, as pessoas não sabiam o que esperar de mim, mas eu sabia muito bem o que deveria entregar”, relembra Kaique.


A partir daí, Ike não parou: em quase um ano e meio venceu duas vezes o regional de BH, acumulou cerca de 60 títulos e chegou a ser vice-campeão na Batalha da Norte em São Paulo, uma das maiores do país.

"As pessoas passaram a me tratar de uma forma diferente, um respeito a mais, um reconhecimento. Eu já não era mais apenas um menino cego, eu era o cara que amassava nas batalhas, o verdadeiro ‘Demolidor da rima’. E, financeiramente, as coisas começaram a mudar muito também, passei a ganhar dinheiro com as batalhas, complementando a renda em casa e podendo pagar os custos de transporte”, conta.

O freestyle trouxe para Kaique algo que nenhuma outra modalidade poderia dar: a possibilidade um cego pode bater de frente com os oponentes que não possuem deficiência, podendo competir de igual para a igual.

Como forma de expressão, encontrou no hip hop uma maneira de lutar pelas minorias, resistir e afrontar o sistema. “Eu precisava lutar pelas pessoas com deficiência, usando a minha voz e os meus versos através do freestyle. Muito mais do que apenas a competição, é uma forma de poder conscientizar as pessoas sobre como é o cotidiano de uma pessoa deficiente e poder mostrar que também temos uma vida normal como qualquer um”, explica o MC.

Além das rimas

Fora das batalhas, o jovem tímido e com dificuldades na fala leva uma vida intensa que foge estereótipos. É estudante de Direito na UFMG, judoca, leitor assíduo, apaixonado por jogar RPG com os amigos e amante da cultura geek. Essa bagagem cultural segundo ele, traz um diferencial em suas rimas.

"As ideias para as minhas respostas vêm do que consumo no dia a dia, os estudos são muito importantes para ter conhecimento, que é um dos principais elementos da cultura hip hop. Já a cultura pop, é para me comunicar com as pessoas no geral, que se identificam com determinados temas”, explica.

Seu nome artístico surgiu da sua paixão pelo anime e carrega simbolismo. Inspirado no personagem Ikki de Fênix, dos Cavaleiros do Zodíaco, famoso por sempre renascer das próprias cinzas. A escrita do nome também guarda um detalhe especial: em braile, “IKE” pode ser lido da mesma forma de frente para trás. Para ele, isso simboliza resiliência.

Inspirações

Seus ídolos também refletem essa diversidade, desde artistas brasileiros a internacionais. Kaique se inspira no cenário brasileiro em César MC, Bryan Pinto Bpo, Novak, Lorran e Drizzy. Já fora do país, o jovem é fã de nomes como Stevie Wonder, Ray Charles e Beethoven.

“Todos eles revolucionaram a música de alguma forma, mesmo com suas limitações. Mas o principal de todos é o Drizzy que é de BH também, vice-campeão nacional em 2017”, conta o MC.

Como seus ídolos o motivam e influenciam, Kaique quer abrir portas e ser inspiração para a nova geração. “Acredito que eu possa abrir portas para outros deficientes, passar por complicações que eles não precisarão passar, tentar deixar as coisas o mais leves possíveis para quando eles vierem. Fazer o papel de um mentor mesmo, dando dicas, conselhos, apoio moral e emocional".

Sonhos e futuro

Com uma carreira em ascensão, Kaique sonha um dia poder viver das batalhas de rima. “Quero ser convidado para integrar competições profissionais. Ser campeão nacional, participar de mais batalhas grandes de outros estados”.

Em breve, Kaique vai lançar sua primeira música "Magia", com uma pegada romântica e nerd, em parceria com sua prima Lara Aranches Fonseca, mais conhecida como Larita, que é rapper, poeta e produtora cultural.

Além da música, ele sonha em construir uma carreira no Direito para ajudar pessoas de baixa renda. “Quero prestar um bom concurso, para poder ajudar as pessoas da melhor maneira possível, prestando apoio jurídico e lutando pelas classes menos favorecidas”.

Família que caminha junto

A relação de Iken com os pais é marcada por carinho, companheirismo e muito orgulho. Sua mãe, Flávia Consuelo Ferreira do Nascimento, professora de apoio a pessoas com deficiência, enfrenta uma rotina puxada com dois turnos de trabalho. Mesmo com a correria, ela acompanha o filho pela internet e, quando consegue, faz questão de estar presente nas batalhas. “Ela me coloca como estrela em qualquer lugar, sempre dá um jeito de contar para todo mundo que sou estudante de Direito e MC”, comenta Iken, rindo.

