De terças às quintas-feiras, Lorrayne de Jesus e Willianne de Oliveira Santos tentam encaixar em suas rotinas algumas visitas a um centro de convivência LGBTQIAP+ localizado na Região do Barreiro, em Belo Horizonte. Apesar das dificuldades de sair do hipercentro da cidade, elas fazem questão de estarem presentes nas diversas atividades oferecidas pela Akasulo, e enfatizam: “é pesado, mas a gente vem, porque a gente gosta”.
Inaugurada em janeiro deste ano, a Akasulo foi construída para ser um espaço de conforto para a população LGBTQIAP+ da capital mineira e se mantém de pé por financiamento coletivo, doações e parcerias institucionais. Localizada na Avenida Sinfrônio Brochado – uma das mais movimentadas do Barreiro –, também luta pelo acesso dessa comunidade ao mercado de trabalho, ao atendimento digno em saúde e à permanência nos espaços de formação e de cultura.
A palavra que melhor define o funcionamento da casa é "coletivo", de acordo com a coordenação do local. "A gente foi entendendo que teríamos o desafio de construir coletivamente, e no maior ponto da radicalidade da palavra: o financiamento é coletivo, a construção é coletiva, a demanda é coletiva. Tudo é nosso, tudo é coletivo, e tentamos sempre trabalhar isso com as pessoas que frequentam a casa”, explica Juhlia Santos, jornalista e militante.
Idealização da casa
Fruto de uma luta e evolução de um sonho, a Akasulo partiu do movimento trans de Belo Horizonte em busca de dignidade, integridade e humanidade, e a coordenação da casa reforça que, com a casa, há "um resgate da memória ancestral do movimento, não estamos propondo nada novo".
"A gente já vinha elaborando essa vontade de ter um espaço físico onde a gente pudesse estar junto, onde a gente pudesse existir, também, em comunidade", conta Gab Lamounier, psicólogo e membro da coordenação da Akasulo.
"Esse sonho nasce da ausência. Da ausência das políticas públicas; da ausência de equipamentos. Hoje, Belo Horizonte não tem nenhum equipamento que, de fato, alcance toda a comunidade LGBT com dignidade e integridade, principalmente no recorte das causas trans. Os equipamentos se ancoram na justificativa de que há abrigos femininos e masculinos, mas esses abrigos não dão conta das nossas demandas, dos nossos atravessamentos", explica Juhlia
"E dentro dessas ausências históricas na cidade, a gente tem pressionado o poder público já há muito tempo, e tem mostrado, principalmente da pandemia para cá, que temos vivido um constante apartheid social", complementa a jornalista.
Apesar de desenvolver um trabalho social importante na região e ser reconhecida e legitimada pelos equipamentos públicos, a casa não é fruto de políticas públicas – e nem tem pretensão de ser, de acordo com Juhlia.
"A gente já entendia que não dava para ser uma casa de abrigamento, porque a gente não teria pernas para isso agora, e não temos a menor pretensão de cumprir um papel que tem que ser do estado, de uma política pública. Éramos um bando de gente 'doida' querendo botar em prática um sonho coletivo, e isso sem dinheiro, só com esse desejo", explica ela.
Construção do projeto
Gab também explica que, apesar do aumento de modelos de casas coletivas de acolhimento ou de convivência destinadas à população LGBTQIAP+, o projeto da Akasulo demandou muito trabalho por suas especificidades.
"Em vários lugares do Brasil têm sido criadas essas casas coletivas, mas em cada contexto é preciso uma metodologia, uma proposta diferente, e tem que ser assim mesmo. Não dá para a gente importar um formato e achar que vai funcionar. Sempre tem que ser de acordo com o que cada contexto exige", diz o psicólogo.
De acordo com Gab, algumas perguntas precisavam ser feitas para que a execução do projeto desse certo.
"O que essa população de BH, do Barreiro, está precisando? A Akasulo tem sido construída sempre nesse movimento dialógico: o que a cidade precisa? O que as pessoas estão precisando? O que a gente tem para oferecer? Como podemos entregar a elas?", questiona ele.
Do ponto de vista de Juhlia, a Akasulo está em constante mudança e vai se adaptando de acordo com as necessidades que chegam com as frequentadoras.
"Temos aprendido na prática. Chegam as pessoas que frequentam a casa e a gente vai entendendo o que elas esperam, o que elas buscam, o que elas demandam e, a partir daí, como a gente pode encaminhá-las para serviços existentes; como podemos acompanhá-las até esses serviços, até porque muitas das vezes a gente lida com um público de vulnerabilidade extrema, com pouca alfabetização”, explica ela.
