Já dizia o ditado popular: “filho de peixe, peixinho é”. De fato, ele se encaixa em muitos casos. O jeito, as expressões faciais, os traços físicos e a voz são algumas das características que um filho (biológico, neste caso) pode herdar do pai.

Nesta edição de Dia dos Pais, queremos mostrar filhos e filhas que herdaram muito mais do que o sobrenome ou atributos físicos. Conheça proprietários de bares e restaurantes que carregam ensinamentos e o senso de liderança ensinados pelas figuras paternas antes de faleceram e que se perpetuam pelas próximas gerações das famílias e pelo dia a dia na chefia das casas.


Sucessão desafiadora

Eliza Fonseca, mais conhecida como Lora, assumiu o comando do Lumapa Bar em 2003, quando seu pai, Paulo Fonseca, decidiu se aposentar. Quando chegou à casa, situada no interior do Mercado Central, foi muito questionada, principalmente por ser mulher e por estar substituindo o pai. “Fui desacreditada, muito maltratada e até assediada. Me lembro de ouvir as pessoas passando pelo corredor falando que não davam três meses para eu sair de lá”, conta.

Na contramão do que muitos acreditavam, ela foi construindo seu caminho, contando sempre com o apoio do pai. Eliza se tornou uma figura tão emblemática com o tempo que os clientes começaram a chamar o Lumapa de “Bar da Lora”. Não demorou muito para que a casa adotasse de fato esse nome.

Hoje, o bar é parada obrigatória para quem visita a cidade e, inclusive, para muitos moradores que não abrem mão do fígado acebolado com jiló, especialidade de Lora. O prato, inclusive, já era servido lá desde a época de Paulo, seu pai.


Bar com identidade

Pedro e Eliza Fonseca, do Bar da Lora, são sócios no negócio herdado pelo pai, paulo, e se orgulham de seguir o legado dele

Tulio Santos/EM/D.A. Press

Há sete anos, Lora se juntou ao filho, Leonardo, para abrir mais uma unidade do bar no Centro, mais especificamente na Praça Raul Soares. A Savassi também ganhou um Bar da Lora para chamar de seu, inaugurado há dois anos, fruto da sociedade de Eliza com seu irmão, Pedro.

A mais nova casa é repleta de quadros com fotos e até mesmo documentos dos pais de Lora. “Quando fomos abrir a unidade da Savassi, algumas pessoas falavam que o Bar da Lora não tinha identidade na região. Foi assim que meu irmão teve a ideia de imprimir o documento de identidade do meu pai bem grande e colocar em um quadro para mostrar que a gente tinha, sim, identidade e que a origem de tudo era o nosso pai”, conta Eliza.

O pai deles, mais conhecido como “tio Paulinho”, pôde conhecer e frequentar as três unidades, e sempre se emocionava ao ver o crescimento do negócio e a dedicação dos filhos. “Ele ficava muito feliz em ver a família toda trabalhando no bar, sabendo das dificuldades de estar nesse setor. Mesmo depois de ter perdido o movimento das pernas, após ter sido infectado pelo vírus da Covid-19, ele ia aos bares na cadeira de rodas”, explica.

Eliza ainda lamenta a ausência da figura paterna (Paulo faleceu no último ano), mas reconhece as heranças e ensinamentos que ele deixou. “Tudo que tenho devo ao meu pai, minha índole, carinho com o cliente, minha formação e minha educação”, destaca.

Legado árabe

Há bares que carregam não só gerações, mas famílias inteiras. Esse é o caso do Bar do Toninho, aberto em 1958 no Bairro Serra, Região Centro-Sul de BH. Hoje, quem comanda a casa é Daniel Auad, mas ela já passou pelo seu pai, Antônio José Auad Filho, e pelo avô, Antônio José Auad, que foi quem fundou o bar e armazém (o espaço virou exclusivamente bar em 1983, depois da abertura de um supermercado nas proximidades).

As mulheres da família ficavam à frente do preparo dos salgados e quitutes árabes. Foi com elas, inclusive, que Daniel aprendeu a cozinhar. “Entrei no bar com 14 anos e fazia um pouco de tudo. Em 2008, eu me tornei sócio do meu pai”, explica.

Foram mais de 10 anos de parceria como sócios, fora os outros 25 de trabalho em conjunto no bar. “Até ele morrer, em 2021, cuidava da parte de contabilidade e até ia para lá algumas vezes”, conta o proprietário. Justamente por isso, ele destaca que o processo de sucessão foi praticamente “imperceptível”.

