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Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

Relato de professor: a sala sem celular

A lei que entra em vigor este ano fez mais pela educação do que as manobras da última década

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A educação brasileira viveu, nos últimos anos, uma psicodelia pedagógica digna de um filme de Stanley Kubrick. Logicamente, sem a genialidade do diretor. Nos perdemos em meio à parafernália que tentavam se impor como o suprassumo da aprendizagem, capturando as práticas dos ingênuos e enchendo os cofres dos tecnocratas do ensino. Era um festival de jargões vazios e promessas revolucionárias que, no fim, revolucionavam apenas as contas bancárias de consultorias especializadas.


Com o tempo, parece que estamos percebendo que tudo isso não passava de uma “piolhagem educacional”, uma forma parasitária de se relacionar com as escolas. Assim como a pulga não é cachorro, mas vive dele, muitos não eram educadores, mas viviam — e muito bem — da educação. Tempos difíceis, que ainda não passaram, mas são amenizados com políticas públicas assertivas, como a proibição do uso do celular nas escolas. Quem diria que uma medida tão simples seria mais eficaz do que anos de reformas mirabolantes?

 


A lei que entra em vigor este ano conseguiu fazer mais pela educação brasileira do que as manobras da última década. Digo isso com especial atenção ao engodo do Novo (depois velho, depois novo deformado) Ensino Médio e às chamadas Metodologias Ativas, que, no fundo do poço pedagógico, poderiam ser definidas como Aprendizagem por Improvisação — ou, se preferirem, Metodologias da Confusão. A mensagem era clara: abandonemos a teoria e a relevância do professor e incentivemos o fazer pelo fazer, academicamente traduzido pelo sofisticado conceito de “mão na massa”, uma ideia-tampão que quer dizer um monte de coisa e nada ao mesmo tempo.

 


Ao longo de minha vida docente, aprendi uma sabedoria valiosa: só aprendemos a ser professor em meio a outros professores. Da mesma forma, nos humanizamos somente em meio a outros seres humanos. E a prática de ensino-aprendizagem é fundamentalmente humana e humanizadora. Por um tempo, parece que nos esquecemos disso. Ou, na melhor das hipóteses, fingimos esquecer, seduzidos pelas novidades reluzentes que prometiam transformar a sala de aula num espaço de aprendizado lúdico e espontâneo. E quem precisa de método, estudo e disciplina quando temos um holograma piscando no meio da classe?

 

 

Na prática, a realidade foi bem diferente. Estudantes dispersos pela sala de aula, com pouca interação social, desvalorizando o conhecimento e considerando o professor uma figura tediosa que se interpunha entre eles e seu desejo imediato e constante de busca pelo prazer. O resultado? A fuga para outras realidades, incentivada pelo acesso irrestrito às telas e suas infinitas distrações no mundo paralelo do MetaEscape — a distopia do Vale do Silício que se materializava como o Universo da Solidão. Todos perdiam com a pirotecnia das “piolhagens educacionais”.

 


A primeira semana de aula sem o celular foi um oásis no meio do deserto. Estudantes se cumprimentando, jogando baralho durante o recreio, reconhecendo os professores como sujeitos comprometidos com o desenvolvimento pessoal e amadurecimento intelectual de seus alunos, e a sala de aula como um espaço protegido e reservado à prática do saber. Quem diria? O ambiente escolar funcionava melhor sem um TikTok aberto no meio da explicação sobre a Revolução Francesa.


Platão afirmava que um dos primeiros passos em busca do conhecimento é se purificar do mundo sensível, marcado pela distração e pela transitoriedade das coisas. Essa mensagem, que atravessa milênios, se sustenta inclusive em nosso tempo. O espaço-tempo reservado à educação formal deve ser consolidado como um período onde crianças e jovens desenvolvem o foco necessário para compreender a realidade e conviver em sociedade.


Isso se tornava um desafio cada vez maior com as incontáveis notificações pulando das telas, chamando-os para olhar além da sala de aula com mensagens de altíssimo valor pedagógico: vídeos de gatinhos, youtubers mergulhando em banheiras de Nutella e influencers explicando, com a cara mais séria do mundo, que a Terra é plana e que a escola é uma “fábrica de comunistas”. Isso sem contar o acesso desenfreado a jogos e apostas online, com a promessa de enriquecimento fácil e “investimentos” que os colocariam num patamar social onde jamais precisariam estudar de verdade. Afinal, para que aprender matemática se dá para ganhar a vida apostando no placar do Brasileirão?

 

 

Lógico que encontraremos opositores à proibição do uso de celular em sala de aula. Porém, até hoje, percebi que, em sua maioria, eles não eram professores. Aliás, muitos nunca pisaram em uma sala de aula. E isso, por si só, já diz muita coisa.

 

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Se há algo que esses anos de experimentações desastradas nos ensinaram é que o básico funciona. O professor ensina, o aluno aprende, e a sala de aula é um espaço de troca humana e intelectual. O resto é barulho de fundo, ruído de uma modernidade apressada que acredita que o conhecimento pode ser substituído por um aplicativo. Mas não pode. E talvez, só talvez, seja hora de deixarmos de lado os modismos pedagógicos e voltarmos a fazer o que sempre funcionou: ensinar.

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