Kelton Bless é artista independente, formado em Letras e, atualmente, freelancer em busca de emprego fixo -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Kelton Bless é artista independente, formado em Letras e, atualmente, freelancer em busca de emprego fixo

crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press

Cerca de 30 mil pessoas transgênero e travestis estão em busca de emprego formal no Brasil, das quais quase 40% têm ensino superior no currículo. É o que relata Maite Schneider, uma das co-fundadoras da TransEmpregos, plataforma que conecta este público a diversas empresas no país, oferecendo vagas afirmativas, capacitações e programas exclusivos.

 

De acordo com a empresária, somente em 2023, 1.040 profissionais foram contratados através da TransEmpregos, enquanto o número de empresas parceiras no mesmo ano foi de 2.523. Em 2022, foram 1.113 pessoas empregadas e 2.202 empresas parceiras.

 

 

“O número de vagas caiu porque as empresas estão tendo outros lugares para divulgar, o que é uma coisa boa, porque não é para ficar limitado ao nosso serviço. E a gente vê esses dados crescendo bastante, mas ainda é muito pouco perto do número de currículos que a gente tem”, afirma.

 

Interseccionalidade

 

No Brasil, um país que possui cerca de 1,9% da população adulta brasileira (aproximadamente 4 milhões de pessoas) transgênero e não binária – segundo levantamento feito pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp) –, a busca por um emprego formal sendo uma pessoa trans ou travesti ainda é dificultada pelo preconceito – o que aumenta, por exemplo, quando considerada a interseccionalidade de raça, gênero e deficiência.

 

“Vemos que as contratações ainda são muito higienistas. Por exemplo, apesar de termos muitas pessoas com as mesmas experiências e qualificações se candidatando para as mesmas vagas, um homem trans branco vai ser muito mais facilmente contratado que uma mulher trans; ou uma pessoa trans negra. Se for uma pessoa negra, periférica e com deficiência, não consigo nem colocar nessas empresas parceiras da TransEmpregos. A gente sabe que quanto mais marcadores fora do circuito, maior será a dificuldade de inserção dessa pessoa no mercado de trabalho”, explica Maitê.

 

Anya Costa, de 23 anos, diz que ser uma travesti negra limita a conquista de espaços no mercado de trabalho. Atualmente TARM (Técnico Auxiliar de Regulação Médica) no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e trabalhadora sexual, ela conta que, durante o período em que esteve desempregada, foi rejeitada por diversas empresas – mesmo tendo a capacitação necessária – enquanto via colegas homens cisgênero brancos conseguindo emprego na mesma área com muito mais facilidade.

 

“Eu sou competente, eu sou inteligente, tive uma vida um pouco diferenciada com acesso a uma educação de qualidade, aprendo as coisas rápido. Mas por algum motivo, sempre me diziam ‘não’”, lembra ela.

 

Sobre os processos seletivos, Maite também explica que eles costumam ser mais – ativamente – complicados para as pessoas trans e travestis.

 

“Mesmo nas vagas de ações afirmativas, eles chegam a ser de duas a três vezes mais demorados do que para a contratação de uma pessoa cisgênero por conta de inseguranças, por precisar passar por muito mais gestores para, aí, ter a certeza dessa contratação”, conta.

 

E Anya viveu isso na pele: “Dia sim, e dia também, eu fazia entrevistas, daquelas com várias etapas, e sempre na última fase, com o gestor mais alto, eu nunca passava e me ligavam para dizer que eu não tinha o perfil da empresa. Eu sempre bati nesse muro, e mesmo não podendo afirmar com certeza que estava sofrendo um preconceito – porque pode ter qualquer outra explicação –, eu estava fazendo processos seletivos quase que diariamente tendo as qualificações necessárias. Então, honestamente, eu só consigo achar que foi por preconceito”, comenta ela.

 

Anya é uma travesti negra de cabelos compridos e ondulados. Ela usa uma camiseta cinza e cruza os braços para a foto

Anya Costa é TARM no SAMU e trabalhadora sexual

Túlio Santos/EM/D.A Press

Políticas de Diversidade nas empresas

 

Mesmo com a conquista de vagas, a permanência nos empregos costuma ser um problema. É o que conta Kelton Bless, artista plástico, formado em Letras pela Unifal. Ele já teve alguns empregos em áreas diversas, mas hoje está desempregado e trabalha com freelances de garçom e cozinheiro, além de vender quadros para complementar a renda.