Qualidade dos ingredientes

Herdeiro do Bar do Toninho, Daniel Auad tenta sempre tomar decisões seguras pensando no pai, Antônio José Auad Filho

Jair Amaral/EM/D.A Press

Nos anos de trabalho ao lado do pai, Daniel aprendeu, por exemplo, a valorizar a qualidade dos ingredientes e a ter o pé no chão. “Nosso cardápio é enxuto porque a produção é toda artesanal. Sei que, se eu começar a atender delivery, por exemplo, vou ter que abrir mão da qualidade”, conta.

E esse sempre foi um lema do pai, que reforçava a importância dos insumos. “Ele sempre falava que de nada adianta gastar dinheiro com uma carne ou ingredientes de qualidade se, na finalização, não usarmos um azeite tão bom quanto todos os outros itens”, ressalta o filho.

“Tem dias em que me pego fazendo o homus (pasta de grão-de-bico) e pensando nele me falando que não devo colocar tanto alho. Aí mudo a receita e faço exatamente como ele faria”, diz Daniel, que se emociona ao lembrar de Antônio José, conhecido como Toninho, e de todo o seu rigor no bar. “Ele só me deixou memórias boas e uma herança difícil, que é o medo de dar um passo maior que as pernas. Tento sempre tomar decisões seguras pensando nele”.

Clássico de gerações

Três gerações da família Ferreira se alternam na administração do Café Palhares

Jair Amaral/EM/D.A Press

O Café Palhares fica no Centro de Belo Horizonte e já coleciona quase 90 anos de existência. Nesse período, além de passar pelas gerações da família administradora, também fez parte da história de muitas outras famílias belo-horizontinas apaixonadas pelo KAOL, prato icônico da casa e da cidade.

João Ferreira, conhecido como seu Neném, foi quem esteve à frente do histórico estabelecimento por muitos anos e ensinou para os filhos o dia a dia do trabalho em um bar. “Aos 14 anos, eu já era o responsável pelo troco e, aos 15, comecei a trabalhar no caixa”, conta Luiz Fernando Ferreira, filho de João.

Ele e o irmão, João Lúcio, assumiram a casa após o falecimento de seu Neném, em 2003. “A gente não herdou o restaurante, fomos construindo essa história junto com nosso pai”, explica Luiz, que destaca, ainda, a saudade que ele deixou. “Ele faz falta, mas me ensinou muito. Sinto que na pandemia, por exemplo, conseguimos ‘sobreviver’ pela forma como ele me ensinou a administrar o negócio”.

O respeito e a honestidade também são heranças que Luiz carrega do pai. “Ele nos deu muita educação, nos ensinou a trabalhar, a respeitar os clientes e funcionários e a exigir do fornecedor sempre os melhores insumos”, explica.

Luiz acredita que todos esses fatores tenham sido determinantes para o sucesso do restaurante, que já sobreviveu – literalmente – a uma guerra (a Segunda Guerra Mundial) e uma pandemia. “Se ele não tivesse nos mostrado a postura necessária ao trabalhar, a casa não estaria com 87 anos. Conseguimos continuar o legado que ele deixou, afinal, são poucos os empreendimentos que chegam à terceira geração de uma família”.

De pai para filho

Há 12 anos, André, filho de Luiz, chegou à administração do bar. Hoje, ele, seu pai e seu tio honram o legado de seu Neném. “Atualmente, o André é quem mais comanda o café. Vejo ele fazendo um trabalho parecido com o meu, observo ele envolvido com o estabelecimento e com os clientes e é como se eu me enxergasse ali”, conta.

Luiz destaca também que, assim como ele e seu irmão, André trabalha no Palhares por vontade própria. “Ele teve muitas experiências em outros lugares, apesar de já ter aprendido a trabalhar aqui comigo. O André quis voltar e firmar no bar por opção, nunca foi uma imposição”, conta o pai, orgulhoso.

No comando de clássicos

Maria Eleonora Roque teve a oportunidade de trabalhar por dois anos ao lado do pai, Edmar, no Cantina do Lucas

Jair Amaral/EM/D.A Press

A missão de assumir o lugar do pai nunca é fácil. Quando esse lugar é o comando de duas casas tradicionais e históricas na cidade, o desafio é ainda maior. E foi isso que Maria Eleonora Roque teve de enfrentar após a morte de seu pai, Edmar Roque, há oito anos. Ele administrou por mais de três décadas os clássicos Casa dos Contos e Cantina do Lucas, no Bairro Funcionários e no Centro, respectivamente.