Já o pai, Wesley Ronaldo Nascimento, é descrito pelo filho como “meu melhor amigo”. Mesmo trabalhando à noite, arruma tempo para levá-lo às batalhas e faz questão de compartilhar os vídeos nas redes sociais. "No início eu não sabia muito bem como funciona as batalhas. Mas, com o tempo, fomos entendendo e é muito bacana, emocionante de ver. Ele tem nosso apoio total, levo blusa, tô sempre com ele quando dá”, conta o pai orgulhoso.

Ao relembrar momentos marcantes, Wesley cita a viagem ao Rio de Janeiro antes de Iken perder a visão. "Quando os médicos contaram que ele perderia a visão, decidimos ele conhecer a praia, andar de barco no alto-mar e ver os golfinhos. Foi uma alegria total, emocionante demais”, conta.

Nem sempre, Iken conseguiu compartilhar tudo com os pais. Durante um período mais recluso, preferiu guardar para si o que estava vivendo. “Na época meus pais não sabiam muito o que estava acontecendo. Não cheguei a comentar com eles o que estava passando. Não queria incomodar, tinha medo de acabar sendo um fardo para ele, já que praticamente trabalharem para manter a casa".

Laço de irmãos

Se a caminhada nas batalhas é marcada por desafios, ela também é feita de laços fortes. Um dos mais importantes é com a prima Larita. Com alguns amigos, fundaram juntos em 2024 a Batalha da Hokage, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

“Criamos a Hokage para ser um espaço de referência, de entretenimento, lazer e cultura, num local onde existe uma escassez muito grande de cultura num geral. Além se ser um espaço de inclusão, porque a maioria das batalhas a gente não percebia a presença de mulheres, pessoas PCD'S, LGBT”, conta a rapper.

Para Larita, o primo é um irmão mais velho. “Sempre sonhei em ter um irmão homem. O hip hop me deu isso. A gente enfrenta juntos as dificuldades do movimento, seja o machismo que eu vivo como mulher e LGBT, seja o preconceito que ele enfrenta como MC com deficiência”.

A parceria já rendeu momentos inesquecíveis, como quando subiram no palco no palco do rapper mineiro, Djonga. “Foi um dos dias mais emocionantes da minha vida. Eu sempre fui fã do Djonga, e só cheguei lá porque o Ike me puxou junto. Mas ele sempre lembra que só chegou porque eu estava ao lado dele”.


Larita destaca a representatividade do primo: “Acho que às vezes ele nem tem noção da magnitude da imagem dele. Ike mostra que uma pessoa com deficiência pode dominar o microfone com firmeza e inteligência.”

Ike também reforça a conexão com sua prima. "Sempre fomos da mesma família, mas não tínhamos proximidade, antes do vínculo com o hip hop. Ela sempre se dispõe a me acompanhar nos compromissos mais importantes de batalhas, chegando a desmarcar os próprios, só para não me deixar sem companhia."

Praça Sete como vitrine

Além da Hokage, Ike se firmou também na Batalha da Praça Sete, no coração da capital mineira. Organizada por Diego Evandro, mais conhecido como Dieguin D7, as Batalhas da P7 acontecem toda quinta-feira há quatro anos, e se tornou ponto de encontro de MCs de toda a cidade.

Foi ali que Ike ganhou visibilidade e apoio. “O hip hop não é só música, é respeito e humanidade. Ike representa isso. Ele mostra que não importa sua condição, mas o que você tem a transmitir. A Batalha da P7 é para todos. Qualquer pessoa é bem-vinda, se você quer participar, sabe rimar, é só chegar, mas sempre com respeito”, destaca Dieguin.

Para Ike, a Praça Sete foi fundamental. “Abriu muitas portas. Ali conheci pessoas que me deram novas oportunidades e que acreditaram no meu talento. Foi um divisor de águas na minha trajetória.”

Preconceitos e resistência

Apesar de gostar de fazer referências sobre a sua cegueira quando está rimando, mencionando algumas perspectivas e contando alguns aspectos do que viveu, Kaique tem reduzido entrar no assunto. O jovem relata que durante as batalhas, alguns adversários o acusam de usar a cegueira como vantagem.

“Alguns dizem que só ganho porque falo da deficiência. Não tem como eu ganhar apenas falando de cegueira. É necessário reconhecer que meus versos não se resumem a apenas isso, se não, provavelmente eu não conseguiria chegar tão longe quanto estou agora", rebate.

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Kaique encara as provocações como combustível. “Quando entro para rimar, entendo que sou como um jogador entrando em campo, ou como um lutador entrando no octógono. Apenas penso que preciso dar o meu melhor, transmitindo energia e passando conhecimento. Quando as pessoas gritam para meus versos, é como se eu tivesse aplicado um nocaute ou feito um gol, uma sensação indescritível, uma adrenalina viciante.”

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