A macarronada é tão forte simbolicamente para a cozinha italiana quanto o frango com quiabo é para a mineira. Essas culinárias, apesar de muito distintas, possuem alguns pontos em comum que talvez ajudem a explicar o apreço dos belo-horizontinos pelas comidas de Minas Gerais e da Itália.


Na quarta edição do especial “Um século de sabores”, exploramos, justamente, a presença significativa de casas italianas com mais de 30 e 40 anos em Belo Horizonte e o nascimento de restaurantes mineiros emblemáticos entre as décadas de 1980 e 1990.


A fundação de cantinas italianas longevas está ligada, em muitos casos, a famílias tradicionais na cidade. Um dos exemplos é a Província di Salerno, fundada em 1983 na Região da Savassi e há mais de 30 anos no espaço atual, no Bairro Santa Efigênia, Região Leste da capital mineira.


Remo Peluso, que faleceu em 2022, foi quem fundou a casa. “Ele tinha muitos amigos, sempre lotou a casa, que se tornou um ponto de encontro da sociedade belo-horizontina”, explica Marcello Peluso, sobrinho de Remo e atual proprietário do restaurante.

Uma grande família


Marcello começou a trabalhar com Remo em 1987, portanto, sempre participou da rotina da casa. Outros membros da equipe estão há décadas servindo massas para os clientes no restaurante, o que, segundo o próprio Marcello, contribui para o padrão do que é servido.

Remo Peluso (centro) fundou o Província di Salerno em 1983 e passou todo o seu conhecimento para a equipe

Arquivo pessoal


A cozinheira Marlene de Assis Ferreira, por exemplo, está na casa há 42 anos e diz ser muito grata por todo este tempo e pelos ensinamentos de Remo. Já a masseira Sueli Alves Pereira coleciona quase 20 anos, assim como o gerente, Alexandro Soares Bruno, mais conhecido como Leco.


“A gente tem os funcionários como uma grande família que nos ajuda a estar onde a gente está hoje. Sem eles isso aqui não existiria. Então, com o falecimento do Remo, essa equipe já consolidada ajudou muito”, destaca o proprietário.


Hoje, a esposa de Marcello, Isabella Peluso, leva um olhar imprescindível para o dia a dia da casa. “O Remo tinha a visão para a arquitetura, a parte estética e o belo também. Acho que hoje trago essa preocupação e também um toque femino”, explica, exibindo a capa do cardápio, que reproduz um quadro pintado por Yara Tupynambá para Remo, com itens que remetem ao restaurante.

Sem muitas mudanças


Os proprietários da casa explicam que é difícil fazer mudanças no menu, afinal, o público gosta dos sabores tradicionais. Aliás, essa preocupação vai além da comida. “Já tentei mudar a playlist uma vez mas, no mesmo dia, um cliente já veio perguntar sobre as músicas tradicionais italianas”, conta Isabella.

O fettuccine artesanal pode ser servido com brócolis, pimentões vermelhos e camarões grelhados

Paulo Marcio/Divulgação


Um campeão de vendas, bastante tradicional, é o fettuccine com molho de gorgonzola e filé-mignon (R$ 119). Outro que faz sucesso é o Fettuccine Costa Amalfitana (R$ 135), com brócolis, pimentões vermelhos e camarões grelhados. Assim como nos outros pratos do menu, assinados por Bruno Peluso, irmão de Marcello, as massas são artesanais e moldadas com carinho por Sueli.

Trabalho artesanal


No restaurante do primo de Marcello, Theodoro Peluso, a preocupação com a massa fresca é a mesma. O Anella, fundado em 1986 por Paulo Peluso, pai de Theodoro e irmão de Remo (do Província di Salerno), fica no Bairro Santa Amélia, Região da Pampulha.

Um dos clássicos da família Peluso é o ravióli recheado com ricota de búfala e molho de tomate

Anella/Divulgação


As duas casas resgatam a tradição da massa artesanal herdada da fábrica da família, o Pastifício Peluso, de Theodoro Peluso e Anella Peluso. “Antes de abrir o Anella, meu pai [Paulo] abriu uma fábrica de macarrão com máquinas do pastifício do meu avô [Theodoro]”, explica o atual proprietário do Anella, Theodoro Peluso.


Theodoro e seu irmão, Paolo Peluso, herdaram o restaurante criado pelos pais em 2007. Em 2013, eles investiram em uma ampliação do espaço, já que, além dos clientes de almoço e jantar, surgiram demandas para eventos. “Desde que meu irmão fez a festa de casamento dele lá, começamos a receber outros pedidos.”


Sabor afetivo


Assim como ocorre no Província di Salerno, no Anella o cardápio é praticamente o mesmo desde a fundação. Os últimos pratos entraram há quase 10 anos, a exemplo do espaguete à carbonara (R$ 72). Entre os clássicos da família Peluso, destaca-se o ravióli recheado com ricota de búfala com molho de tomate (R$ 93).


A pandemia foi um marco em diferentes sentidos para o Anella e trouxe, inclusive, uma perda irreparável: Paolo faleceu em 2020. Mais ou menos na mesma época, Marlene Peluso, mãe de Theodoro e Paolo, resolveu se aposentar.


