No palco, Amy Winehouse canta ao microfone e estende o braço esquerdo para o lado

Amy Winehouse, que morreu em 2011, reapareceu agora no Twitter com 'nova' canção autoral, fruto da manipulação de sua voz e estilo por meio de programa de IA

Ben Stansall/AFP/28/6/08
Se em 1998 a banda mineira Pato Fu já denunciava “a necrofilia da arte” na faixa homônima de seu quarto álbum de estúdio, “Televisão de cachorro”, atualmente a obsessão pela obra de artistas que já se foram atingiu outro nível, algo que nem mesmo filmes de ficção científica conseguiriam prever.

Nas últimas semanas, as redes sociais, sobretudo o Twitter e o TikTok, foram invadidas pela onda de músicas criadas por programas de inteligência artificial (IA), que, por meio de mapeamento algorítmico, emulam a voz e o estilo de compor de autores falecidos e mesmo ainda vivos.

Experiências

Nova música de Amy Winehouse? Lady Gaga cantando Lana Del Rey? Ariana Grande emprestando a voz para a versão de “Envolver” e “Boys don't cry”, de Anitta? Várias foram as experiências criadas por usuários das redes.

A onda abriu a discussão sobre os limites de programas que permitem tais “proezas”. Desde o ano passado, debate-se na web sobre a validação (ou não) de obras de arte, mais notadamente quadros e pinturas digitais, produzidas por IAs. A polêmica ganhou novo patamar com o surgimento de músicas e vídeos emulando clipes, trailers e pequenos filmes.

Na internet, alguns perfis se posicionaram contra o uso de IAs na música. Para o rapper e DJ Vinicius Fernandes, o Linguini, ferramentas assim, a priori, tendem a causar “uma sensação apocalíptica”, mas, passado o susto, elas democratizam o acesso de pessoas comuns a processos de criação artística.

Linguini compara as IAs às DAWs, sigla em inglês para Digital Audio Workstation (ou estação de trabalho de áudio digital), softwares sequenciadores surgidos na virada do século que gravam, editam e tocam áudios digitalmente sem a necessidade da presença física de um instrumento.

O cantor e compositor belo-horizontino Paulo Henrique Santos, que assina como o.paulera, afirma que programas de inteligência artificial não criam nada, apenas se utilizam de mapeamento algorítmico para reproduzir o que já está feito.

Para Linguini e o.paulera, a característica humana das composições é algo que não pode ser reproduzido por plataformas e códigos.

“O jazz, por exemplo, surge da improvisação, da performance, de você sentir quando tem de entrar e sair de uma música, do feeling de cada músico ir acompanhando o outro, sem nada automatizado. Se formos para o mundo digital, o próprio DJ tem disso quando discoteca. Muitas vezes, não leva algo pronto, ele sente como a pista está caminhando e vai junto. São coisas muito complexas para um algoritmo”, diz Linguini.

Brincadeira nas redes

O músico o.paulera destaca o caráter bem-humorado e despretensioso desse tipo de programação. Ele acabou de lançar o álbum de estreia, “De Z a A”, chegou a ter 200 mil seguidores em um perfil no TikTok.

Na opinião do compositor, usuários, muitas vezes, só querem brincar com os filtros disponíveis. Porém, ele alerta para o perigo de programas que fazem com que grandes nomes da música cantem músicas de outros astros.

Ao comentar a qualidade da música produzida dessa forma, o compositor pergunta se já não há, por parte dos produtores humanos, homogeneização que deixe todas as músicas praticamente iguais, correndo o risco de prender o público dentro de suas bolhas de gostos e consumo.

“Ao mesmo tempo em que vejo um certo lado do marketing de buscar o que as pessoas já gostam, cria-se a tendência de ficar tudo mais igual, tudo mais monótono. Já está difícil ver coisas novas atualmente, novas criações. Hits de carnaval acabam ficando iguais, por exemplo”, afirma.

Na opinião dele, a inteligência artificial só veio acelerar o processo, pois ela agiliza a produção e reduz repetições feitas por produtores profissionais.

Reforço

Em certa medida, as IAs até mesmo ajudam artistas e produtores que trabalham sozinhos, como é o caso de o.paulera.

Tanto Linguini quanto o.paulera ainda não ouvem as “trombetas do apocalipse” que a produção musical por meio de inteligências artificiais pode representar. Para eles, esta relação estará pacificada num futuro próximo, assim como ocorreu quando surgiram outras tecnologias, há cinco ou 25 anos.

Porém, ambos concordam que é preciso encontrar um ponto de equilíbrio no uso de programas que permitem esse tipo de produção.

* Estagiário sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria