Muitas vezes o reencontro com pessoas que foram importantes em nossas vidas só nos traz decepção. O mundo muda, as pessoas mudam também, e nessas mudanças os caminhos eventualmente se separam de modo inegociável.
Em “Livros restantes”, Ana Catarina, a personagem de Denise Fraga, desafia essa possibilidade quando decide encontrar pessoas que a presentearam com livros, cada qual com uma dedicatória especial. Ana pretende devolver esses mesmos livros para cada uma delas, retomando parcialmente os laços que as uniram no passado.
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Uma amiga que se assumiu lésbica na meia-idade, um namorado de juventude que se tornou macho tóxico, uma amiga antiga que se tornou evangélica, um outro que confessa não ter o hábito de ler livros. Todas as pessoas reencontradas significaram muito para Ana em algum momento de sua vida.
Ela vai se mudar para Portugal e resolve se desfazer de tudo que a prendia a Florianópolis, sua cidade, e a seu espaço, a Barra da Lagoa. Por esse motivo, Ana se mostra tão intensa que a decepção vem tão facilmente quanto a empolgação. De onde vem essa intensidade?
E por que esse desprendimento todo? Medo de querer voltar? Não fica muito claro e talvez seja melhor assim. Seja o que for, ela tem a família para dar força, ainda que seja também um momento de mudanças para muitos ali.
O irmão, Sérgio, vivido por Renato Turnes, deixa um casamento de anos, que lhe deu duas filhas, para se casar com outro homem. Mudança que vem da tomada de consciência de sua sexualidade.
Vanderléia Will, a mãe adorável
Tem ainda a mãe Antônia, personagem adorável, graças, entre outras coisas, à interpretação de Vanderléia Will. Ela inicialmente parece careta, reclamando da comida do gato, uma vovozinha de modos antiquados. Num ponto importante, porém, ela se revela muito mais avançada que outros personagens.
A filha Sofia, personagem de Manuela Campagna, vive decepcionando o pai, Carlos Henrique, de quem Ana se separou, com suas manias contemporâneas. Augusto Madeira está muito bem nesse papel e uma cena de acerto de contas entre ele e Ana funciona unicamente por causa da capacidade dos dois atores de provocar emoções.
Muitos encontros, reencontros, conversas. Para o filme funcionar, era mesmo necessário um bom elenco. Nesse ponto, não há do que se queixar. Denise Fraga está acima do bem e do mal como atriz. Está sublime, mais uma vez, na maior parte do tempo. Como vimos, não reina sozinha.
Graças ao elenco, o momento festa de família que acontece na segunda parte, com diversas verdades sendo espalhadas pela grande mesa do almoço, pode funcionar com alguns espectadores, mesmo que dificilmente seja aceito por todos eles.
Há algo de sádico no que é falado e muitas vezes essa lavação indiscriminada de roupa suja em grupo acarreta cenas muito forçadas no cinema. Isto só não acontece aqui por causa das atrizes, principalmente, mas também pela direção de Marcia Paraiso, que soube conduzi-las a um tom que não ultrapassasse o limite do tolerável.
Duas outras cenas podem ser lembradas como pontos positivos e negativos na direção do elenco. Quando dois guardas vão pedir para que Sérgio e Ana reconheçam um corpo no necrotério, a interpretação dos irmãos é fraca, com reações caricaturais, contrastando com o eficiente naturalismo que eles haviam alcançado até então.
Minutos antes vem a supostamente tensa conversa de Sérgio com a mãe, quando ele vai contar de sua separação e novo casamento, o que implica em falar de sua sexualidade. É uma cena longa em que a tensão é sustentada por algum tempo enquanto Sérgio ganha coragem para falar tudo que quer.
A surpreendente reação da mãe é impressionante, desmontando toda a tensão que havia com os irmãos. Momento bonito, principalmente pelas atuações, valorizadas pela direção e pela montagem.
Com bons e maus momentos, chega a surpreender que o filme, como um todo, vá crescendo conforme conhecemos os dramas dos principais personagens.
Saber trabalhar essa evolução narrativa é um dom a não ser subestimado na direção e no recente cinema brasileiro. (Sérgio Alpendre)
“LIVROS RESTANTES”
Brasil, 2025, 105min. De Marcia Paraiso. Com Denise Fraga, Augusto Madeira, Renato Turnes. Em cartaz às 18h30, na Sala 1 do UNA Cine Belas Artes