Em termos financeiros, a pandemia não foi tão impactante para a casa. “A gente já trabalhava com delivery desde 2019, então não tivemos que implementar esse sistema. Somos donos do espaço, então não tínhamos aluguel e contamos com energia solar, o que reduz as contas”, explica o proprietário.

Legado na Savassi


Com seus 38 anos, o La Traviata é também uma das casas italianas tradicionais de Belo Horizonte. Não por acaso, está situada na Região da Savassi. Foi fundada por Renato Savassi Biagioni, descendente de italianos e parte da família que fundou a Padaria Savassi.

Filhos do fundador do La Traviata, Rafael, Gustavo e Eduardo Biagioni modernizam o cardápio sem perder a tradição

La Traviata/Divulgação


Quando Renato faleceu, em 2016, seus três filhos, Eduardo, Rafael e Gustavo, todos Biagioni, assumiram o posto e passaram a chefiar o restaurante. “Nos vimos em um momento em que precisávamos manter a tradição do restaurante, mas também modernizar algumas coisas, sem perder a identidade”, explica Eduardo.


Assim, renovaram o interior e o exterior do restaurante e fizeram algumas alterações no menu, mesmo contra a vontade de alguns clientes. Dessas mudanças, veio, por exemplo, a implantação do Aperol Spritz, drinque à base de aperitivo italiano que caiu no gosto dos brasileiros nos últimos anos. “Há um tempo ninguém nem sabia o que era Aperol e hoje é um dos coquetéis que mais sai.”

Forno à lenha


O modo de preparo das pizzas, que eram servidas desde a época de Renato, também mudou. Os irmãos implementaram a fermentação longa e o forno à lenha (antes era elétrico), o que elevou o nível das massas.

Antigo no cardápio, o fettuccine com molho branco e paillard de filé-mignon simboliza 38 anos de história

La Traviata/Divulgação


Apesar das novidades, os proprietários quiseram manter muito do que já era diferencial no La Traviata. O clássico fettuccine com molho branco e paillard de filé-mignon (R$ 64), por exemplo, permanece.


O mesmo acontece com o Mexido Chic (R$ 56). Feito com arroz, feijão, filé-mignon, linguiça artesanal, bacon, tomate, cebolinha, cebola, couve frita, ovo, torresmo e alho frito, o prato revela o diálogo que o fundador do restaurante já propunha, desde sempre, entre as comidas mineira e italiana.

Vale ressaltar que, desde o último ano, o restaurante conta com outra unidade no Bairro Sion, Região Centro-Sul.

Identidade ítalo-brasileira


A tradição de casas italianas como essas em Belo Horizonte diz respeito a algo que vai além do conceito de “comida” italiana. É o que explica a historiadora da alimentação Carolina Figueira.

“Esses restaurantes expressam uma identidade muitas vezes ítalo-brasileira. Em sua maior parte, eles não estão replicando o modo de alimentação tão qual se aplica hoje na Itália, mas, sim, práticas alimentares que se transformaram nessa imigração.”


E quando pensamos em culinária italiana, há de se pensar nela a nível internacional, tendo em vista que ela foi muito aceita e valorizada pelo paladar ocidental.

“Nos anos 1980 e 1990, há no mundo inteiro essa expansão da comida italiana e de um certo marketing da comida da Itália”, explica o historiador e pesquisador José Newton Meneses, chamando a atenção, inclusive, para um investimento da própria Itália na internacionalização de sua cultura e gastronomia.


Dos pães aos pratos


“A primeira atuação dos italianos na gastronomia daqui foi nas padarias. Muitas delas serviam almoços italianos e outras se tornaram restaurantes, acompanhando o crescimento da cidade”, destaca a pesquisadora e assessora de projetos especiais do Senac em Minas Vani Pedrosa.

Para ela, o sucesso das iguarias italianas se explica pela familiaridade com Minas. “É uma culinária familiar, tem uma doçaria forte como a cozinha mineira, é farta, com pratos caldosos, preza pelos ingredientes locais etc.”

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Serviço

Província di Salerno (@provinciadisalerno)

  • Rua Maranhão, 18, Santa Efigênia
  • (31) 3241-2205
  • Segunda, das 12h às 15h;
  • De terça a sexta, das 12h às 15h e das 19h à 1h30;
  • Sábado, das 12h às 16h e das 19h à 1h30;
  • Domingo, das 12h às 17h.

Anella (@anellaristorante)

  • Avenida Ministro Guilhermino de Oliveira, 325, Santa Amélia
  • (31) 3441-8748
  • De segunda a quinta, das 12h às 15h e das 18h às 23h30;
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La Traviata (@latraviatabh)

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  • De terça a quinta, das 11h30 às 14h30 e das 18h às 23h;
  • Sexta, das 11h30 às 14h30 e das 18h às 23h30;
  • Sábado, das 11h30 às 15h30 e das 18h às 23h30;
  • Domingo, das 11h30 às 15h30 e das 18h às 22h30.

*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino

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