 

“Quando cheguei em Belo Horizonte, consegui empregos de call center, sempre próximo aos meses de visibilidade trans ou do orgulho LGBTQIA+, quando as empresas se mostram parceiras da causa. Eu sempre ganhei prêmios de desempenho, mas é sempre a mesma coisa: quando acaba o período de experiência, eles mandam quase todos os contratados embora, sem explicação ou motivo óbvio. Aí acabo nesse ciclo de subempregos, mesmo com cursos, qualificação e aptidão profissional”, afirma ele.

 

“Mesmo empresas que se dizem aliadas, é que elas pensam pouco na permanência de pessoas LGBTQIA+. As empresas ainda precisam se adequar a essas políticas voltadas para as pessoas trans. Por exemplo, a questão do uso do banheiro de acordo com a minha identidade de gênero já foi um problema para pessoas cisgênero; meu nome social já foi muito desrespeitado”, complementa.

 

Muitas pessoas trans e travestis relatam que é muito comum que empresas e seus funcionários não respeitem suas identidades de gênero e suas necessidades.

 

“Um dos maiores desafios no mercado de trabalho é ser respeitada. Tudo o que é básico de respeito, como o nome, é negado para a gente. É muito comum ser chamado pelo jeito que as pessoas querem, ou por um jeito que elas sabem que vai incomodar de propósito”, aponta Anya.

 

“Sempre tive dificuldade de me sentir segura no ambiente empresarial. Precisava transitar da minha casa ao escritório, pegar ônibus. São exemplos cotidianos, mas muitas vezes eu sou a única pessoa trans no transporte ou até mesmo na empresa, e só isso dá um grande medo. Precisamos ter uma cabeça muito boa [para lidar com isso]”, acrescenta Morena Lovateli, de 27 anos, acompanhante do Fatal Model e estudante de Jornalismo Digital.

 

Para Daniela Sagaz, líder de Diversidade, Equidade e Inclusão na Mondelez Brasil, muitas empresas chegam com discursos inclusivos durante a atração de talentos, mas no cotidiano não seguem os mesmos valores.

 

“Às vezes, a Diversidade, Equidade e Inclusão são trabalhadas como uma estratégia de negócio que está na moda e que é legal. Nesses casos, sem objetivos factíveis, não se entende quais as reais necessidades de retenção dessas pessoas. Mas de nada adianta falarmos de ações diversas para atração dessas pessoas se não focarmos no desenvolvimento e na retenção delas”, explica ela.

 

A Mondelez é uma das empresas parceiras da TransEmpregos e tem cerca de 2,3% de pessoas trans em seu quadro de funcionários. A empresa também está associada a instituições como Bicha da Justiça, Casa de Acolhimento João Nery; Grupo Dignidade, Aliança Nacional LGBTI, e dão capacitações/aconselhamentos sobre como se portar em entrevista de emprego, como montar um bom currículo nessas instituições de tempos em tempos.

 

Foi através da TransEmpregos que Natalia Ramos, de 26 anos, conseguiu seu estágio no setor jurídico. Estudante de Direito, ela já chegou a trancar o curso por não ter o nome retificado em cartório e, futuramente – quando voltou a estudar já com os documentos atualizados –, a ficar reclusa em outros estágios por medo de perder o emprego ou ser vítima de violência caso descobrissem que ela é uma pessoa transgênero.

 

Quando conseguiu a vaga atual – onde já está há pouco mais de um ano –, foi tão bem-recebida que, hoje, tem orgulho de falar sobre sua própria identidade.

 

“Recebi a proposta de um homem trans que trabalha no RH. Ele entrou em contato comigo para me tranquilizar, falar que estava tudo bem e que ele tinha me encontrado exatamente numa plataforma de Diversidade. Só assim consegui me sentir tranquila e, mesmo na minha primeira apresentação, coloquei uma bandeira trans no slide”, conta ela.