Edmar comprou a Cantina do Lucas em 1983 e a Casa dos Contos em 1984, antes mesmo de Maria nascer. “Não sei viver longe do restaurante, nasci inserida nesse contexto”, explica a filha. Apesar disso, ela conta que o pai nunca foi de levar o trabalho para a casa e que ela, assim como as duas irmãs, respeitavam muito a distância entre a vida pessoal e profissional de Edmar.

“Até por conhecer o ramo em que trabalhava, ele nunca nos incentivou a trabalhar nos restaurantes”. Maria Eleonora começou a ficar na Cantina do Lucas por conta do estágio obrigatório do seu curso, administração. “Fui entrando aos poucos lá e, aos 30 anos, vi que era aquilo que queria para a minha vida”, conta.

Por cerca de dois anos, ela trabalhou intensamente no restaurante ao lado do pai. “Esse período me ensinou muito. Foi difícil trabalhar com ele, acho que porque somos muito parecidos, mas hoje olho para trás e vejo que muitas brigas foram à toa”, diz.

Para a vida

Edmar Roque, antigo dono do Cantina do Lucas e da Casa dos Contos, deixou para as filhas um legado de liderança

Arquivo pessoal

O pouco tempo que dividiu com o pai nos restaurantes fez Maria Eleonora crescer muito. “Meu pai foi um líder nato, um visionário que lutou muito pela valorização do Centro”. Ele sempre falava com as filhas que a região central de uma cidade era onde tinha mais cultura, apesar de ser um local muitas vezes deixado de lado.

Além da valorização do espaço que ocupam, a liderança, firmeza e otimismo são características fundamentais de Edmar que Maria destaca e busca, sempre. “Ele não está mais presente fisicamente, mas lembro dele todos os dias, e sempre penso o que ele faria em determinadas situações.”

Justamente por pensar sempre no pai e por ter em mente que é preciso honrar esse legado construído com tanta garra (antes de comprar as casas, ele trazia, no ônibus, queijos e cachaça de sua cidade natal, Arcos, na Região Centro-Oeste de Minas, para vender em BH), Maria conta que considera a Cantina do Lucas e a Casa dos Contos como irmãos, e não filhos, mesmo após assumir a gestão.

“É gratificante, mas também é uma grande responsabilidade, há muita pressão”, ressalta ela, sobre seguir o caminho trilhado pelo pai.

O poder do paladar

Os sentidos estão muito ligados à memória. Evidentemente, o poder do paladar não fica de fora dessa. Nos últimos anos, inclusive, muito se fala sobre a tal da “comida afetiva”, termo que, de tão banalizado, parece ter até perdido um pouco seu valor. Fato é que, independentemente da nomenclatura, existem pratos e sabores que nos remetem a pessoas e momentos especiais.

Além de se lembrarem dos pais pelos negócios herdados e os ensinamentos, proprietários de bares e restaurantes de BH matam um pouco da saudade deixada pela partida deles com comidas que aquecem o coração e a alma.

Sem invenção de moda

Eliza Fonseca, do Bar da Lora, conta que se lembra muito do pai quando serve a porção de pernil acebolado com jiló (R$ 49). No cardápio do Lumapa Bar, empreendimento do pai que foi herdado por ela, só tinha esse preparo e o tradicional fígado com jiló no cardápio.

“Quando comecei a aumentar o cardápio do bar, meu pai sempre falava que não era para inventar moda, que o público do Mercado Central gostava de fígado e carne (ele chamava o pernil de carne)”, conta Lora, que inclui muitos outros itens ao cardápio.

Romeu e Julieta

Conhecida como "Romeu e Julieta" no Bar do Toninho, a porção de quibe cru com homus pode ser servida com pão folha

Jair Amaral/EM/D.A Press

Combinações consideradas perfeitas e improváveis são, muitas vezes, chamadas de “Romeu e Julieta”, fazendo alusão ao clássico de William Shakespeare, que narra um amor proibido, inusitado e dilacerante. Enquanto muitos mineiros apelidam a mistura de queijo com goiabada com o nome dos personagens da obra, Antônio José Auad Filho, antigo dono do Bar do Toninho, adaptou para a culinária árabe.

