A escritora Marcia Tiburi

A escritora e filósofa Marcia Tiburi participa de debate e sessão de autógrafos no teatro da Biblioteca Pública Estadual, na Praça da Liberdade

Acervo pessoal

A violência contra a mulher é o tema central do novo livro de Marcia Tiburi, o romance “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve”, que ela lança em Belo Horizonte dentro do projeto Sempre um Papo, com mediação de Afonso Borges, nesta terça-feira (5/9), às 19h30, no Teatro José Aparecido de Oliveira, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais.

A personagem-título é uma brasileira que passa a viver em Paris, no apartamento da solitária Chloé. A convivência entre as duas traz à tona o fato de que ambas carregam marcas de um doloroso passado, marcado por diversas formas de violência oriundas e ou derivadas da configuração da sociedade patriarcal.

Sétimo romance de Marcia, “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” sucede “Sobre os pés, meu corpo inteiro”, lançado em 2018 e indicado ao Prêmio Oceanos. Ela conta que o novo livro começou a tomar forma em 2020 e foi, em grande medida, moldado pelo contexto de pandemia e de chegada da extrema direita ao poder.

“Era um período em que nenhum de nós podia dar as costas a essas questões. O livro não é sobre aquele cenário especificamente, mas é sobre exílio, confinamento, isolamento, solidão. Talvez o segundo assunto mais importante seja a solidão, porque o tema central é mesmo a violência doméstica. Falo disso fazendo um nexo com esse período tão sombrio das nossas vidas, porque nele a violência doméstica se tornou mais intensa e apavorante”, diz a autora.
 

'O livro não é sobre aquele cenário (da pandemia) especificamente, mas é sobre exílio, confinamento, isolamento, solidão. Talvez o segundo assunto mais importante seja a solidão, porque o tema central é mesmo a violência doméstica. Falo disso fazendo um nexo com esse período tão sombrio das nossas vidas, porque nele a violência doméstica se tornou mais intensa e apavorante'

Marcia Tiburi, filósofa e escritora

 
 
Na passagem de 2020 para 2021, quando estava dedicada à feitura do livro, Marcia participou da criação do movimento Levante Feminista contra o Feminicídio, que se espalhou por todo o Brasil e hoje está muito articulado, com a participação de muitas figuras proeminentes da política e da sociedade civil. O desejo de sensibilizar as pessoas para a questão da violência contra a mulher foi o que a motivou a escrever um romance, conforme aponta.

“Acho que a forma do romance consegue trabalhar determinados assuntos de uma maneira que a forma filosófica, por meio do ensaio, não dá conta. O romance consegue tocar o leitor muito mais do que o ensaio, que convida à reflexão; o romance é um convite à sensibilidade. No caso desse assunto que eu quis abordar, achei importante partir para esse trabalho com foco na sensibilidade, e não como um apelo à consciência”, afirma.
 

Gertrude Stein

Marcia diz que o enredo que envolve as duas personagens centrais teve, como uma das fontes de inspiração, suas próprias andanças pelos Estados Unidos e pela Europa. Ela conta que, quando teve que sair do Brasil, em 2018, após receber ameaças e ter sua casa invadida, foi fazer uma residência literária em Pittsburgh, na Pensilvânia, onde nasceu a escritora Gertrude Stein (1874-1946).

“Depois fui morar em Paris, onde ela também viveu. Eu estava convivendo com essa personagem da literatura e com questões que ela trazia, da arte e da forma literária propriamente dita. Embora fosse uma mulher rica, ela também sofria, por ser judia e por ser lésbica. Na época, por volta de 1920 e 1930, ela teve que driblar muitas situações para existir. A figura dela me comovia muito”, diz.

A escritora conta que começou a se inteirar mais sobre o trabalho de Gertrude e a refazer os caminhos que ela tinha feito, tanto em Pittsburgh quanto em Paris. Ela conta que esse foi um período em que se sentiu muito sozinha e que, por isso, voltou a desenhar – uma prática a que era dada e que tinha deixado para trás. “Fiquei desenhando muito, e começou a aparecer essa personagem, essa figura que, literariamente, acabou sendo a Helena”, explica.

Assim como ocorre com personagens de outros romances de sua autoria, Helena traz questões muito fortes ligadas ao corpo, conforme diz. “Ela é atormentada pela violência que sofreu nesse corpo, um corpo que segue respondendo a essa violência. Nesse livro, quis trabalhar com personagens que fossem sobreviventes, mulheres ao redor do mundo que sofrem violências extremas e que seguem em frente”, aponta.

“Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” vai revelando, aos poucos, o que aconteceu com essa personagem, quais os traumas vividos e como ela se desdobra e se organiza na vida, apesar de todo o horror. “É uma história simbólica, alegórica, de uma mulher que aprende a viver em meio à violência. Ela é uma sobrevivente, e é filha de uma mulher que não sobreviveu. É uma história sobre isso, que reforça a necessidade de as mulheres estarem juntas”, destaca a autora.

Patriarcado e violência

No dizer de uma das personagens do livro, “o patriarcado está morto”. A escritora diz que, sim, está morto, mas, por enquanto, apenas no romance que está lançando. “Na sociedade, infelizmente, ainda não, e a palavra mais importante dessa minha frase é o 'ainda'. Estamos a caminho de transformar essa sociedade numa sociedade melhor de se viver, que tenha superado o patriarcado, esse sistema baseado na violência”, diz.
 

'É uma história simbólica, alegórica, de uma mulher que aprende a viver em meio à violência. Ela é uma sobrevivente, e é filha de uma mulher que não sobreviveu. É uma história sobre isso, que reforça a necessidade de as mulheres estarem juntas'

Marcia Tiburi, filósofa e escritora

 

Ela acredita que esse momento vai chegar quando as pessoas tiverem superado a mentalidade que estrutura as relações da sociedade. “As instituições precisam se tornar democráticas de fato. Não tivemos ainda uma democracia verdadeira, porque todas as nossas formas democráticas sempre estiveram submetidas ao patriarcado. Esse romance tem sinais disso. Não é um livro sobre o movimento feminista, mas há sinais do movimento feminista nele”, aponta.

“Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” é uma obra que também provoca o leitor com vários questionamentos, de acordo com a autora: o que é uma família? Qual é a família que restou e qual é a família possível diante da violência patriarcal? “É um livro que exige redesenhar relações e, claro, trabalha com a instância subjetiva, mostra como isso se estabelece a partir das perspectivas das personagens”, afirma Marcia.

“COM OS SAPATOS ANILQUILADOS, HELENA AVANÇA NA NEVE” 

• De Marcia Tiburi 
• Editora Nós (304 págs.)
• R$ 69
• A escritora lança o livro nesta terça-feira (5/9), às 19h30, no Teatro José Aparecido de Oliveira da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (Praça da Liberdade, 21, Funcionários), no projeto Sempre um Papo, com mediação de Afonso Borges. Entrada franca.