Serviços do centro
A Akasulo contribui para o acesso aos direitos básicos da população LGBTQIAP+ a partir da articulação em rede. A casa atua com a formação – escolar, política e social – de seus usuários, além do desenvolvimento da cultura, do cuidado coletivo e da inserção no mercado de trabalho.
Com atividades semanais oferecidas por voluntários, a casa fica aberta somente das terças às quintas-feiras – salvo exceção de algum evento aos finais de semana – das 14h às 21h. Na programação, já são fixas as aulas de português, inglês e matemática, além de uma oficina de biojoias e rodas de cuidado.
“[A Akasulo] é onde as pessoas têm oportunidade de estudar, de fazer uma aula de português, de matemática, de inglês; onde você tem uma sala com computadores para você resolver sua vida; onde você tem uma sala de descanso; onde você pode chegar e desabafar com as pessoas; onde você tem ajuda; onde nós, que estamos em situação de rua, temos uma ajuda todo mês com comida, limpeza", conta Willianne, que é uma mulher trans de São Paulo, está em Minas Gerais há cerca de sete meses e começou a frequentar a casa há dois.
Para a maioria dos frequentadores, a Akasulo também é sinônimo de paz. Lorrayne, mulher trans que já inseriu as visitas à sua rotina há quatro meses, explica que a dinâmica do centro de convivência é completamente diferente de seu dia a dia nas ruas e em outras casas que já frequentou.
"Muita coisa mudou quando comecei a frequentar a casa. Para mim, só o sossego de quando chego aqui é o suficiente. O sossego, a paciência, a educação", explica ela.
"A gente sai de lá [do centro de Belo Horizonte], chega aqui e é totalmente diferente do que a gente vive no dia a dia. Aqui é um ambiente onde a gente interage com as pessoas, é uma distração para a mente, é um passatempo, é onde a gente sabe que vai ser atendida, onde podemos conversar, saber o que se passa no dia a dia das outras", complementa Willianne.
Juhlia Santos explica que o espaço também é essencial para a redução de danos, principalmente para a população em situação de rua.
"Aqui é onde a gente vai garantir a não-violência externa que nossos corpos, enquanto corpos dissidentes, já estão sujeitos. Então, aqui, as pessoas estão minimamente seguras, não estão sujeitas a um tempo ocioso na rua em que elas poderiam se render aos vícios em drogas, aos auto-extermínios e a mil outras coisas", afirma.
"Para quem quer uma mudança na vida, eu garanto que você chega aqui e você tem. É onde as meninas correm atrás para te colocar dentro de um serviço, para ver a sua saúde, para ajudar você a encontrar uma casa, para você subir na vida. A Akasulo está sendo um pai e uma mãe, um lugar onde a gente sabe que vai chegar e vai ter sossego, uma hora, um lugar para descansar", complementa Willianne.
Por que no Barreiro?
A instalação da Akasulo no Barreiro – bem longe do centro de Belo Horizonte – tem seus motivos. Para Gab Lamounier, que cresceu na região, um dos principais motivos é levar acolhimento a localidades que não recebem tanta atenção na hora da demarcação de políticas e atividades voltadas para a comunidade LGBTQIAP+.
"Sempre fui marcado por esse lugar de solidão, de não conseguir encontrar um espaço aqui no Barreiro que eu pudesse ser a pessoa LGBT que sempre fui. Precisei sair daqui e ir para o centro, para a universidade, para poder vivenciar e encontrar uma comunidade", relata ele.
Antes de estabelecerem a localização da casa, houve um grande planejamento e várias discussões sobre a potencialidade de sair do centro – tópico que é pauta até hoje: por que no Barreiro?
"Mas por que não no Barreiro? Sempre escutamos esse discurso do 'não é central', mas vamos ficar comprando isso? Na verdade, o espaço pode ser até mais potente por não ser central, e vir para o Barreiro foi uma escolha de tentar mudar os públicos e alcançar outras pessoas", explica o psicólogo.
"Estamos numa encruzilhada entre várias cidades: Contagem, Betim, Ibirité, Nova Lima. Descentralizar pode ser uma potência para a gente encontrar pessoas que talvez não estejam acessando os equipamentos e os espaços de cultura e de cuidado que já estão mais consolidados na região central. A gente não está no hipercentro de Belo Horizonte, mas estamos no hipercentro do Barreiro", complementa ele.
Para além da tentativa de alcançar outros públicos, estar na região também significa valorizá-la, segundo Juhlia.
"Queremos fazer com que o Barreiro não seja só uma região-dormitório, como as pessoas colocam. Barreiro é quase uma outra cidade, e não está à margem de Belo Horizonte. Barreiro é um espaço muito grande, é um espaço importante, remanescente de cultura, de vidas, de resistência", comenta.