“Meu pai falava que o nosso ‘Romeu e Julieta’ era essa porção mista de quibe cru com homus (pasta de grão-de-bico), que sai por R$ 36”, explica Daniel, filho e atual responsável pela casa. A combinação era considerada por ele perfeita. Ela pode ser acompanhada de pão folha (R$ 2 a unidade).

Apesar de seguir muito do que o pai ensinou, Daniel tem outra opinião quanto à mistura ideal servida no bar. “Para mim, a melhor junção é do quibe cru com babaghanoush (pasta de berinjela assada), vendida a R$ 36. Acho que o defumado que vem da pasta eleva o sabor da carne.” Por outro lado, segundo ele, o combo favorito dos clientes é o quibe cru com a coalhada seca (R$ 36).

Carinho de pai

O escalope de filé com molho madeira, champignons, purê de batatas e arroz à grega está entre os clássicos do Cantina do Lucas

Jair Amaral/EM/D.A Press

Maria Eleonora Roque, responsável pela Cantina do Lucas e pela Casa dos Contos, pensa muito no pai quando come um clássico da Cantina: o escalope de filé com molho madeira, champignons, purê de batatas e arroz à grega (R$ 153,90, para duas pessoas).

“Esse não é um prato que ele cozinhava para mim, mas é um que ele sempre pedia para me agradar. Quando eu peço ele hoje em dia, parece que meu pai ainda está aqui fazendo esse pedido”, explica.

Cachaça à parte

Prato icônico de Belo Horizonte, o KAOL, do Café Palhares, tem como estrela a linguiça com molho especial

Jair Amaral/EM/D.A Press

O KAOL (R$ 34), prato que leva esse nome por inicialmente ser composto por arroz, ovo, linguiça com molho especial e ser acompanhado de cachaça (que, na sigla foi representada pelo ‘K’), é um clássico da família Ferreira, que administra a casa, e de tantas outras em BH. Atualmente, ele leva, além desses ingredientes, couve refogada, torresmo e farofa de feijão. A cachaça pode ser pedida à parte.

A história desse prato não é novidade para os belo-horizontinos. Ele foi criado a partir de desejo da boemia que frequentava a casa nos primeiros anos de existência.

“O Café servia um cachorro-quente com linguiça e molho especial e os funcionários da noite usavam a carne para fazer um prato com arroz e ovo. Os clientes começaram a ver aquilo e pedir o prato dos funcionários”,

lica Luiz Fernando, filho de João Ferreira, proprietário da casa, falecido há mais de 20 anos. Daí para a frente, o sucesso só aumentou e hoje eles só servem esse clássico por lá, chegando à marca de 300 pratos diários.

“Nasci comendo KAOL e sei que esse prato é tão significativo para mim quanto para outras famílias de frequentadores, que também vinham sempre degustá-lo”, destaca Luiz.

*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino

Serviço

• Bar da Lora (@bardalora)

Rua Santa Catarina, 201, loja 115, Centro
(31) 3274-9409

Rua Sergipe, 1414, Savassi
(31) 99288-4752

Avenida Augusto de Lima, 885, Centro
(31) 98305-1458

• Bar do Toninho Árabe (@bardotoninhoarabe)

Rua Níquel, 246, Serra
(31) 99157-9799

• Cantina do Lucas (@cantinadolucas)

Avenida Augusto de Lima, 233, Centro
(31) 3226-7153

• Casa dos Contos (@casadoscontos)

Rua Rio Grande do Norte, 1065, Savassi
(31) 3317-0144

• Café Palhares (@cafepalhares)

Rua dos Tupinambás, 638, Centro
(31) 3201-1841

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Anote a receita: Pernil acebolado com jiló do Bar da Lora

Pernil acebolado com jiló é um prato que o Bar da Lora herdou do Lumapa Bar

Tulio Santos/EM/D.A. Press

Ingredientes: 

  •  300g de pernil de porco cortado em tiras finas;
  • 2 jilós grandes cortados em lâminas finas;
  • 1 cebola média cortada em discos;
  • 1 dente de alho;
  • 1 colher de café de sal;
  • 2 colheres de sopa de azeite ou óleo de soja.

Modo de fazer:

  • Tempere o pernil com alho picado e sal.
  • Em seguida, coloque-o na chapa ou frigideira com óleo ou azeite.
  • Espere até dourar.
  • Depois, acrescente a cebola e o jiló.
  • Refogue por cerca de dois minutos, até que os ingredientes fiquem macios.
  • Sirva ainda quente.

 

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