 

Natalia também realizou a terapia hormonal pelo convênio do trabalho e pretende, ainda este ano, fazer a cirurgia de afirmação de gênero – tudo 100% subsidiado pela empresa.

 


Para ela, um ambiente de trabalho acolhedor também foi motivação para que ela continuasse no curso com objetivos mais concretos.

 

“Isso me fez ter mais vontade de falar sobre isso aqui dentro [da empresa] e fora também. Acho que ter entrado no Direito, de início, foi exatamente por isso: conseguir ter uma voz maior no mercado de trabalho e conseguir ajudar outras pessoas. Agora, tanto aqui na empresa quanto na faculdade, vem sendo uma experiência bem melhor. Estou me sentindo mais tranquila em ser quem eu sou, e não sou só a Natalia pessoa trans, mas a Natalia profissional”, explica.

 

Caminhos alternativos

 

Morena é uma mulher trans branca de cabelos longos, pretos e ondulados. Ela usa uma camisa branca de manga longa e uma saia rosa xadrez

Morena Lovateli é acompanhante do Fatal Model e estudante de Jornalismo Digital

Arquivo Pessoal

Mesmo com muito estudo, qualificação e vontade de se inserir no mercado de trabalho convencional, os obstáculos fazem com que algumas pessoas trans e travestis acabem seguindo caminhos alternativos – o que não deixa de ser um trabalho digno.

 

Morena Lovateli, por exemplo, largou seu trabalho no escritório por medo e desconforto após sua transição, quando passou a perceber que colegas de trabalho já não queriam se sentar ao seu lado; faziam comentários pelas suas costas; e a assediaram.

 

“Eu trabalhava numa empresa em que me portava como menino, porque acreditava que só assim conseguiria trabalhar. Em casa, ditavam como me vestir, como usar o cabelo, mas eu sempre tive características femininas. Quando comecei minha transição, me deram 15 dias de férias e, nesse tempo, fui atrás de uma lace, comprei roupas femininas e voltei quem sou: mulher. Mas comecei a sentir a diferença”, conta.

 

Mesmo com o respeito de seus chefes – chegaram a perguntar qual banheiro ela preferia usar –, ela se sentia sufocada e desrespeitada por alguns de seus colegas de trabalho. Chegou a procurar outros empregos no mercado convencional, mas não conseguiu se manter por muito tempo. Em busca de algo que pagasse suas contas, ela conversou com uma amiga que já trabalhava no mercado adulto e resolveu tentar se tornar acompanhante, apesar dos receios por conta da segurança – e se encontrou.

 

“Estava em busca de alguma forma de sobreviver e pagar minhas contas. No meio disso, eu já usava o Tinder e recebia muitas propostas casuais. As pessoas tinham uma certa curiosidade sexual e vi nisso uma forma de monetização. Encontrei o Fatal Model e tive a oportunidade de crescer. Comecei a fazer anúncios, vender experiências boas, e entendi que ser acompanhante é uma profissão digna e de respeito. Consegui montar a marca Morena Lovatelli”, afirma ela.

 

“Hoje em dia, estou super satisfeita com o meu trabalho, porque foi a minha profissão que me fez realizar muitos sonhos. Para o futuro, ainda me vejo como acompanhante e quero trabalhar no ramo por muitos anos, sempre melhorando com especializações. Também quero estar lutando pelos nossos direitos. levar a informação correta para o público e derrubar todos os estigmas de marginalização que sofremos”, completa.

 

Já Anya, que trancou o curso de Farmácia na UFMG para poder se dedicar ao emprego e a conseguir sobreviver, conta que vende fotos na internet para complementar a renda e, atualmente, trata este trabalho como hobbie.

 

“Eu venho de uma família pobre, de baixa renda. Hoje, moro com meu namorado e a nossa renda é minha e dele, então meu trabalho sexual é mais um complemento para pagarmos nossas contas e comprar algumas coisas. O mercado é cruel e vai exigir resiliência, capacitação, rede de apoio. Essas coisas e entender a situação do país que a gente vive são essenciais para pessoas trans que estão buscando se colocar no mercado de trabalho. E se você precisa se sujeitar ao trabalho sexual, você não é menos por isso”, conta ela.