Impactos na região
Oferecendo um espaço de afeto para a comunidade LGBTQIAP+ da região, a Akasulo também acaba impactando diretamente na forma com que a população local do Barreiro se relaciona com o público da casa – às vezes bem, mas às vezes mal.
"A gente tem tensionado a região, porque corpos que não eram comumente vistos transitando por aqui, hoje, transitam. Então, isso causa uma fissura muito grande. Eu fico pensando que existe um olhar muito julgador sobre os nossos corpos, porque se fossem outras pessoas cisgênero, heterossexuais transitando seja lá como for, não teria esse mesmo olhar de julgamento", afirma Juhlia.
Na semana de inauguração da casa, que movimentou a Avenida Sinfrônio Brochado com uma programação extensa para a promoção da casa, a Akasulo chegou a receber ameaças de ataques. Gab conta que, pelas redes sociais, receberam uma mensagem anônima alertando sobre uma possível manifestação em frente ao local – que nunca chegou a acontecer. Apesar do susto inicial, a equipe pensou racionalmente.
"É uma manifestação contra o quê? Contra o que eles podem se revoltar? Cuidarmos das pessoas? Oferecermos um almoço e uma aula? Querermos que as pessoas trabalhem, que elas sejam bem atendidas no sistema de saúde? A gente está aqui construindo um espaço de afeto, de amor e de carinho. A gente não tem que entender o ódio", disse o psicólogo.
A caminho de uma rede de afeto, a Akasulo realizou um arraiá no último sábado (1/7), o primeiro grande evento após a semana de inauguração do local. Para a coordenação, apesar das semelhanças entre as movimentações na região, a organização da semana de inauguração e do arraiá teve suas diferenças.
"No arraiá, eu senti um lugar muito afetivo. As pessoas lindas, literalmente afetadas pela casa, pelos usuários que estavam aqui. Na primeira semana de inauguração, a gente ainda não tinha os usuários, e agora a gente pôde construir junto, desde a decoração, até a limpeza", conta Juhlia.
Redes de afeto
Coletividade e afeto são conceitos que caminham juntos, e a Akasulo mostra na prática como essa relação funciona. Em resistência à marginalização que é imposta à comunidade LGBTQIAP+, o local funciona a partir de redes de afeto. "A gente pretende alcançar o máximo de pessoas possíveis, mas junto do máximo de pessoas possíveis", afirma Gab.
"Isso não é sobre mim ou sobre ele, é sobre a gente. Tem uma questão maior, que é sobre as nossas existências e a falta de humanização das nossas existências. Porque a gente, enquanto pessoas dissidentes de gênero, enquanto LGBTs, enquanto pessoas negras, não conseguimos, ainda, a condição de humanidade", complementa Juhlia.
O psicólogo explica que, a princípio, a divulgação do trabalho da casa começou a partir da mobilização dos círculos sociais dos próprios membros voluntários.
"A gente começa com as nossas amizades, com as nossas famílias, com as pessoas com quem a gente se movimenta. O trabalho é de formiguinha mesmo, e além das redes sociais, a gente passa [as informações sobre a Akasulo] de boca em boca", comenta ele.
Foi o caso das amigas Lorrayne e Willianne, que hoje frequentam a casa juntas e seguem indicando o espaço para outras pessoas.
"Eu cheguei até a casa pela minha amiga Monalisa, que já faz um tempo que não vem, mas já estou por aqui há quatro meses", conta Lorrayne.
"E eu já tinha ouvido falar, mas nunca tinha vindo antes da Lorrayne me chamar, e já é meu segundo mês aqui. Estou gostando muito, o tratamento é maravilhoso. Quando a gente chega, somos bem recebidas, bem tratadas, bem atendidas", acrescenta Willianne.
Para elas, a casa foi transformação. "A Akasulo remete, para mim, a lagarta. Quando ela vira borboleta dentro do casulo, é uma nova vida, e aqui é como se fosse um casulo para a nossa lagarta", comenta Lorrayne.
"Aos poucos, a gente vai tentando melhorar, tentando abrir mais espaços para nós, que somos mulheres trans, porque ainda são poucos espaços abertos para a gente, poucas portas abertas, poucas oportunidades, e a casa oferece essa possibilidade", completa Willianne.
Ouça e acompanhe as edições do podcast DiversEM
O podcast DiversEM é uma produção quinzenal dedicada ao debate plural, aberto, com diferentes vozes e que convida o ouvinte para pensar além do convencional. Cada episódio é uma oportunidade para conhecer novos temas ou se aprofundar em assuntos relevantes, sempre com o olhar único e apurado de nossos convidados.