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Estado de Minas Chacina de Unaí

Chacina de Unaí: como transformar 400 anos de pena em 18 de impunidade

Inicialmente sentenciados a quase quatro séculos por morte de fiscais, mentores estão livres. Fazendeiro é condenado em novo júri, e ficará solto mais uma vez


29/05/2022 04:00 - atualizado 29/05/2022 10:27

Antério Mânica
Antério Mânica (à direita) deixa o Tribunal do Júri: quatro vidas perdidas, nova sentença, agora de 64 anos, e mais uma vez a liberdade para recorrer e adiar cumprimento da pena, por ter "trabalho lícito" (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)


O novo julgamento do fazendeiro e ex-prefeito de Unaí Antério Mânica, que terminou ontem com nova condenação – 64 anos de cadeia – e mais uma possibilidade de recurso em liberdade, é apenas um dos três júris populares que pode ser revisto em um dos casos de maior afronta ao Estado brasileiro em todos os tempos, que resultou em penas de quase cinco séculos de prisão, a maior parte delas não cumprida. Ao longo dos últimos 18 anos, aquela que se tornou conhecida como a Chacina de Unaí, quando três auditores fiscais do Trabalho e o motorista da equipe foram mortos, em 2004, resultou em condenações que somam 481 anos, nove meses e 24 dias de prisão para sete dos oito acusados – um deles morreu em 2013, sem nunca ter sido julgado.

Porém, a confissão do fazendeiro Norberto Mânica, em 2018, pode resultar em novos júris, sendo que Antério, irmão de Norberto, julgado novamente na 9ª Vara Federal, em Belo Horizonte, desde o dia 24, passou apenas 26 dias preso de uma sentença inicial de 99 anos, 11 meses e 4 dias, o que representa menos de 0,8% do total. Novamente condenado, vai apelar da sentença fora da cadeia.

A história de impunidade que teve início há quase duas décadas – e que segundo as denúncias mobilizou um complô envolvendo nove pessoas, das quais apenas uma está efetivamente atrás das grades (leia abaixo) –, começou em 28 de janeiro de 2004, quando foram executados por pistoleiros em uma emboscada a 55 quilômetros de Unaí os auditores fiscais João Batista Soares, de 50 anos, e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, de 42, lotados em Belo Horizonte; o fiscal de Paracatu Nelson José da Silva, de 52, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira, de 51, que conduzia a equipe.

“Esse crime ainda é uma sombra para todos os auditores fiscais. Até hoje, muitos escutam piadas como: 'Ah, você vai me fiscalizar, vai me multar, cuidado, hein. Olha o que aconteceu em Unaí'. Dezoito anos depois, não existe nenhum (mandante) preso, ninguém cumprindo pena. Tudo indica que, apesar da sentença, eles vão propor recurso. Vão ficar eternamente nesse processo. Ninguém vai para a prisão, por causa da morosidade do processo. Cabe até usar a idade avançada como empecilho. É uma situação absurda. Eu duvido que no Brasil tenha algum pobre que enfrentou um conselho de sentença e saiu pela porta da frente para ir para casa. A pessoa sai presa em qualquer tribunal, mas isso não acontece com os ricos. Os executores cumpriram pena, mas os mandantes, não”, desabafa o ex-delegado do Ministério do Trabalho Carlos Calazans, que foi ouvido nos processos como testemunha.

O caso de Antério Mânica chama a atenção também por ser ele um dos maiores produtores de feijão do Brasil, com fazendas em Unaí e no Paraná. Ele chegou a confessar, em depoimento à Polícia Federal, que ameaçou de morte, em 2003, o auditor-fiscal do Trabalho Nelson José da Silva – que seria o alvo original da chacina. No episódio, em uma das suas fazendas, o produtor teria pulado na frente dos auditores e os ameaçado tendo às mãos dois espetos para retirada de provas de sacas de feijão.

Apesar de toda a repercussão do caso, Antério foi eleito prefeito de Unaí em 2004 e reeleito em 2008. Durante esse período, teve direito a foro especial e, assim, seu processo foi desmembrado dos demais acusados. Sua condenação ocorreu em novembro de 2015 e ele recorria em liberdade por ser réu primário. Até que a confissão do irmão, Norberto, o beneficiou com a anulação do primeiro júri.

ABSOLVIÇÃO?

A confissão de Norberto Mânica pode resultar até na absolvição de outros condenados, e em novo júri para dois dos acusados de serem seus comparsas. Um deles é o cerealista Hugo Alves Pimenta, empresário de Unaí e Brasília (DF), que é réu confesso por ter orquestrado a chacina e desembolsado R$ 45 mil pelas quatro mortes.

O julgamento de Hugo Pimenta ocorreu em novembro de 2015. Ele foi condenado e sua pena foi reduzida devido a um acordo de delação premiada, de 96 anos para 48. Descontado o tempo em que ficou preso, teria de cumprir 46 anos, 3 meses e 27 dias em reclusão. Mas recorreu em liberdade em 2018. Sua pena foi mais uma vez reduzida, para 31 anos e 6 meses de reclusão. O requerimento de novo júri está com vistas para o Ministério Público Federal, para parecer, desde dezembro do ano passado.

