Foucault alerta para o fato de que algumas coisas são apresentadas como transtornos com o propósito de esconder questões políticas, sociais e afetivas -  (crédito: Arquivo EM)

Foucault alerta para o fato de que algumas coisas são apresentadas como transtornos com o propósito de esconder questões políticas, sociais e afetivas

crédito: Arquivo EM

Michel Foucault, ao utilizar o conceito de “medicalização”, pretendia elaborar uma crítica à tentativa de transformar, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. Em sua obra, ele alerta para o fato de que algumas coisas são apresentadas como transtornos, distúrbios e/ou doenças com o propósito de esconder questões políticas, sociais e afetivas que impactam as pessoas. Isso é, ao erro de tratar como patológico algo que é cultural.

 

 

O filósofo sofreu na própria pele as tentativas de uma medicalização da vida (note-se que o termo não é medicação, mas sim medicalização!). Seu pai, cirurgião reconhecido no cenário francês, o isolou em uma espécie de hospício, possivelmente devido à sua orientação sexual. Pasmem, mas no século passado tratavam a homossexualidade como doença.

 

Ao longo de sua irretocável história acadêmica, o pensador francês nos presentou com obras como “A história da Loucura”, “O nascimento da clínica” e “As palavras e as coisas”. Seu pensamento se ergueu como uma espécie de crítica à ideia de controle e domínio, afirmando que uma vida que não se reduz aos diagnósticos normatizadores que tentam definir a multiplicidade das experiências vitais. Afinal, a universalidade dos padrões corporais, espirituais e afetivos é, muitas vezes, um eficiente exercício do poder.

 

Nosso pensador teria muito o que analisar atualmente. Vivemos um tempo de medicalização da vida, sobretudo quando se trata de educação. Revestidas de um discurso científico, manifestações divergentes no espaço escolar são tratadas como patologias. Logicamente, se há doença, há medicalização. Acontece que a ordem, aqui, está invertida, pois são os medicamentos que acabam diagnosticando qual tipo de tratamento será disponibilizado para o pobre sujeito que começa a escutar - dos outros e de si – que necessita se recuperar de alguma comorbidade.

 

Laudos e diagnósticos infestam as gavetas das escolas como formigas em busca de açúcar, em um cenário mercadológico que se retroalimenta, sustentado por uma padronização dos comportamentos advinda de uma narrativa científica: a neurociência. Sim! Existem pesquisadores sérios na área. Sidarta Ribeiro talvez seja o nome mais relevante, no entanto, pouco discutido. Talvez porque não ceda aos desejos da indústria farmacêutica e não pretender, em suas pesquisas, reduzir os fenômenos humanos ao “sistema neurológico perfeito e funcional”. Ao contrário, visa contribuir para uma discussão cultural e social a respeito da relação do ser humano com seu meio social e natural. Seu livro “O oráculo da noite” vale a pena.

 

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Em contrapartida, surgem personagens que vislumbraram, nessa área de pesquisa, uma suposta sustentação científica para suas atividades laborais. Fazem isso a partir de uma visão fisiologista sobre o comportamento humano, simplificando todas as manifestações psíquicas e simbólicas ao funcionamento ao seu suporte biofísico.

 

É lógico que a área dos mecanismos cerebrais instigaria os interesses da indústria farmacêutica. Afinal, não estamos falando de qualquer órgão, mas aquele que opera para nobres fins. Motivo pelo qual não temos uma infestação de cárdio-pedagogos, pneumo-psicológos ou fígado-psiquiatras (confesso até que procuraria pelos últimos, visando minha alegria etílica).

 

Colocar “neuro” à frente de alguma profissão parece que confere maior credibilidade científica à atividade laboral. Tenhamos cuidado, o discurso pseudocientífico já foi amplamente utilizado ao longo da história, sobretudo em regimes totalitários e excludentes. Essa ideia de que existe um certo organismo-padrão, referência para os demais, é extremamente perigosa. É sobre isso que devemos conversar.

 

Muitas questões filosóficas surgem diante da narrativa medicalizante: qual é o padrão de comportamento ao qual uma criança ou um jovem está sendo comparado para que o marcador clínico seja considerado? Existe mesmo um padrão neurológico? Os não adaptados são também disfuncionais? O sofrimento, advindo de uma inadaptação, deve ser silenciado por uma vida químico-dependente?

 

Assusta imaginar um futuro medicalizado, pois o ciclo perverso, proposto pela sociedade do laudo, não anuncia o fim do tratamento. O que mais se escuta é que o sujeito deverá levar consigo seu diagnóstico para o resto da vida. Crianças e jovens de hoje, consumidores farmacêuticos de amanhã, estão condenados à dependência medicalizante. Já pensou na lucratividade? E ainda sem considerar os que vão nascer! Tudo isso ratificado por uma bárbara narrativa de adequação aos supostos “padrões de comportamento”. Jovens hoje, dependentes no amanhã.

 

O sujeito que se desenvolve com a ideia de que a “bengala farmacológica” sempre será capaz de silenciar as angústias, medos e reações diante de uma sociedade funcionalista e produtiva, irá sofrer duplamente: primeiro, por sua suposta inadequação; segundo, pela dependência química de um tratamento vitalício. O consumo exagerado de medicamentos ligados à aprendizagem (por mais falacioso que isso seja) já é utilizado para “melhorar o desempenho no trabalho”, “relacionar-se em família” e para “curtir as férias em paz”.

 

Caminhar nesse sentido é ir na contramão de uma sociedade mais inclusiva e tolerante. Diferenças não podem ser tratadas como patologias. Afinal, remédios foram feitos para curar doenças e não para adestrar sujeitos.