Vista aérea de Arroio do Meio (RS), destruída pelas enchentes no estado gaúcho  -  (crédito:  Nelson Almeida?AFP)

Vista aérea de Arroio do Meio (RS), destruída pelas enchentes no estado gaúcho

crédito: Nelson Almeida?AFP

As tragédias sempre revelam o melhor e o pior de nós. O bicho homem, em fração de segundos, é capaz de percorrer o caminho de herói a vilão, de santo a pecador. É assim. Somos complexos, grávidos e ávidos tanto de bem quanto de mal.


Talvez esse seja o grande equívoco das ideologias. Funcionam só no papel, pois a vida, como diria Belchior, é muito pior ao vivo. Ou, quem sabe, mais complexa do que uma simples definição.


Quando penso nas tragédias, como a de Pompeia e a do Vesúvio, que teria dizimado uma população em cerca de 17 minutos, com pessoas petrificadas e uma cidade destruída, como a que vivem agora nossos irmãos do Rio Grande do Sul, a tendência é ressaltar a pergunta filosófica sobre o sentido da vida e dos mistérios de viver. A fragilidade da existência é uma coisa da qual nos esquecemos e essa linha tênue que segura nossa respiração talvez seja mais frágil do que imaginamos.

 


Os estoicos talvez tenham razão. É preciso construir uma fortaleza interior para aguentar o perigo que é viver, na tentativa de ganhar um pouco de sabedoria, diferenciando aquilo que depende de nós daquilo que não depende. Tarefa difícil e de uma vida inteira. A imperturbabilidade da alma diante das intempéries do destino é um exercício espiritual de alta envergadura.


Lembro-me do texto de Freud, em seu Mal-Estar na Civilização, afirmando as três fontes de sofrimento humano: a fúria da natureza, a fragilidade de nossos corpos e a inadequação às regras sociais. Essa luta diária com aquilo que nos aflige faz de nós seres em eterna construção, pois estamos sempre nos digladiando com uma coisa ou outra.

 


Às vezes, estamos saudáveis, mas a sociedade corrompe nossa irrisória paz. Em outros momentos, estamos em paz, mas a natureza vem, com toda sua força, e nos lembra do quão pequenos são nossos desejos frente à imensidão da dança cósmica, na qual somos apenas uma coreografia pobre.


Sobretudo a nós, brasileiros, a quem Sérgio Buarque de Holanda definiu tão bem como o “homem cordial”, sujeito que age por uma ética própria, a do coração. Na mesma hora e com a mesma intensidade, somos capazes de amar e de odiar, de construir e de destruir. Guardamos em nossas mãos os gestos mais fraternos e solidários, mas também a tortura mais atroz e cruel.


Dentro das casas e no trânsito, nas escolas e no trabalho, a disponibilidade para ajudar o próximo e promover a dignidade do outro é constante, mas também as raivas, as maldades e atrocidades são cometidas em um piscar de olhos.


Assisto, como todo ser humano, à situação do Rio Grande do Sul. Por vezes me emociono com os gestos de tantos conterrâneos anônimos – prefiro usar esse termo ao conceito “patriota”, com medo de ser confundido por certo grupo de pessoas que, ao corromper o termo, usam do nacionalismo para justificar seus arroubos autoritários e seus traços de perversidade.

 


Milhares de indivíduos atingidos por uma situação impensável. Vidas, de idades variadas, ceifadas. Homens e mulheres ilhados. Sempre penso naqueles que estavam na luta pela vida em seu tratamento oncológico, como farão agora? No dia anterior, no restaurante, alguém comemorava a aposentadoria. Agora, nem sabe se os papeis que fundaram um pacto civilizatório são de alguma serventia. Todos se perderam. Fotos, registros, dívidas, processos criminais... Tudo reduzido à liquidez do nada.


Em meio a isso, conterrâneos se mobilizam e se solidarizam com a dor do outro. Que, na medida do possível e do impossível, se entregam para que o sofrimento seja amenizado. Doações, orações e ações em prol daquilo que nos une. Para além do escudo do time, das preferências políticas e das classes sociais. É um banho de realidade frente a qualquer tentativa reducionista e acadêmica de classificar pessoas.A ajuda chega de todo lugar, materializada em água potável, em braços para carregar cestas, almas e corpos.

 

Será que nem nessa hora vamos parar de enviar textões pelo WhatsApp, na tentativa de angariar votos para as próximas eleições? Pouco importa se você é de esquerda ou de direita, pois a tragédia não tem preferências políticas. Democraticamente, a fragilidade da vida nos faz todos iguais.


Choca a avalanche de fake news, as tentativas de desvio, os possíveis abusos e crimes sexuais que mulheres e crianças teriam sofrido em abrigos. Na situação de fragilidade, alguns corpos ainda são alvo fácil para os perversos. As guerras e as tragédias ressaltam, por vezes, nosso lado mais sombrio. Infelizmente, é o tipo de coisa que não deveríamos esperar, mas a realidade é mesmo muito criativa para puxar nosso tapete.


Seremos os mesmos depois disso? Também não falamos em mudanças e transformações após a pandemia? E aqui estamos, vendo novamente que o ser humano é mesmo essa corda bamba, de bêbado e equilibrista, que liga o coração da pior besta-fera ao mais belo anjo.