 

Para ela, é importante que as pessoas entendam que, para além do trabalho que realizam, pessoas trans e travestis têm suas individualidades e devem ser valorizadas por elas.

 

“Consigo ser uma grande porta-voz nos lugares que vou. Consigo mostrar para as pessoas que uma travesti não é só uma prostituta. E não que travesti como prostituta seja um problema por si só. É um problema no sentido de que muitas dessas meninas estão nesse trabalho porque não têm outras oportunidades. Eu quero mostrar que eu posso ser travesti, eu posso ser prostituta, se eu quiser ou não, se eu precisar ou não, mas eu sou mais que isso: sou uma amiga, sou uma colega de trabalho, sou uma pessoa competente e uma pessoa carinhosa”, completa ela.

Futuro

Maite Schneider tem muita esperança em relação ao futuro da população trans e travesti no mercado de trabalho. Para ela, o sonho da TransEmpregos é que a plataforma venha a falir o mais breve possível.

 

“Infelizmente, a TransEmpregos tem uma importância que é meio vergonhosa, porque as pessoas deveriam ser valorizadas pelo que elas são, pelo que elas têm e pelo que elas podem entregar. É um caminho necessário que espero que um dia seja uma página virada da nossa história que a gente lembre com vergonha, mas que foi uma passagem para que a gente se torne mais humanos. É importante para essas pessoas que são contratadas; para que haja uma mudança de mindset e naturalizar algo que deveria ser natural”, diz a empresária.

 

“Queremos que o projeto não seja mais necessário. Queremos que as pessoas sejam contratadas para além das suas especificidades, mas tendo suas especificidades respeitadas”, complementa.

 

Para aquelas pessoas que querem se inserir no mercado de trabalho, a recomendação principal é o estudo e a qualificação.

 

“A capacitação, querendo ou não, é muito importante. Sempre aceite as oportunidades que lhe forem oferecidas para capacitação, porque é a melhor porta de entrada para o mercado de trabalho. O mercado privado pode ser muito cruel com a gente e a parte mais difícil é abrir a porta, principalmente para pessoas trans, que precisam provar sua competência muito mais do que as outras pessoas. Com ela aberta, fica mais fácil”, aconselha Anya.

 

“Busquem ONGs e plataformas que facilitem a entrada de pessoas trans no mercado de trabalho, como a TransEmpregos. Sem elas, é quase impossível entrar no mercado de trabalho, porque a gente sempre tem que correr mais rápido para chegar no mesmo lugar”, acrescenta ela.

 

“O conselho que eu dou para as pessoas trans é procurar sites de trans aliados, como a TransEmpregos, Educa Transforma e outros que temos hoje, além de não desistir, fazer cursos de formação. Há muitos cursos gratuitos para pessoas LGBTQIA+ disponíveis na internet, às vezes algumas prefeituras também disponibilizam. Em BH, temos o Centro de Referência LGBT, as casas de Direitos Humanos em algumas cidades de Minas, que ajudam nessas questões, principalmente se for o primeiro emprego”, afirma Kelton.

 

Há, também, a recomendação de não desistir, mas também não aceitar permanecer onde não se é respeitado.

 

“Não tenham medo de tentar. Acho que chega uma hora que a gente fica receoso de ter tanta negativa, tanta situação desconfortável e, às vezes, a gente acaba tendo um pouco de desânimo, mas não desista. É importante sempre tentar, mas não aceitar ser diminuído e entender que não é pelo fato de você ser uma pessoa trans que você tem que aceitar qualquer situação, porque além de tudo, você também é um profissional”, diz Natalia.

 

“O conselho que eu dou para as mulheres trans e travestis que estão tentando adentrar no mercado de trabalho é que, primeiro, procurem os seus direitos. E um dos poucos que a gente tem é a retificação de nome e gênero, criada em 2018. Além disso, deixe de ligar para a opinião dos outros. Eu sei que é difícil, porque a gente não consegue se enxergar dentro da sociedade. E, por fim, busque abrir novos caminhos e oportunidades na sua vida. Faça tudo com calma e paciência, não atropele os processos”, finaliza Morena.