Outro que pleiteia novo júri em processo que também se encontra com vistas para o Ministério Público Federal desde dezembro último é o empresário de Contagem José Alberto de Castro, o "Zezinho", acusado de ser também um dos orquestradores da chacina, tendo entrado em contato com o contratante dos pistoleiros. Em 2015, ele recebeu pena de 96 anos, 10 meses e 15 dias, que caiu para 96 anos, 5 meses e 22 dias pelo tempo que esteve preso preventivamente. Em novembro de 2018, um recurso encolheu a pena novamente, para 58 anos, 10 meses e 15 dias de reclusão. Também está em liberdade.

Viúva do auditor-fiscal Nelson José da Silva, Helba Soares da Silva, hoje com 58, frisa que menos de 100 anos de cadeia seria pouco para os réus após o processo se arrastar por quase duas décadas. “O que tinha de acontecer é eles (Antério e os demais que querem novo júri) terem a mesma sentença. No mínimo 100 anos de prisão. Já são 18 anos e lembro todos os dias que ainda não foi feita a justiça. Essa é uma ferida que ainda está aberta.”

Agonia das vítimas em proveito dos acusados


A possibilidade de recursos, aliada a uma desordem no andamento dos processos, contribui para a demora na execução penal, segundo o advogado Roberto Tardelli, assistente de acusação no caso da Chacina de Unaí. “Os recursos existem na legislação brasileira, na área penal, desde 1941. Eles não mudaram, na verdade, até diminuíram ao longo desses anos. Por que demora tanto, então? Porque os tribunais não se organizam e a qualidade das decisões é ruim. Há dois pesos nessa relação. Nós sabemos que tudo que envolve ações judiciais vai demorar. Você tem de um lado a agonia de quem sabe que vai ter que suportar a espera e de outro o proveito de quem vai provocar essa espera”, afirma.

Para o advogado, que assiste o Ministério Público Federal representando o interesse das vítimas, esse processo é um dos casos que se alimentam do que ele chama de ciclo vicioso da Justiça, que acabaria criando um modelo perverso em que as decisões se arrastam e as punições são adiadas, por vezes indefinidamente. “Há uma seletividade muito perigosa nisso. Tem casos, como do ex-presidente Lula, em que houve uma aceleração, enquanto nós estamos nessa luta há 18 anos. É um fantasma que se arrasta. Enquanto o caso fica parado, os familiares não conseguem enterrar seus entes queridos. Diminuir o número de recursos não vai agilizar a Justiça. A solução tem que ser dada em outro lugar. Nós temos que ter mais estrutura de julgamento, temos que ter mais qualidade nas decisões. Há também um enorme conservadorismo nos tribunais”, considera Tardelli.

Enquanto isso, para funcionários públicos que lidam com fiscalizações de poderosos, a impunidade beira a insegurança, segundo Bob Machado, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait). “Tem sido muito duro olhar para a nossa sociedade e ver que, passados 18 anos, os mandantes, até hoje, não foram punidos, não foram efetivamente presos. Não são só os servidores, estamos falando de pais de família, filhos, maridos, que tiveram a vida interrompida de forma trágica. Não são apenas números. Nós estamos buscando a paz. Ao longo de todos esses anos, nossos colegas auditores carregam consigo essa sensação de impunidade quando saem para cumprir suas obrigações de combater o trabalho escravo e o trabalho infantil”, afirma Machado.

“Essa é uma sensação de que a Justiça pode não ser para todos. De que podem aplicar a lei nos pequenos, mas não o fazem nos grandes. Claramente, a capacidade econômica dos acusados e a habilidade de utilizar infinitos recursos jurídicos vem se sobressaindo perante a Justiça”, avalia o sindicalista.

Cineminha
Triste memória / Como foi o crime que até hoje ainda resulta em muitos julgamentos - (1) 1) Os auditores fiscais do Trabalho Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage, Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira se dirigiam para uma fiscalização em Unaí, no Noroeste de Minas, em 28 de janeiro de 2004, quando o carro em que estavam foi emboscado em uma estrada a 55 quilômetros da cidade. Dois atiradores e um motorista participaram da ação, que resultou na execução dos quatro funcionários públicos com tiros de calibre 38 na cabeça. (2) Mesmo ferido, o motorista Aílton Pereira de Oliveira, de 51 anos, chegou a dirigir a picape Ranger em que estava a equipe por cinco quilômetros até encontrar um fazendeiro no caminho e pedir ajuda. Ele foi socorrido em um hospital, em Brasília, mas morreu no dia seguinte. (3) A chacina causou comoção e uma força-tarefa foi organizada com policiais federais, agentes do Comando de Operações Táticas da Polícia Federal e procuradores do Ministério Público Federal (MPF). Em setembro de 2004, Antério Mânica foi preso pela primeira vez preventivamente, acusado de ser o mandante. Ele foi solto, preso novamente em dezembro, e mais uma vez solto. Naquele mês, denúncia do aceita pela Justiça Federal dava início ao processo criminal que se arrasta até hoje (foto: Ilustrações: Quinho)


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